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Nota do editor
Último poste da série de 29 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14805: Parabéns a você (928): José Firmino, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71) e Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil do Pel Ind Mort 912 (Guiné, 1964/66)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 30 de junho de 2015
segunda-feira, 29 de junho de 2015
Guiné 63/74 - P14810: (De)caras (22): Quando os autocarros (de Bafatá e de Gabu) chegavam ao porto fluvial do Xime com população e até com provocadores, simpatizantes do PAIGC... Um dia, já depois do 25 de abril, ía havendo uma tragédia: estava eu a montar segurança na Ponta Coli e os meus homens, fulas, quiseram fazer fogo de bazuca, em resposta às provocações da malta do autocarro (António Manuel Sucena Rodrgues, um dos últimos guerreiros do império, ex-fur mil, CCAÇ 12, Xime, 1973/74)
Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > CCAÇ 12 (1973/74) > Pós-25 de abril de 1974 > Até aqui chegavam autocarros de passageiros!... Não dá para acreditar, diz o Valdemar Queirós, um rapaz do leste de 1969/70!... Mas com a com a nova "autoestrada", Xime-Piche (não sei se chegou mesmo a Buruntuma e a Pirada em 1974!), era já possível recorrer a autocarros de passageiros para transportar populção civil (, não tropa).
Foto ( e legenda): © António Manuel Sucena Rodrigues (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG]
I. Mail que enviei ao António Manuel Sucena Rodrigues, em 26 do corrente:
António: Explica lá direitinho o que é que tu fotografaste no cais do Xime em "dia de barco"... Autocarros no Xime ? Bate certo a bota com a perdigota ? Não estamos a delirar ?... A verdade é que a tua foto, ampliada, não engana...
Tens a data da foto ?... Fico a aguardar o teu precioso esclarecimento. As fotos do macaréu são para outro poste..
Ab do camarada da CCAÇ 12, Luís Graça
II. Sobre a foto acima, também comentou o Valdemar Queiroz, ex-fur mil art, CART 2479 /CART 11 (Contuboel, Gabu e Piche, 1969/70) (*);
Que confusão, que grande confusão ver estas fotografias do cais do Xime.
Lembro-me, em 1969/70, como era perigoso ir de Bambadinca ao Xime. Só com grande segurança se ia ao Xime buscar frescos vindos de Bissau. Reparavamos como o Xime tinha 'embrulhado', se calhar na noite anterior.
Ab do camarada da CCAÇ 12, Luís Graça
II. Sobre a foto acima, também comentou o Valdemar Queiroz, ex-fur mil art, CART 2479 /CART 11 (Contuboel, Gabu e Piche, 1969/70) (*);
Que confusão, que grande confusão ver estas fotografias do cais do Xime.
Gente que vinha em autocarros de passageiros até ao cais para, depois, seguir de barco para Bissau ??? Em que ano foram tiradas estas fotos?
Lembro-me, em 1969/70, como era perigoso ir de Bambadinca ao Xime. Só com grande segurança se ia ao Xime buscar frescos vindos de Bissau. Reparavamos como o Xime tinha 'embrulhado', se calhar na noite anterior.
Mas ver agora autocarro de passageiros, nem dá para acreditar. Extraordinário!
III. Resposta, pronta, no mesmo dia, do António Manuel Sucena Rodrigues [ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972-74]
Assunto: Autocarros no Xime
Luís,
1. Bate certíssimo. Nos dia de barcos destinados à população, por exemplo a Bor e mesmo a LDG (também havia barcos destinados prioritariamente a transporte de manadas de gado) havia autocarros que vinham de Bafatá (e não sei mesmo se vinham de Gabu), carregados de população (só população).
Esta foto deve ter sido tirada em março ou abril de 74.
Tínhamos um pelotão permanente, durante o dia, montando segurança na Ponta Coli, entre o Xime e Amedalai, daí ser possível viajar com alguma segurança na estrada [alcatroada].
Conheci a estrada Xime, Bambadinca, Bafatá sempre alcatroada e certamente havia pouco tempo, uma vez que ainda não tinha "remendos" e estava em bom estado. Já bem depois do 25 de abril, fomos um dia a Pirada (???) apenas passear (os capitães conheciam-se). A estrada era toda alcatroada até Gabu.
2. Tenho um pequeno episódio passado na Ponta Coli depois de 25 de abril, com um destes autocarros carragados de "revolucionários de ocasião" e em que me vi perdido para evitar um catástrofe humana.
III. Resposta, pronta, no mesmo dia, do António Manuel Sucena Rodrigues [ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972-74]
Assunto: Autocarros no Xime
Luís,
1. Bate certíssimo. Nos dia de barcos destinados à população, por exemplo a Bor e mesmo a LDG (também havia barcos destinados prioritariamente a transporte de manadas de gado) havia autocarros que vinham de Bafatá (e não sei mesmo se vinham de Gabu), carregados de população (só população).
Tanto quanto pude observar, havia destes autocarros em Bafatá. Como sabes, o cais do Xime era a única ligação da zona leste com o "resto do mundo".
Este dia foi um dos dias de grande afluxo de população, Não era sempre assim mas quase sempre havia pelo menos um ou mesmo dois autocarros. Nunca andei em nenhum, eram civis e não tinham nada a ver com a tropa.
Esta foto deve ter sido tirada em março ou abril de 74.
Tínhamos um pelotão permanente, durante o dia, montando segurança na Ponta Coli, entre o Xime e Amedalai, daí ser possível viajar com alguma segurança na estrada [alcatroada].
Conheci a estrada Xime, Bambadinca, Bafatá sempre alcatroada e certamente havia pouco tempo, uma vez que ainda não tinha "remendos" e estava em bom estado. Já bem depois do 25 de abril, fomos um dia a Pirada (???) apenas passear (os capitães conheciam-se). A estrada era toda alcatroada até Gabu.
2. Tenho um pequeno episódio passado na Ponta Coli depois de 25 de abril, com um destes autocarros carragados de "revolucionários de ocasião" e em que me vi perdido para evitar um catástrofe humana.
Foram nitidamente ao Xime apenas para provocar os militares da CCaç 12, que eram fulas e anti-PAIGC. Eu estava de serviço na Ponta Coli, de segurança à estrada, com cerca de 10 homens. Não havia barco nesse dia, logo não havia justificação para o autocarro estar ali. O autocarro aproximou-se, reduziu a velocidade sem parar (felizmente), e a rapaziada "revolucionária" irrompeu das janelas com os maiores insultos e provocações aos militares da CCaç 12. Estes ficaram indignados e quiseram mesmo abrir fogo.
O autocarro seguiu até ao Xime enquanto eu os tentei acalmar. Passado cerca de 15 a 20 minutos regressaram com os mesmos insultos e provocações. Passei por dificuldades ainda maiores, pois os meus homens quiseram abrir fogo de bazuca. Eu era o único branco que estava ali e por isso indiferente às rivalidades políticas dessa ocasião. Não sei como consegui acalmá-los. O autocarro aumentou de novo a velocidade. Tinham ido ao Xime apenas para provocar desordem. Estávamos em plena época revolucionária.
Foi por muito pouco que a situação não descambou para uma catástrofe.
Tenho mais fotos do Xime que em breve enviarei.
Um abraço, Sucena Rodrigues (**)
________________
Notas do editor:
(*) Vd, poste de 25 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14797: Memória dos lugares (294): O porto fluvial do Xime, no final da guerra (António Manuel Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74)
Foi por muito pouco que a situação não descambou para uma catástrofe.
Tenho mais fotos do Xime que em breve enviarei.
Um abraço, Sucena Rodrigues (**)
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Notas do editor:
(*) Vd, poste de 25 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14797: Memória dos lugares (294): O porto fluvial do Xime, no final da guerra (António Manuel Sucena Rodrigues, ex-fur mil, CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74)
(**) Último poste da série > 21 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14644: (De)caras (21): Em defesa da artilharia e dos artilheiros... e contra o lugar-comum "Importante é a versão, não o facto"... (Vasco Pires, bairradino em terras do Novo Mundo, fazendo também aqui prova de vida, sob o sagrado poilão da Tabanca Grande)
Guiné 63/74 - P14809: Blogoterapia (271): Não sabia que o tempo passava tão depressa (Juvenal Amado)
1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 19 de Junho de 2015:
Carlos e Luís
Este é um pequeno texto de agradecimento a toda todo o blogue, que marcaram o dia 17 de Junho de forma tão gratificante para mim, tanto no luisgraça como no facebook.
Um abraço para todos
Juvenal Amado
************
Não sabia que o tempo passava tão depressa.
Em crianças estamos sempre desejosos de sermos adultos, depois a vida, os afazeres, as preocupações e as metas a atingir sorvem-nos o tempo, e os anos começam a passar cada vez mais acelerados.
O tempo é pautado pelas horas que parecem passar mais lentas na medida que nós esperamos por algo, que tem hora marcada. Eu exemplifico; no trabalho esperamos pela hora do almoço e pelo fim da jornada. Mas o dia não acaba aí pois há o filho que tem que ir à ginástica, à explicação de matemática, o jantar, o telejornal e finalmente aquele filme ou série da qual nos tornamos fãs, por vezes vá se lá explicar porquê. Assim passamos muitos anos da nossa vida a correr, a desejar os fins semana, as férias e o Natal mais os subsídios e, sem querer, estamos a desejar o envelhecimento, pois isso é a passagem do tempo.
Quando chegamos à reforma e dá-se o choque ao não termos obrigações laborais, nem horários a cumprir. Ouvem-se ao longe os sons as chamadas das sirenes da fábrica onde trabalhamos, convivemos, onde conhecemos a nossa mulher e fizemos planos para o futuro, onde estamos agora a chegar. Fica-se com sentimento de perda, de repente o nosso esforço de trabalho não é necessário e aí, a nossa idade começa a pesar sobre os nossos dias e os nossos actos.
É comum ouvirmos dizer que isto ou aquilo não lhe fica bem, que já não tem idade para isso, etc. Por estranho que pareça chegámos à idade da razão, onde os conhecimentos acumulados deviam ser uma mais valia para a sociedade, mas é nesse momento que passamos a valer menos e daí para a frente a degradação social e física não pára, uma vez que o golfe, o ténis, não estão ao alcance da esmagadora maioria dos reformados deste país, que mal ganham para os medicamentos, para alimentação e para o gastos básicos.
Mas não temos emenda. Continuamos a desejar acelerar o tempo, para a rápida chegada da pensão, da Primavera, do Verão, do fim de semana em que os filhos nos visitam e aqueles dias que passamos com os netos. É uma contradição, por lado não queremos envelhecer, por outro lado estamos sempre à espera que o tempo passe com os custos inerentes.
Feito este preâmbulo, aí entram em campo os amigos em carne e osso e os virtuais, que no dia dos anos nos mandam os seus votos de parabéns. Damos por nós, que no dia anterior estávamos inclinados não dar muita atenção ao assunto, talvez como auto protecção, pois quem não quer decepções não alimenta esperanças, a passar o computador a pente fino e ler o que nos mandam, a constatar que não se esqueceram de nós, que o telefone toca e a prova que afinal o fim do mundo em sentido figurado, não está ali ao virar da esquina.
Parece impossível, mas faz-nos sentir bem mesmo as mensagens de quem não conhecemos, mas que acabam por tornar o dia especial.
Para o ano há mais, se não correr qualquer coisa de mal e nesse particular tenho que fazer aqui um reparo quanto ao efeito agregador e distribuidor de afectos que o blogue tem e da forma que ele tem aproximado os ex-combatentes de todos os locais do nosso pais, no esforço da reconstrução do nosso passado.
Muito obrigado a todos que tornaram o dia mais radioso para mim e para a minha família.
Bem hajam.
Juvenal Amado
____________
Notas do editor
- Cabe aqui mais um pedido de desculpas ao camarada Juvenal Amado pela demora na publicação deste seu texto.
Último poste da série de 12 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14605: Blogoterapia (270): Foi há já quarenta e um anos que essas mães e esses pais cumpriram tantas promessas pelos seus queridos filhos que partiram fardados para essas terras longínquas (Francisco Baptista)
Carlos e Luís
Este é um pequeno texto de agradecimento a toda todo o blogue, que marcaram o dia 17 de Junho de forma tão gratificante para mim, tanto no luisgraça como no facebook.
Um abraço para todos
Juvenal Amado
************
Não sabia que o tempo passava tão depressa.
Juvenal Amado atrás do cão da sua avó, com tias, tios, primo Hélder e a mãe
Em crianças estamos sempre desejosos de sermos adultos, depois a vida, os afazeres, as preocupações e as metas a atingir sorvem-nos o tempo, e os anos começam a passar cada vez mais acelerados.
O tempo é pautado pelas horas que parecem passar mais lentas na medida que nós esperamos por algo, que tem hora marcada. Eu exemplifico; no trabalho esperamos pela hora do almoço e pelo fim da jornada. Mas o dia não acaba aí pois há o filho que tem que ir à ginástica, à explicação de matemática, o jantar, o telejornal e finalmente aquele filme ou série da qual nos tornamos fãs, por vezes vá se lá explicar porquê. Assim passamos muitos anos da nossa vida a correr, a desejar os fins semana, as férias e o Natal mais os subsídios e, sem querer, estamos a desejar o envelhecimento, pois isso é a passagem do tempo.
Quando chegamos à reforma e dá-se o choque ao não termos obrigações laborais, nem horários a cumprir. Ouvem-se ao longe os sons as chamadas das sirenes da fábrica onde trabalhamos, convivemos, onde conhecemos a nossa mulher e fizemos planos para o futuro, onde estamos agora a chegar. Fica-se com sentimento de perda, de repente o nosso esforço de trabalho não é necessário e aí, a nossa idade começa a pesar sobre os nossos dias e os nossos actos.
É comum ouvirmos dizer que isto ou aquilo não lhe fica bem, que já não tem idade para isso, etc. Por estranho que pareça chegámos à idade da razão, onde os conhecimentos acumulados deviam ser uma mais valia para a sociedade, mas é nesse momento que passamos a valer menos e daí para a frente a degradação social e física não pára, uma vez que o golfe, o ténis, não estão ao alcance da esmagadora maioria dos reformados deste país, que mal ganham para os medicamentos, para alimentação e para o gastos básicos.
Mas não temos emenda. Continuamos a desejar acelerar o tempo, para a rápida chegada da pensão, da Primavera, do Verão, do fim de semana em que os filhos nos visitam e aqueles dias que passamos com os netos. É uma contradição, por lado não queremos envelhecer, por outro lado estamos sempre à espera que o tempo passe com os custos inerentes.
Feito este preâmbulo, aí entram em campo os amigos em carne e osso e os virtuais, que no dia dos anos nos mandam os seus votos de parabéns. Damos por nós, que no dia anterior estávamos inclinados não dar muita atenção ao assunto, talvez como auto protecção, pois quem não quer decepções não alimenta esperanças, a passar o computador a pente fino e ler o que nos mandam, a constatar que não se esqueceram de nós, que o telefone toca e a prova que afinal o fim do mundo em sentido figurado, não está ali ao virar da esquina.
Parece impossível, mas faz-nos sentir bem mesmo as mensagens de quem não conhecemos, mas que acabam por tornar o dia especial.
Para o ano há mais, se não correr qualquer coisa de mal e nesse particular tenho que fazer aqui um reparo quanto ao efeito agregador e distribuidor de afectos que o blogue tem e da forma que ele tem aproximado os ex-combatentes de todos os locais do nosso pais, no esforço da reconstrução do nosso passado.
Muito obrigado a todos que tornaram o dia mais radioso para mim e para a minha família.
Bem hajam.
Juvenal Amado
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Notas do editor
- Cabe aqui mais um pedido de desculpas ao camarada Juvenal Amado pela demora na publicação deste seu texto.
Último poste da série de 12 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14605: Blogoterapia (270): Foi há já quarenta e um anos que essas mães e esses pais cumpriram tantas promessas pelos seus queridos filhos que partiram fardados para essas terras longínquas (Francisco Baptista)
Guiné 63/74 - P14808: Bibliografia de uma guerra (73): Do meu livro "Paz e Guerra - Memórias da Guiné", excerto para Luís Graça & Camaradas da Guiné (1) (António Melo Carvalho, Coronel Inf Ref)
1. Mensagem do nosso camarada António Melo de Carvalho(1), ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465/BCAÇ 2861 (Có e Bissum-Naga, 1969/70), actualmente Coronel Inf na situação de Reforma, com data de 16 de Junho de 2015:
Caro camarada,
Na sequência da colaboração prometida, junto envio um primeiro excerto do livro(2) que publiquei recentemente sobre a Guiné.
Um abraço
Melo de Carvalho
Do livro Paz e Guerra - Memórias da Guiné
Excerto para Luís Graça & Camaradas da Guiné (1)
António Melo de Carvalho
Agora, a mata era menos cerrada. Permitia um campo de observação e tiro razoáveis, fora de hipótese há umas centenas de metros atrás. Era assim possível colocar sistematicamente a segurança imediata à frente da área que estava a ser capinada.
Desde que há uns dias tínhamos ajustado o dispositivo de segurança às novas condições da vegetação, andava com o pressentimento de que algo de novo poderia vir a acontecer, por parte do PAIGC.
A aparente falta de iniciativa dos guerrilheiros perante a nossa estrutura, não estava a condizer com a sua habitual e quase diária agressividade. À distância de mais de quatro décadas, penso que andaríamos a ser observados, com o objectivo de identificarem as nossas novas rotinas.
Todas as manhãs, como responsável pela segurança, definia com os comandantes de pelotão, os respectivos sectores a ocupar, antes do início dos trabalhos. Para isso percorria com eles, a corta mato, a frente onde cada um se instalaria.
Tinha então que palmilhar umas centenas de metros na área que iria ser capinada e na que o fora no dia ou dias anteriores. Nestas caminhadas de preparação do dispositivo, tínhamos que nos desviar dos destroços mais volumosos das árvores e arbustos cortados, e do emaranhado da arborização que ainda aguardava os golpes certeiros das catanas desse dia.
Naquela manhã de 13 de Abril de 1969, procedia aos últimos retoques na estrutura de segurança à capinação e obras da estrada, com o alferes Pires da CCaç. 2312.
O Pires era na ocasião, na ausência do seu capitão, o substituto do comandante de companhia, como oficial mais antigo. Olhos bem abertos, como sempre, em particular com a máxima atenção aos pontos onde colocávamos os pés. O Pires atrás de mim a seguir as minhas pegadas, sempre que possível. Tinha de ser garantida a ligação entre os grupos instalados. Cada grupo não podia ter dúvidas sobre o posicionamento do grupo à direita e à esquerda, e conhecer bem os respectivos sectores de tiro. Percorríamos naquele momento a corta mato, era a regra sagrada a cumprir, a área que delimitava o fim da capinação do dia anterior, da que ia ser iniciada nesse dia.
Súbito como um raio, trovão violentíssimo, saído das entranhas da terra. Ficamos esmagados e sem respiração. Só a poeira, a envolver-nos por completo, ainda em movimento, perturbava o silêncio absoluto que se seguiu.
Numa fracção de segundo a consciência desperta.
Tinha sido um tremendo rebentamento mesmo por debaixo dos nossos pés. Senti-me projectado em frente e a cair de bruços. A visão reduzida a zero com a enorme e espessa nuvem de poeira à nossa volta. Respiração sufocada pelo pó e cheiro acre dos gases da deflagração.
Apesar de meio cambaleante, levantei-me de imediato. Por instinto, movimentei as pernas para me certificar de que ainda lá estavam. Elas e os pés. Felizmente vi-as a mexer, obedecendo à minha vontade. E então lembrei-me que não vinha só. Olho para trás, à procura do Alf. Pires. Apesar da visão ainda meia turva, o quadro que se me deparava deixou-me atordoado. Na cratera da mina que esperava por nós, no intervalo da minha passada, deduzi depois, jazia uma figura de contornos imprecisos, imóvel e silenciosa, enrodilhada em poeira cinzenta. Se alguém mais nos estivesse a acompanhar naquele momento, ser-me-ia totalmente impossível identificar a quem pertencia aquele corpo. Mas estávamos só nós dois. Era o Alf. Pires. Um dos pés tinha desaparecido. O que restava da perna, a seguir ao joelho, era uma banana meia descascada. A brancura da tíbia e perónio furava entre as massas musculares, toscamente arregaçadas em escuras tiras, quais tentáculos de cefalópode depois de dominado pelo pescador. Quase cobriam o joelho. Por detrás de uma máscara de terra e pó tentava-se adivinhar um rosto. Não se distinguiam olhos, nariz ou boca. A farda, um farrapo esburacado. À primeira vista, não aparentava encobrir mais ferimentos graves. Por estranho que pareça, e para mim foi, não se via sangue naqueles instantes. Nem na perna nem no rosto, nem em qualquer outra parte do corpo. Estaria vivo, estaria já morto? Fiquei na dúvida, naquele momento. Enquanto há vida há esperança, pensaria eu. De facto havia. Um quase sopro de vida diz-me que o Pires ainda cá estava. E uma tentativa de sílabas. Quase uma palavra. E mais outra. Um fio de voz muito baixa e resignada. Daquela vida que pressenti em fase terminal, começava-se agora a perceber um ténue lamento,
– Meu capitão vou morrer …, meu capitão vou morrer …,
Era o murmúrio sereno que lhe saía da boca.
[...]
Mas aqueles vinte e dois anos que, por ironia do destino, se completavam naquele dia 13 de Abril de 1969, não acabaram ali.
[...]
Assalta-me agora o consciente, a mais de quarenta anos de distância daquela manhã, a conversa recente com uma irmã do Pires. Vive em Lisboa. Foi localizada graças à internet e ao meu amigo Magalhães, antigo comandante do 2º GComb. Com ela tive oportunidade de conhecer algo mais do Pires do que os contactos esporádicos durante cerca de dois meses permitiram, no início da nossa comissão na Guiné. Cego das duas vistas, sem testículos, sem uma perna, foi evacuado do Hospital Militar de Bissau para o Hospital Militar da Estrela, em Lisboa, dois dias depois do rebentamento, por sinal no mesmo voo em que regressava a Lisboa o então Presidente do Conselho de Ministros, Professor Marcelo Caetano, após uma visita à Guiné. Ainda falou durante a primeira metade da viagem. Depois calou a boca para sempre.
Era o mais novo de quatro irmãos. Ficaram sem mãe quando o Pires tinha dois anos. Foi a irmã, Margarida Pires, que a partir daí passou a ser sua mãe. Enquanto falava comigo, os olhos fugiam-lhe com frequência para a fotografia em ponto grande, do irmão fardado de uniforme nº1. Enchia o “hall” de entrada da casa, em Lisboa. “O ingénuo entusiasmo com que o meu irmão foi para aquela guerra!…”, lembrava ela. Era todo força e desenvoltura física. Tinha feito o curso de rangers em Lamego. Passado o primeiro ano de comissão na Guiné, veio de férias. O irmão que tinha partido para a guerra não voltou. No final desses dias de descontracção, se pudesse não regressaria. Nunca o disse explicitamente. O rosto e os prolongados silêncios, não deixavam margem para dúvidas sobre o seu estado de espírito, recordava a irmã.
[...]
Em meados de Maio de 1969, chegou-nos a notícia do fim do Alferes Pires no Hospital Militar de Lisboa. Segundo o relatório médico, a causa imediata da morte teria sido uma pneumonia dupla.
[...]
Após este contacto directo com a crueza da guerra, durante muito tempo na minha cabeça:
-Porquê ele e não eu?
Até esse dia 13 de Abril de 1969, uns tiros de arma ligeira e uma ou outra roquetada ou morteirada, sem consequências graves. Agora era o contacto com a morte iminente. Na ocasião, recebi este acontecimento como um cartão de visita das mãos do PAIGC, dando-me as boas vindas àquele palco. As rotinas estavam identificadas. Hoje tenho a certeza que o alvo da mina não era o Pires.
Foi a primeira e uma das principais situações, em que a estrela da sorte me acompanhou naquela guerra.
Afinal também havia minas fora dos trilhos!
[...]
____________
Notas do editor
(1) - Vd. poste de 26 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14665: Tabanca Grande (464): António Melo de Carvalho, Coronel Inf na situação de Reforma, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465/BCAÇ 2861 (Có e Bissum-Naga, 1969/70), Grã-Tabanqueiro 688
(2) - Paz e Guerra - Memórias da Guiné, por António Melo de Carvalho (http://www.memoriasdaguine.com)
Último poste da série de 30 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14548: Bibliografia de uma guerra (72): Do meu livro “O Corredor da Morte”, rebentamento de uma mina PMD 6 (Mário Vitorino Gaspar)
Caro camarada,
Na sequência da colaboração prometida, junto envio um primeiro excerto do livro(2) que publiquei recentemente sobre a Guiné.
Um abraço
Melo de Carvalho
Do livro Paz e Guerra - Memórias da Guiné
Excerto para Luís Graça & Camaradas da Guiné (1)
António Melo de Carvalho
Agora, a mata era menos cerrada. Permitia um campo de observação e tiro razoáveis, fora de hipótese há umas centenas de metros atrás. Era assim possível colocar sistematicamente a segurança imediata à frente da área que estava a ser capinada.
Desde que há uns dias tínhamos ajustado o dispositivo de segurança às novas condições da vegetação, andava com o pressentimento de que algo de novo poderia vir a acontecer, por parte do PAIGC.
A aparente falta de iniciativa dos guerrilheiros perante a nossa estrutura, não estava a condizer com a sua habitual e quase diária agressividade. À distância de mais de quatro décadas, penso que andaríamos a ser observados, com o objectivo de identificarem as nossas novas rotinas.
Todas as manhãs, como responsável pela segurança, definia com os comandantes de pelotão, os respectivos sectores a ocupar, antes do início dos trabalhos. Para isso percorria com eles, a corta mato, a frente onde cada um se instalaria.
Tinha então que palmilhar umas centenas de metros na área que iria ser capinada e na que o fora no dia ou dias anteriores. Nestas caminhadas de preparação do dispositivo, tínhamos que nos desviar dos destroços mais volumosos das árvores e arbustos cortados, e do emaranhado da arborização que ainda aguardava os golpes certeiros das catanas desse dia.
Naquela manhã de 13 de Abril de 1969, procedia aos últimos retoques na estrutura de segurança à capinação e obras da estrada, com o alferes Pires da CCaç. 2312.
O Pires era na ocasião, na ausência do seu capitão, o substituto do comandante de companhia, como oficial mais antigo. Olhos bem abertos, como sempre, em particular com a máxima atenção aos pontos onde colocávamos os pés. O Pires atrás de mim a seguir as minhas pegadas, sempre que possível. Tinha de ser garantida a ligação entre os grupos instalados. Cada grupo não podia ter dúvidas sobre o posicionamento do grupo à direita e à esquerda, e conhecer bem os respectivos sectores de tiro. Percorríamos naquele momento a corta mato, era a regra sagrada a cumprir, a área que delimitava o fim da capinação do dia anterior, da que ia ser iniciada nesse dia.
Súbito como um raio, trovão violentíssimo, saído das entranhas da terra. Ficamos esmagados e sem respiração. Só a poeira, a envolver-nos por completo, ainda em movimento, perturbava o silêncio absoluto que se seguiu.
Numa fracção de segundo a consciência desperta.
Tinha sido um tremendo rebentamento mesmo por debaixo dos nossos pés. Senti-me projectado em frente e a cair de bruços. A visão reduzida a zero com a enorme e espessa nuvem de poeira à nossa volta. Respiração sufocada pelo pó e cheiro acre dos gases da deflagração.
Apesar de meio cambaleante, levantei-me de imediato. Por instinto, movimentei as pernas para me certificar de que ainda lá estavam. Elas e os pés. Felizmente vi-as a mexer, obedecendo à minha vontade. E então lembrei-me que não vinha só. Olho para trás, à procura do Alf. Pires. Apesar da visão ainda meia turva, o quadro que se me deparava deixou-me atordoado. Na cratera da mina que esperava por nós, no intervalo da minha passada, deduzi depois, jazia uma figura de contornos imprecisos, imóvel e silenciosa, enrodilhada em poeira cinzenta. Se alguém mais nos estivesse a acompanhar naquele momento, ser-me-ia totalmente impossível identificar a quem pertencia aquele corpo. Mas estávamos só nós dois. Era o Alf. Pires. Um dos pés tinha desaparecido. O que restava da perna, a seguir ao joelho, era uma banana meia descascada. A brancura da tíbia e perónio furava entre as massas musculares, toscamente arregaçadas em escuras tiras, quais tentáculos de cefalópode depois de dominado pelo pescador. Quase cobriam o joelho. Por detrás de uma máscara de terra e pó tentava-se adivinhar um rosto. Não se distinguiam olhos, nariz ou boca. A farda, um farrapo esburacado. À primeira vista, não aparentava encobrir mais ferimentos graves. Por estranho que pareça, e para mim foi, não se via sangue naqueles instantes. Nem na perna nem no rosto, nem em qualquer outra parte do corpo. Estaria vivo, estaria já morto? Fiquei na dúvida, naquele momento. Enquanto há vida há esperança, pensaria eu. De facto havia. Um quase sopro de vida diz-me que o Pires ainda cá estava. E uma tentativa de sílabas. Quase uma palavra. E mais outra. Um fio de voz muito baixa e resignada. Daquela vida que pressenti em fase terminal, começava-se agora a perceber um ténue lamento,
– Meu capitão vou morrer …, meu capitão vou morrer …,
Era o murmúrio sereno que lhe saía da boca.
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Mas aqueles vinte e dois anos que, por ironia do destino, se completavam naquele dia 13 de Abril de 1969, não acabaram ali.
[...]
Assalta-me agora o consciente, a mais de quarenta anos de distância daquela manhã, a conversa recente com uma irmã do Pires. Vive em Lisboa. Foi localizada graças à internet e ao meu amigo Magalhães, antigo comandante do 2º GComb. Com ela tive oportunidade de conhecer algo mais do Pires do que os contactos esporádicos durante cerca de dois meses permitiram, no início da nossa comissão na Guiné. Cego das duas vistas, sem testículos, sem uma perna, foi evacuado do Hospital Militar de Bissau para o Hospital Militar da Estrela, em Lisboa, dois dias depois do rebentamento, por sinal no mesmo voo em que regressava a Lisboa o então Presidente do Conselho de Ministros, Professor Marcelo Caetano, após uma visita à Guiné. Ainda falou durante a primeira metade da viagem. Depois calou a boca para sempre.
Era o mais novo de quatro irmãos. Ficaram sem mãe quando o Pires tinha dois anos. Foi a irmã, Margarida Pires, que a partir daí passou a ser sua mãe. Enquanto falava comigo, os olhos fugiam-lhe com frequência para a fotografia em ponto grande, do irmão fardado de uniforme nº1. Enchia o “hall” de entrada da casa, em Lisboa. “O ingénuo entusiasmo com que o meu irmão foi para aquela guerra!…”, lembrava ela. Era todo força e desenvoltura física. Tinha feito o curso de rangers em Lamego. Passado o primeiro ano de comissão na Guiné, veio de férias. O irmão que tinha partido para a guerra não voltou. No final desses dias de descontracção, se pudesse não regressaria. Nunca o disse explicitamente. O rosto e os prolongados silêncios, não deixavam margem para dúvidas sobre o seu estado de espírito, recordava a irmã.
[...]
Em meados de Maio de 1969, chegou-nos a notícia do fim do Alferes Pires no Hospital Militar de Lisboa. Segundo o relatório médico, a causa imediata da morte teria sido uma pneumonia dupla.
[...]
Após este contacto directo com a crueza da guerra, durante muito tempo na minha cabeça:
-Porquê ele e não eu?
Até esse dia 13 de Abril de 1969, uns tiros de arma ligeira e uma ou outra roquetada ou morteirada, sem consequências graves. Agora era o contacto com a morte iminente. Na ocasião, recebi este acontecimento como um cartão de visita das mãos do PAIGC, dando-me as boas vindas àquele palco. As rotinas estavam identificadas. Hoje tenho a certeza que o alvo da mina não era o Pires.
Foi a primeira e uma das principais situações, em que a estrela da sorte me acompanhou naquela guerra.
Afinal também havia minas fora dos trilhos!
[...]
____________
Notas do editor
(1) - Vd. poste de 26 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14665: Tabanca Grande (464): António Melo de Carvalho, Coronel Inf na situação de Reforma, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 2465/BCAÇ 2861 (Có e Bissum-Naga, 1969/70), Grã-Tabanqueiro 688
(2) - Paz e Guerra - Memórias da Guiné, por António Melo de Carvalho (http://www.memoriasdaguine.com)
Último poste da série de 30 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14548: Bibliografia de uma guerra (72): Do meu livro “O Corredor da Morte”, rebentamento de uma mina PMD 6 (Mário Vitorino Gaspar)
Guiné 63/74 - P14807: Notas de leitura (732): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (3) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Junho de 2015:
Queridos amigos,
As memórias que o antigo presidente do Conselho de Estado da Guiné-Bissau nos deixou foram notas, na maior parte dos casos, sincopadas e a requerer enchimento e aprofundamento de análise. Nos seus discursos encontramos, por muito que a afirmação surpreenda, um homem entusiasmado mas lúcido, ciente das limitações mas confiante que estivesse próximo um virar de página e que a Guiné-Bissau viesse a provar um ciclo prodigioso de desenvolvimento. Não foi assim, como é sabido. E a obstinação no tabu da unidade Guiné-Cabo Verde volatizou-se numa noite de golpe de Estado que deixou na maior das desorientações todos aqueles que tinham confiado no sonho de Amílcar Cabral.
Um abraço do
Mário
O regresso das memórias de Luís Cabral (3)
Beja Santos
Em “Memórias e Discursos”, temos oportunidade de reler algumas peças políticas de Luís Cabral entre 1973 e 1980 e de conhecer os textos esparsos que terão constituído o seu bloco de notas para a redação de uma obra de fôlego onde podia ter justificado os tempos da sua liderança política à frente dos destinos da Guiné-Bissau, Fundação Amílcar Cabral, 2012. É interessante verificar, quando se releem os seus discursos, a ênfase posta na unidade Guiné-Cabo Verde, no elogio permanente à luta da libertação, à política de não-alinhamento, à evocação dos heróis. Revela um político lúcido e bem informado, sabedor que a Bissau do pós-guerra é uma cidade com excesso populacional, incita-a a regressar aos campos. E se diz que a corrupção e o oportunismo eram armas utilizadas pelo inimigo para impedir que as populações dos centros urbanos se juntassem aos combatentes do PAIGC, dirá mais adiante, em 1978, que uma parte do património público parece estar a saque. Di-lo num discurso no dia do trabalhador, em Contuboel: “Temos que criticar aquelas pessoas que se aproveitam do trabalho do nosso povo, que roubam coisas da nossa terra. Hoje, dia dos trabalhadores, quero louvar os trabalhadores do nosso serviço da Segurança que conseguiram descobrir os ladrões que estavam dentro dos Armazéns do Povo”. Dirige uma saudação aos agricultores, aos trabalhadores das serrações, aos pescadores, refere empresas que em breve cairão no descalabro por má gestão, por roubos, por falta de matérias-primas, por megalomania.
No discurso do fim do ano de 1979, volta a referir-se a incúrias e insucessos, e põe o dedo do inimigo dentro da própria cidadela, os que não chegam a horas, os que não querem trabalhar, os faltam escandalosamente ao dever: “Há pessoas a quem podemos confiar qualquer bem do Estado ou riqueza da nossa terra porque sabemos que o vão defender e preservar e que, quando adquirimos um carro, um trator, uma máquina ou qualquer material para o nosso trabalho, é preciso estimá-lo. Há indivíduos que pegam num carro, fazem duas viagens e arrebentam-no. Muitas vezes um barco que pode durar dezenas de anos, depois de dois ou três meses é posto de lado por falta de cuidados. Se fizermos um balanço de tudo aquilo que destruímos durante estes últimos cinco anos, todos os carros, barcos, parece-me que se fosse possível recuperar esse dinheiro poderíamos fazer grandes investimentos nesta nova década que vai começar agora”. Volta a referir-se ao subemprego na capital e aos vagabundos e ladrões que perturbam a tranquilidade das pessoas.
Outra tónica que acompanha os seus discursos prende-se com os grandes projetos, grande parte deles dependentes da ajuda externa. E também não ilude o grande quadro de carências. Por exemplo: “Temos problemas graves no domínio das infraestruturas. Há ainda algodão que fica em tabancas longínquas do país por não haver estradas convenientes. Ainda temos problemas com portos, estradas, pontes, jangadas, mas também com escolas e hospitais. Mas sabemos que somos capazes de resolver esses problemas. A situação hoje, para todo o indivíduo sério, honesto e patriota, é de longe melhor do que aquela que encontrámos no momento do fim da guerra”. Mais otimismo e crença nos amanhãs, não era possível manifestar.
E depois assistimos a uma entrevista que se realizou em Miraflores em 10 de Fevereiro de 2000. É inconcebível como se publica um texto destes, é verdadeiro desconchavo, a despeito de algumas tiradas sentimentais, de recordações cheias de evocação e ternura. Luís Cabral fala da sua infância em Cabo Verde, depois da vida em Bissau, dos balbucios da luta nacionalista. Tudo decorre num tom altamente estimável, e de repente são frases cortadas, risos, reticências, tudo atinge um ritmo desmandado e questionamos qual o benefício que esta entrevista traz à imagem do lutador e do político. E tudo finaliza com azedume e ressentimento, Nino Vieira está no centro das queixas do político exilado, quando ele diz: “Aquilo que é preciso muita gente dar a sua contribuição para se fazer, um homem só pode estragar. Começasse a criar toda aquela insegurança, porque depois de um longo período colonial cria-se no indivíduo uma insegurança. Então, ele segue, que muitos seguem o caminho mais fácil para conseguir algumas coisas. Na Guiné, chegou-se a um ponto quem não andasse atrás do Nino não tinha hipótese nenhuma”. E a entrevista termina abruptamente.
Os estudiosos da luta da independência e do primeiro ciclo da governação da Guiné-Bissau deparam-se com silêncios, lacunas, desaparecimento de documentos a um ritmo incrível. Ninguém sabe onde param as peças fundamentais do julgamento dos acusados pelo assassinato de Amílcar Cabral. A guerra civil de 1998-1999 fez desaparecer importantíssima documentação, e mesmo documentação de Amílcar Cabral quando veio de Conacri também desapareceu. Fica-se com a ideia de que Aristides Pereira deixou na penumbra inúmeros factos. A historiografia recente é difusa, incompleta e por vezes incongruente. Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa precisaram de vir estudar para Portugal para legar à posterioridade os documentos valiosos que produziram. Um homem talentoso como Carlos Lopes é um alto funcionário das Nações Unidas e parece que não voltou a escrever mais. Os velhos líderes vão desaparecendo e o seu testemunho não fica registado, os primeiros-ministros e ministros também parecem esquecidos que os seus registos seriam da maior utilidade. Ficamos circunscritos aos jornais e aos blogues para conhecer a contemporaneidade. É lastimável que não se consiga pôr cobro a tanto corredor escurecido da história recente da Guiné-Bissau. Oxalá que este promissor novo ciclo da vida democrática altere esta atmosfera de medos e terríveis cumplicidades.
____________
Nota do editor
Postes anteriores de:
22 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14782: Notas de leitura (730): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (1) (Mário Beja Santos)
e
26 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14798: Notas de leitura (731): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (2) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
As memórias que o antigo presidente do Conselho de Estado da Guiné-Bissau nos deixou foram notas, na maior parte dos casos, sincopadas e a requerer enchimento e aprofundamento de análise. Nos seus discursos encontramos, por muito que a afirmação surpreenda, um homem entusiasmado mas lúcido, ciente das limitações mas confiante que estivesse próximo um virar de página e que a Guiné-Bissau viesse a provar um ciclo prodigioso de desenvolvimento. Não foi assim, como é sabido. E a obstinação no tabu da unidade Guiné-Cabo Verde volatizou-se numa noite de golpe de Estado que deixou na maior das desorientações todos aqueles que tinham confiado no sonho de Amílcar Cabral.
Um abraço do
Mário
O regresso das memórias de Luís Cabral (3)
Beja Santos
Em “Memórias e Discursos”, temos oportunidade de reler algumas peças políticas de Luís Cabral entre 1973 e 1980 e de conhecer os textos esparsos que terão constituído o seu bloco de notas para a redação de uma obra de fôlego onde podia ter justificado os tempos da sua liderança política à frente dos destinos da Guiné-Bissau, Fundação Amílcar Cabral, 2012. É interessante verificar, quando se releem os seus discursos, a ênfase posta na unidade Guiné-Cabo Verde, no elogio permanente à luta da libertação, à política de não-alinhamento, à evocação dos heróis. Revela um político lúcido e bem informado, sabedor que a Bissau do pós-guerra é uma cidade com excesso populacional, incita-a a regressar aos campos. E se diz que a corrupção e o oportunismo eram armas utilizadas pelo inimigo para impedir que as populações dos centros urbanos se juntassem aos combatentes do PAIGC, dirá mais adiante, em 1978, que uma parte do património público parece estar a saque. Di-lo num discurso no dia do trabalhador, em Contuboel: “Temos que criticar aquelas pessoas que se aproveitam do trabalho do nosso povo, que roubam coisas da nossa terra. Hoje, dia dos trabalhadores, quero louvar os trabalhadores do nosso serviço da Segurança que conseguiram descobrir os ladrões que estavam dentro dos Armazéns do Povo”. Dirige uma saudação aos agricultores, aos trabalhadores das serrações, aos pescadores, refere empresas que em breve cairão no descalabro por má gestão, por roubos, por falta de matérias-primas, por megalomania.
No discurso do fim do ano de 1979, volta a referir-se a incúrias e insucessos, e põe o dedo do inimigo dentro da própria cidadela, os que não chegam a horas, os que não querem trabalhar, os faltam escandalosamente ao dever: “Há pessoas a quem podemos confiar qualquer bem do Estado ou riqueza da nossa terra porque sabemos que o vão defender e preservar e que, quando adquirimos um carro, um trator, uma máquina ou qualquer material para o nosso trabalho, é preciso estimá-lo. Há indivíduos que pegam num carro, fazem duas viagens e arrebentam-no. Muitas vezes um barco que pode durar dezenas de anos, depois de dois ou três meses é posto de lado por falta de cuidados. Se fizermos um balanço de tudo aquilo que destruímos durante estes últimos cinco anos, todos os carros, barcos, parece-me que se fosse possível recuperar esse dinheiro poderíamos fazer grandes investimentos nesta nova década que vai começar agora”. Volta a referir-se ao subemprego na capital e aos vagabundos e ladrões que perturbam a tranquilidade das pessoas.
Outra tónica que acompanha os seus discursos prende-se com os grandes projetos, grande parte deles dependentes da ajuda externa. E também não ilude o grande quadro de carências. Por exemplo: “Temos problemas graves no domínio das infraestruturas. Há ainda algodão que fica em tabancas longínquas do país por não haver estradas convenientes. Ainda temos problemas com portos, estradas, pontes, jangadas, mas também com escolas e hospitais. Mas sabemos que somos capazes de resolver esses problemas. A situação hoje, para todo o indivíduo sério, honesto e patriota, é de longe melhor do que aquela que encontrámos no momento do fim da guerra”. Mais otimismo e crença nos amanhãs, não era possível manifestar.
E depois assistimos a uma entrevista que se realizou em Miraflores em 10 de Fevereiro de 2000. É inconcebível como se publica um texto destes, é verdadeiro desconchavo, a despeito de algumas tiradas sentimentais, de recordações cheias de evocação e ternura. Luís Cabral fala da sua infância em Cabo Verde, depois da vida em Bissau, dos balbucios da luta nacionalista. Tudo decorre num tom altamente estimável, e de repente são frases cortadas, risos, reticências, tudo atinge um ritmo desmandado e questionamos qual o benefício que esta entrevista traz à imagem do lutador e do político. E tudo finaliza com azedume e ressentimento, Nino Vieira está no centro das queixas do político exilado, quando ele diz: “Aquilo que é preciso muita gente dar a sua contribuição para se fazer, um homem só pode estragar. Começasse a criar toda aquela insegurança, porque depois de um longo período colonial cria-se no indivíduo uma insegurança. Então, ele segue, que muitos seguem o caminho mais fácil para conseguir algumas coisas. Na Guiné, chegou-se a um ponto quem não andasse atrás do Nino não tinha hipótese nenhuma”. E a entrevista termina abruptamente.
Os estudiosos da luta da independência e do primeiro ciclo da governação da Guiné-Bissau deparam-se com silêncios, lacunas, desaparecimento de documentos a um ritmo incrível. Ninguém sabe onde param as peças fundamentais do julgamento dos acusados pelo assassinato de Amílcar Cabral. A guerra civil de 1998-1999 fez desaparecer importantíssima documentação, e mesmo documentação de Amílcar Cabral quando veio de Conacri também desapareceu. Fica-se com a ideia de que Aristides Pereira deixou na penumbra inúmeros factos. A historiografia recente é difusa, incompleta e por vezes incongruente. Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa precisaram de vir estudar para Portugal para legar à posterioridade os documentos valiosos que produziram. Um homem talentoso como Carlos Lopes é um alto funcionário das Nações Unidas e parece que não voltou a escrever mais. Os velhos líderes vão desaparecendo e o seu testemunho não fica registado, os primeiros-ministros e ministros também parecem esquecidos que os seus registos seriam da maior utilidade. Ficamos circunscritos aos jornais e aos blogues para conhecer a contemporaneidade. É lastimável que não se consiga pôr cobro a tanto corredor escurecido da história recente da Guiné-Bissau. Oxalá que este promissor novo ciclo da vida democrática altere esta atmosfera de medos e terríveis cumplicidades.
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Nota do editor
Postes anteriores de:
22 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14782: Notas de leitura (730): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (1) (Mário Beja Santos)
e
26 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14798: Notas de leitura (731): “Memórias e Discursos” de Luís Cabral, uma edição da Fundação Amílcar Cabral com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, 2014 (2) (Mário Beja Santos)
Guiné 63/74 - P14806: Álbum fotográfico de Jaime Machado (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70) - Parte III: O grave acidente com arma de fogo que vitimou o Uam Sambu, do Pel Caç Nat 52, na manhã de 1/1/1970
Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > 1 de janeiro de 1970 > Uma enfermeira paraquedista prepara o moribundo Uam Sambu para a evacuação para o HM 241... O camarada, de costas, com o camuflado todo ensanguentado é o Mário Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, de acordo com a identificação feita pelo fotógrafo, o Jaime Machado. À saída da Missão do Sono, em Bambadincazinho, o Sambu foi vítima de um grave acidente com arma de fogo que lhe custou a vida. Esta foto, no meu entender, só pode ter sido tirada neste dia, trágico, para todos nós. Em todo o caso, estas legendas são "por nossa conta e risco".
Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > 1 de janeiro de 1970 > Não conseguimos identificar a enfermeira paraquedista que, nessa manhã, a do primeiro dia do novo ano de 1970, veio de DO 27 para tentar salvar o Sambu,,, Em vão, ele irá morrer na viagem... Vamos tentar saber quem era a enfermeira...
Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > 1 de janeiro de 1970 > A DO 27 que no primeiro dia do novo ano de 1970, logo de manhã cedo, veio fazer evacuação do Sambu. Do lado esquerdo, de perfil, vê-se o piloto, com "cara de puto", alferes...
Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > 1 de janeiro de 1970 > Outro pormenor dos primeiros socorros que foram prestados ao Sambu antes de ser evacuado. Era médico do batalhão o Vidal Saraiva. À esquerda do Beja Santos, sob a asa do DO 27, com a mão direita à cintura, em pose expectante, parece-se ser o fur mil enf da CCAÇ 12, o meu amigo João Carreiro Martins, de quem não tenho notícias há uns anos.
Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > 1 de janeiro de 1970 > Um DO 27 a levantar voo, de regresso a Bissau... Pode ser a mesma da foto anterior, como pode ser outra... Tudo indica que esta foto tenha sido tirada noutra altura e noutro lugar. Parece-me ser a pista de Bafatá, avaliar pelo casario ao fundo... (O Jaime Machado diz-me que que é Bambadinca e vem na sequência das fotos anteriores,,,). (LG)
1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do nosso camarada Jaime Machado, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70) (*), que vive em Senhora da Hora, Matosinhos [, foto atual à direita], e é contemporâneo do Mário Beja Santos.
Ao ver estas fotos, tive um arrepio, quando o Jaime Machado me disse que o camarada com o camuflado ensanguentado era o Beja Santos, o nosso "Tigre de Missirá"...
Lembrei-me imediatamente deste trágico acidente que ceifou a vida ao Uam Sambú. Fui pesquisar os escritos do Mário Beja Santos. Aqui vai um excerto do poste P2540, de 15/2/2008 (**)
(...) O Setúbal já nos tinha avisado que viria o Xabregas [, condutor,] ao amanhecer, eu que não estivesse preocupado. Assim que clareou, todos de pé, arrumadas as mantas, satisfeitas as necessidades mais prementes nas redondezas, esperámos a tiritar a aproximação dos faróis do Unimog, procurando desentorpecer os músculos. Assim foi naquele amanhecer de 1 de Janeiro de 1970. O Xabregas trouxe um burrinho, o que significava dez militares sentados, 20 a pé. Dez não, um outro saltava para o lado do condutor, mais um outro encavalitava-se junto do alferes. Uam Sambu senta-se ao pé de mim e diz a Quebá Sissé:
- Sobe, Doutor, dá cá a mão!
Vejo o riso feliz e sempre aberto de Quebá Sissé, segue-se o estrondo inusitado de uma rajada de G3, procuro levantar-me, oiço gritos de aflição, imprecações, um coro desorientado de protestos, e é nisto que Uam me cai nos braços, enterrando-me no assento:
- Alferes, estou morto!
Com Uam no meu colo, vejo o seu peito esburacado, os lábios num esgar de dor, o olhar a esmorecer, o sangue passa para a minha farda em abundância. O burrinho corre em poucos minutos nas mãos expeditas do Xabregas até à enfermaria. Vou a correr tirar da cama o [alf mil médico] Vidal Saraiva que se debruça atarantado sobre Uam com o peito tracejado por diferentes perfurações.
Cá fora, desenrola-se uma outra tragédia, há quem ameace o Doutor, ouve-se a palavra assassino, ouvem-se as expressões impensadas do costume. Ora, tinha sido o mais estúpido dos acidentes, o malogrado Doutor ao subir metera o dedo no gatilho e fulminara Uam, o Doutor era a alma mais pacífica do 52, ninguém lhe conhecia azedume, aguentara estoicamente todos os comentários ao seu trabalho de cozinheiro. Percebendo que era necessário pôr termo àquela ira dementada, disse ao Domingos:
- Não quero aqui ninguém, tudo para a tabanca, tu desces imediatamente com eles e explicas que foi um acidente, quem tocar no Doutor tramo-lhe a vida.
Dita a bazófia, acerquei-me da marquesa onde o Vidal Saraiva me avisou:
- Só por milagre se salva, tem os órgãos vitais atingidos, veja o sangue aos cantos da boca, pulmões e rins têm lesões que presumo serem irreversíveis. Vamos ver como é que ele se aguenta até Bissau.
O DO [27] chegou rapidamente e lá fomos todos a acompanhar o moribundo até à pista de aviação, Binta, a mulher do Uam, gritava o seu desespero, o Pel Caç Nat 52 assistia ao transporte de Uam num silêncio total, estarrecido. Dispersámos, o Vidal Saraiva era o mais acabrunhado entre nós. (...)
2. Comentário do editor:
Não sei se o Beja Santos alguma vez chegou a ver estas fotos. São imagens obtidas a partir de "slides". O Jaime e o seu pessoal sairiam de Bambadinca um mês e picos depois, sendo rendidos pelo J. L, Vacas de Carvalho, e o seu Pel Rec Daimler 2206. Os "slides" eram revelados no norte da Europa (Suécia, por ex.). E o correio era moroso. De qualquer modo, gostaríamos de ter um "feedback" do nosso querido amigo e camarada Beja Santos, além de incansável e generoso grã-tabanqueiro, para quem mandamos um alfabravo fraterno, extensivo ao autor das fotos. O Mário e o Jaime foram contemporâneos de Bambadinca, com uma pequena de diferenças de meses. Eu também estive com eles, lá, na mesma altura, desde julho de 1969... O Jaime saiu em fevereiro de 1970, e o Mário, dois meses depois, em abril de 1970, se não erro.
3. Há mortos que nunca se enterram
(...) Acerca do tema que agora circula no blogue (..), queria também dizer o seguinte: mortos que ficam são os que matamos com as nossas mãos; mortos dolorosos são os que não podemos enterrar e que nos culpam por um determinado acto precipitado; mortos são aqueles cuja morte não percebemos como Uam Sambu que morreu nos meus braços ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970, num estúpido acidente de G3. O morto que vou falar tem a ver com uma amizade profunda, o insólito da notícia no dia em que me casei pelo civil [, o alf mil art Carlos José Paulo de Sampaio, natural de Anadia, mobilizado para Moçambique, pelo BCAÇ nº 10, em 12 de Abril de 1969, morto em combate no norte de Moçambique em 2/2/1970]. (...) [Excerto de poste do Beja Santos, P1740, de 8/5/2007]
________________
Notas do editor;
(*) Último poste da série > 24 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14790: Álbum fotográfico de Jaime Machado (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70) - Parte II: Ao serviço do BART 1904 (de maio a setembro de 1968) e do BCAÇ 2852 (de outubro de 1968 a fevereiro de 1970)
(**) Vd. poste de 15 de fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2540: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (20): A morte de Uam Sambu, na Missão do Sono, em Bambadincazinho
Cópia do poema escrito por Beja Santos, na morte do Uam Sambu: "O pseudopoema foi escrito logo a seguir à morte de Uam, penso que a 2 de Janeiro [de 1970]. Vim para Bissau a 12, reescrevi-o e enviei-o à Cristina, tal como se pode ver, cheio de dor. Estou doente, mas comecei a dormir melhor. Digo à Cristina que estou ansioso por a ver, Suspeito que será em Fevereiro, não será assim. Saio de Bissau, e com o Pel Caç Nat 52 vamos para a operação Topázio Valioso" (BS).
Foto (e legenda): © Beja Santos (2007). Todos os direitos reservados.
(*) Último poste da série > 24 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14790: Álbum fotográfico de Jaime Machado (ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70) - Parte II: Ao serviço do BART 1904 (de maio a setembro de 1968) e do BCAÇ 2852 (de outubro de 1968 a fevereiro de 1970)
(**) Vd. poste de 15 de fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2540: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (20): A morte de Uam Sambu, na Missão do Sono, em Bambadincazinho
Cópia do poema escrito por Beja Santos, na morte do Uam Sambu: "O pseudopoema foi escrito logo a seguir à morte de Uam, penso que a 2 de Janeiro [de 1970]. Vim para Bissau a 12, reescrevi-o e enviei-o à Cristina, tal como se pode ver, cheio de dor. Estou doente, mas comecei a dormir melhor. Digo à Cristina que estou ansioso por a ver, Suspeito que será em Fevereiro, não será assim. Saio de Bissau, e com o Pel Caç Nat 52 vamos para a operação Topázio Valioso" (BS).
Foto (e legenda): © Beja Santos (2007). Todos os direitos reservados.
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BCAÇ 2852,
Daimler,
enfermeiras pára-quedistas,
Jaime Machado,
João Carreiro Martins,
Missão do Sono,
Pel Caç Nat 52,
Pel Rec Daimler 2046,
Vidal Saraiva (médico),
Xitole
Guiné 63/74 - P14805: Parabéns a você (928): José Firmino, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71) e Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil do Pel Ind Mort 912 (Guiné, 1964/66)
Nota do editor
Último poste da série de 27 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14801: Parabéns a você (927): Vítor Caseiro, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4641 (Guiné, 1973/74)
domingo, 28 de junho de 2015
Guiné 63/74 - P14804: Libertando-me (Tony Borié) (23): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (4)
Vigésimo terceiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Glória, Lola, a Ruça (4)
Hoje, fomos à pesca na praia, uma cadeira, duas canas de pesca e uns calções já um pouco usados, mesmo quase rotos, mas são os nossos preferidos. Estava um pouco de nevoeiro, não havia peixe, ou se havia andava farto, não pegava na isca, era quase como se as canas de pesca estivessem no nosso quintal, já havia dificuldade em ver a ponta das canas de de tanto olhar. Tirámos a t-shirt para apanhar algum sol no corpo, quando o nevoeiro desaparecia por algum tempo. Começámos por ler um livrito, só para entreter, a Glória aparece, cedemos- lhe a cadeira, sentando-nos num pequeno balde que sempre nos acompanha quando vamos à pesca, que virámos ao contrário. Ela, com aqueles cabelos já grisalhos, mantendo aquele sorriso jovem, apesar de já andar há umas dezenas de anos os tais “entas”, continua a contar-nos a sua história. Cá vai.
Se ainda estão lembrados, o Jorge e a Glória iam a caminho da fronteira com os USA, para a atravessarem clandestinamente, os mensageiros que os acompanhavam, no local que entendiam que era o certo, pararam, explicaram as últimas instruções, a porta da pequena camioneta, abriu-se, já era noite, saíram todos ao mesmo tempo, com a ordem de correrem o mais que podiam naquela direcção, pois do lado de lá daquelas pequenas montanhas era os Estados Unidos, onde alguém os ia contactar. Boa sorte.
A Glória e o Jorge correram abaixados, o Jorge tropeçou numa pedra e caiu, a Glória parou, vem para trás, ajuda o marido a levantar-se, pega-lhe na mão e arrasta-o atrás de si, como fazia aos irmãos em pequenos, e diz-lhe:
- Anda Jorge, esta é a oportunidade da nossa vida.
Dando-lhe coragem, correram e caminharam por mais de uma hora, com os jovens brasileiros sempre atrás, os outros companheiros deixaram de se ver, não sabem se tomaram outra direcção, ou se foram parados pela polícia de fronteira. Contavam truques de passarem a fronteira, em que alguns eram as “cobaias”. Essas “cobaias” iam só para manterem a polícia de fronteira ocupada, enquanto outros passavam livres. Eram “cobaias” profissionais, eram pagos para isso, sabiam que depois de uns dias presos eram mandados para o seu país, sem nada lhes acontecer.
De súbito, dois homens surgem na sua frente e lhes comunicam numa linguagem entre o espanhol e o português, mas com sotaque brasileiro:
- Ok, já estão nos Estados Unidos, venham atrás de nós.
Tanto a Glória como o Jorge, assim como os jovens brasileiros, ficaram assustados, a Glória, apertou mesmo a faca, que trazia embrulhada num lenço na mão, quase que se cortava a si mesmo, tal era o medo. Viram a cara dos homens, traziam duas espingardas caçadeiras de canos serrados, usavam calções, pareciam mesmo “passadores”. Seguiram-nos.
Tinham uma carrinha aberta atrás, escondida alguns metros à frente, onde seguiram, os dois homens na frente, a Glória, o Jorge e os jovens brasileiros, atrás. Andaram umas horas em direcção ao norte, por estradas de terra, levantando muito pó. Abriram as sacas, puseram qualquer coisa a encobrir a boca e o nariz, para puderem respirar por causa do pó. Era quase madrugada quando pararam. Os dois homens pedem cinquenta dólares a cada um e que sigam naquela direcção onde alguém os espera, terminando com os desejos de boa sorte.
A Glória pensou logo que esta atitude dos cinquenta dólares era um roubo, pois já tinham pago à organização do “passador” o exigido no contrato. Depois de andarem alguns quilómetros, muito próximo da estrada rápida número 10, que atravessa todo o continente desde Los Angeles, no estado da Califórnia, até Jacksonville, no estado da Flórida, surge um riacho, seguido de uma povoação, onde aproveitam para se lavarem do pó, bebendo alguma água, entrando de novo em contacto nessa povoação, com alguém que os esperava e encaminhou.
Aqui, com a ajuda desse alguém, compram nova roupa, já com outro aspecto, telefonam a amigos dos pais dos jovens brasileiros, pois eles vinham com a recomendação de se dirigirem à Florida, onde essas pessoas lhe deram todas as indicações de como deviam de proceder.
Seguem tudo à risca, sempre orientados pelo instinto da Glória, algumas vezes por estradas secundárias, andam de táxi, de camioneta e tomam o comboio. Passados cinco dias, aparecem, não duas mas sim quatro pessoas, em Miami. A Glória, o Jorge e os jovens brasileiros, cansados, com um aspecto terrível, vão bater à porta dos amigos brasileiros.
A colónia brasileira, naquela região da Florida, é muito grande, os amigos tinham muitos contactos, a Glória, passados uns dias, vai trabalhar com uma senhora também brasileira, nas limpezas de casas de famílias com algumas posses financeiras, que vivem nas praias. Uma dessas famílias tinha filhos pequenos e precisava de alguém que os cuidasse em casa. Depois de verem a maneira como a Glória lidava com crianças, decidem contratá-la para trabalhar lá em casa e, deste modo, a legalizariam assim como ao Jorge, se este aceitasse ser algumas vezes o motorista, limpar e cuidar do enorme barco, trabalhar nos jardins, além de outras ocupações no exterior da casa.
Foram sempre dedicados, passados três anos e pouco, já legalizados, com toda a documentação para poderem residir e trabalhar nos Estados Unidos, decidem continuar ao serviço destes senhores, mas vivendo numa sua casa, que entretanto alugaram no meio da comunidade brasileira. Iam economizando algum dinheiro, principalmente nos primeiros anos, em que trabalhando dentro da enorme casa de seus patrões, não tinham qualquer despesa. Quando entenderam que já podiam olhar novos horizontes, decidiram comprar uma oficina onde se faziam gradeamentos em ferro, que estava à venda, propriedade de umas pessoas já idosas, oriundas do Chile, que se queriam reformar e regressar ao país de origem.
Tony Borie, Julho de 2015
(continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 21 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14776: Libertando-me (Tony Borié) (22): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (3)
Glória, Lola, a Ruça (4)
Hoje, fomos à pesca na praia, uma cadeira, duas canas de pesca e uns calções já um pouco usados, mesmo quase rotos, mas são os nossos preferidos. Estava um pouco de nevoeiro, não havia peixe, ou se havia andava farto, não pegava na isca, era quase como se as canas de pesca estivessem no nosso quintal, já havia dificuldade em ver a ponta das canas de de tanto olhar. Tirámos a t-shirt para apanhar algum sol no corpo, quando o nevoeiro desaparecia por algum tempo. Começámos por ler um livrito, só para entreter, a Glória aparece, cedemos- lhe a cadeira, sentando-nos num pequeno balde que sempre nos acompanha quando vamos à pesca, que virámos ao contrário. Ela, com aqueles cabelos já grisalhos, mantendo aquele sorriso jovem, apesar de já andar há umas dezenas de anos os tais “entas”, continua a contar-nos a sua história. Cá vai.
Se ainda estão lembrados, o Jorge e a Glória iam a caminho da fronteira com os USA, para a atravessarem clandestinamente, os mensageiros que os acompanhavam, no local que entendiam que era o certo, pararam, explicaram as últimas instruções, a porta da pequena camioneta, abriu-se, já era noite, saíram todos ao mesmo tempo, com a ordem de correrem o mais que podiam naquela direcção, pois do lado de lá daquelas pequenas montanhas era os Estados Unidos, onde alguém os ia contactar. Boa sorte.
A Glória e o Jorge correram abaixados, o Jorge tropeçou numa pedra e caiu, a Glória parou, vem para trás, ajuda o marido a levantar-se, pega-lhe na mão e arrasta-o atrás de si, como fazia aos irmãos em pequenos, e diz-lhe:
- Anda Jorge, esta é a oportunidade da nossa vida.
Dando-lhe coragem, correram e caminharam por mais de uma hora, com os jovens brasileiros sempre atrás, os outros companheiros deixaram de se ver, não sabem se tomaram outra direcção, ou se foram parados pela polícia de fronteira. Contavam truques de passarem a fronteira, em que alguns eram as “cobaias”. Essas “cobaias” iam só para manterem a polícia de fronteira ocupada, enquanto outros passavam livres. Eram “cobaias” profissionais, eram pagos para isso, sabiam que depois de uns dias presos eram mandados para o seu país, sem nada lhes acontecer.
De súbito, dois homens surgem na sua frente e lhes comunicam numa linguagem entre o espanhol e o português, mas com sotaque brasileiro:
- Ok, já estão nos Estados Unidos, venham atrás de nós.
Tanto a Glória como o Jorge, assim como os jovens brasileiros, ficaram assustados, a Glória, apertou mesmo a faca, que trazia embrulhada num lenço na mão, quase que se cortava a si mesmo, tal era o medo. Viram a cara dos homens, traziam duas espingardas caçadeiras de canos serrados, usavam calções, pareciam mesmo “passadores”. Seguiram-nos.
Tinham uma carrinha aberta atrás, escondida alguns metros à frente, onde seguiram, os dois homens na frente, a Glória, o Jorge e os jovens brasileiros, atrás. Andaram umas horas em direcção ao norte, por estradas de terra, levantando muito pó. Abriram as sacas, puseram qualquer coisa a encobrir a boca e o nariz, para puderem respirar por causa do pó. Era quase madrugada quando pararam. Os dois homens pedem cinquenta dólares a cada um e que sigam naquela direcção onde alguém os espera, terminando com os desejos de boa sorte.
A Glória pensou logo que esta atitude dos cinquenta dólares era um roubo, pois já tinham pago à organização do “passador” o exigido no contrato. Depois de andarem alguns quilómetros, muito próximo da estrada rápida número 10, que atravessa todo o continente desde Los Angeles, no estado da Califórnia, até Jacksonville, no estado da Flórida, surge um riacho, seguido de uma povoação, onde aproveitam para se lavarem do pó, bebendo alguma água, entrando de novo em contacto nessa povoação, com alguém que os esperava e encaminhou.
Aqui, com a ajuda desse alguém, compram nova roupa, já com outro aspecto, telefonam a amigos dos pais dos jovens brasileiros, pois eles vinham com a recomendação de se dirigirem à Florida, onde essas pessoas lhe deram todas as indicações de como deviam de proceder.
Seguem tudo à risca, sempre orientados pelo instinto da Glória, algumas vezes por estradas secundárias, andam de táxi, de camioneta e tomam o comboio. Passados cinco dias, aparecem, não duas mas sim quatro pessoas, em Miami. A Glória, o Jorge e os jovens brasileiros, cansados, com um aspecto terrível, vão bater à porta dos amigos brasileiros.
A colónia brasileira, naquela região da Florida, é muito grande, os amigos tinham muitos contactos, a Glória, passados uns dias, vai trabalhar com uma senhora também brasileira, nas limpezas de casas de famílias com algumas posses financeiras, que vivem nas praias. Uma dessas famílias tinha filhos pequenos e precisava de alguém que os cuidasse em casa. Depois de verem a maneira como a Glória lidava com crianças, decidem contratá-la para trabalhar lá em casa e, deste modo, a legalizariam assim como ao Jorge, se este aceitasse ser algumas vezes o motorista, limpar e cuidar do enorme barco, trabalhar nos jardins, além de outras ocupações no exterior da casa.
Foram sempre dedicados, passados três anos e pouco, já legalizados, com toda a documentação para poderem residir e trabalhar nos Estados Unidos, decidem continuar ao serviço destes senhores, mas vivendo numa sua casa, que entretanto alugaram no meio da comunidade brasileira. Iam economizando algum dinheiro, principalmente nos primeiros anos, em que trabalhando dentro da enorme casa de seus patrões, não tinham qualquer despesa. Quando entenderam que já podiam olhar novos horizontes, decidiram comprar uma oficina onde se faziam gradeamentos em ferro, que estava à venda, propriedade de umas pessoas já idosas, oriundas do Chile, que se queriam reformar e regressar ao país de origem.
Tony Borie, Julho de 2015
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14776: Libertando-me (Tony Borié) (22): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (3)
Guiné 63/74 - P14803: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (I Parte): Introdução, Dedicatória e A Caminho
1. Em mensagem do dia 16 de Junho de 2015, o nosso camarada Virgínio
Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de
Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67), enviou-nos
a primeira parte de um trabalho a que deu o título de "Guiné, Ir e Voltar".
‘Só existe uma coisa mais terrível do que uma guerra, fazer de conta que ela nunca aconteceu’
A guerra é igual para todos os que nela participaram. Alguns não a puderam contar e muitos outros, embora ainda vivos, querem permanecer mortos para as memórias desses tempos.
A escrita desta história
Esta memória foi escrita com recurso a curtos diários, a relatórios de operações1 feitas pelo grupo e a documentos escritos, depoimentos e diários de camaradas de outros grupos.
Foi esboçada ainda em 1967, dois meses depois de ter regressado a casa, sem qualquer intenção de voltar a pensar no assunto.
Tentei respeitar o espírito que na época vigorava entre nós, em Brá. Apesar de, a certa altura, ter a ideia de que a guerra na Guiné dificilmente seria resolvida pela via militar, no nosso próprio interesse era importante fazê-la com eficácia, fugindo à balbúrdia, do “todos ao monte” e fé em Deus, tão frequentemente vista em unidades espalhadas pelo território e que muitas vezes tão maus resultados acarretava.
Os Comandos formados no CTIG, entre 1964 e 1966, eram realmente diferentes. Tinham um dístico grande à entrada das camaratas: “Os Comandos não são melhores nem piores, são diferentes”.
Operavam em grupos de 20 a 30 homens, diariamente treinados, com boa capacidade física, muito móveis e serviam-se de armamento ligeiro. Tanto saltavam de viaturas em andamento internando-se rapidamente no mato como eram largados de helis mesmo em cima de acampamentos Inimigos. Apesar de utilizarem a surpresa como arma principal de ataque, rodeando-se de cuidados extremos na progressão para o objectivo, nem sempre tiveram sucesso, tiveram os seus desaires. Cerca de 6% dos seus efectivos morreram em combate e 10% foram feridos com mais ou menos gravidade. Deram tudo o que puderam, sem pedirem nada em troca, até a farda amarela que usavam foi paga do seu bolso e o crachá que traziam no peito tiveram que o ganhar com muito treino e em operações reais. Com as acções que desencadearam, aliviaram muitas vezes a pressão a que o pessoal em quadrícula estava sujeito.
E mostrámos que também era possível desinquietar o IN nos seus santuários.
As outras histórias que entram nesta escrita fazem parte do ambiente que se vivia na altura e ajudam a compreender melhor a guerra traiçoeira, sem tréguas, movida por uma guerrilha que se encontrava no seu meio, especialista, na altura, no bate e foge e em semear minas, contra um exército de jovens de vinte e poucos anos, na sua maioria, com preparação militar muito deficiente e que mesmo assim resistiu denodadamente.
As chamadas tropas regulares, dispersas em quadrícula, viveram a parte mais dura. Com armamento inferior, especialmente a partir de finais dos anos 60 e a viverem em condições precárias, em locais de difícil acesso, sujeitas a ataques diários, com as evacuações condicionadas ao horário solar, num ambiente hostil e com o moral a ser fustigado a toda a hora pela propaganda do PAIGC, tudo tiveram contra elas, inclusive militares das nossas próprias tropas que passavam informações para o Inimigo.
Mesmo assim, fizemos, nós todos, o que nos competia: a vida negra à guerrilha. A vida dos combatentes do PAIGC nunca foi fácil, nem nos santuários de que se afirmavam donos e senhores podiam dormir descansados.
Soldados e cabos, furriéis e alferes, milicianos na esmagadora maioria, sem esquecer os valorosos profissionais que os enquadraram, honraram as páginas mais brilhantes, que tanto gostara de ler, na escola primária, no livro da História de Portugal.
Nas outras páginas, o mesmo Portugal que lhes pediu os melhores anos da vida, bocados deles e a própria vida de muitos deles, findas as hostilidades, tudo fez para que se envergonhassem da guerra em que estiveram envolvidos.
Na história recente rapidamente o País esqueceu os que se bateram na 1.ª Grande Guerra na Flandres e aos que se bateram em África permitiu que lhes colassem etiquetas de selváticos colonialistas. Aos bravos naturais da Guiné que, por um motivo ou outro, optaram por se juntarem às tropas nacionais, a esses, os governantes da altura abandonaram-nos à própria sorte. O PAIGC de então não lhes perdoou, apelidava-os de cães raivosos e abateu-os como tal.
É a história, é certo. Mas é também uma parte dessas páginas que ainda não está suficientemente esclarecida.
Não se pretende aqui fazer história, trata-se apenas de deixar o testemunho do que viveu e viu, um dos participantes na guerra na Guiné.
Lisboa, Janeiro de 2015.
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Nota:
1 - Filmes da guerra da Guiné são raros. No QG, em Bissau, havia um departamento de fotografia e cinema com operadores. Pois em centenas de quilómetros percorridos, a pé ou em viaturas, nunca os vi. As escassas imagens filmadas em combate são, na quase totalidade, as que foram obtidas por jornalistas estrangeiros que acompanharam a guerrilha. E nos que nos acompanharam o destaque vai para o filme de uma emboscada que nos custou mortos e feridos (realização da ORTF, hoje alojado no I.N.A.), ocasionalmente filmado numa operação de propaganda à política da Guiné Melhor durante a governação do então Brigadeiro Spínola. Ficam os depoimentos dos que ainda estão vivos.
À minha Mulher, às nossas Mulheres
As nossas Mulheres. As que nos acompanharam desde os bancos das escolas. Que viveram, com a Cruz na parede das salas, com o olhar severo e crítico dos Pais, sempre presentes ao jantar, e o olhar benevolente e compreensivo das Mães, presentes o dia todo.
As nossas Mulheres. Amantes, de beijos roubados às portas das casas, de um sôfrego respiro de ânsias e desejos difíceis de esconder.
As nossas Mulheres. Que nos acompanharam com linhas escritas com lágrimas, em aerogramas de saudade e esperança numa vida que diziam estar, mesmo aqui, ao lado da esquina, amanhã, o mais tardar. De tão jovens, algumas não aguentaram tanta separação. Quem lhes leva a mal, que a vida é curta e a Guiné estava tão longe.
As nossas Mulheres. Que nos recolheram, exaustos de uma vida tão mal vivida, e nos ensinaram de novo a vivê-la.
As nossas Mulheres. Que foram dando à luz e criando, quantas vezes sós, os filhos de uma geração desperdiçada, tantas vezes com os companheiros ausentes e desinteressados.
Às nossas Mulheres, às que estiveram no Terreiro do Paço a receberem medalhas e a todas as Mulheres da nossa geração, que de uma ou outra forma, compartilharam a nossa vida.
Mas então como é a guerra lá?
A guerra lá… não tem muito que contar. É a gente ir numa coluna a pé ou em viaturas e de repente rompe um fogachal do caralho, com os gajos a abrir fogo sobre a malta e depois nós respondemos.
De uma conversa à mesa, ao jantar, entre o pai da noiva e o futuro genro, recém-chegado da Guiné, quando este lhe foi comunicar que queria casar com a filha.
************
A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para a contar
Gabriel Garcia Marques em "Viver para contá-la"
A minha Guerra
Este é o sítio para falar comigo.
Parece despropositado levantar a questão da minha Guerra, aqui, num local tão público. Qual Guerra? A nossa, a minha, a que vivi nos naqueles anos, de 65 e 66, ainda de barba mal crescida. Uma Guerra ainda imberbe, dirão alguns. Imberbe ou não, foi matando um aqui, outro ali, outro aqui outra vez e outro ali de novo. Para os que morreram foi definitiva. E esfacelando um em Binta, outro em Cufar, um em Guidaje, um outro em Cuntima, outro ainda acolá. Não interessa agora falar em locais, naqueles anos o pessoal do Hospital, todos os dias tinha trabalho novo.
Este é o sítio para eu falar da Guerra dos Combatentes, da que se travou em lalas, bolanhas, picadas e matas. Da que se tratou a tiro, à morteirada, com foguetes e rockets a abrir capim e carne, do silvo das saídas do morteiro e do estrondo, muito longe, muitas outras não tão longe assim. Dos ataques e flagelações a bases da guerrilha e a aquartelamentos das NT. Dos ataques às barracas do PAIGC, a maioria nas madrugadas, que as NT tanto pareciam gostar. Foram instruídas para isso, em Mafra, Tavira, Caldas. Abrir fogo logo ao nascer do sol, que havia ainda muito para fazer e andar. E ao aproximar das noites, como parece ter sido também o gosto da guerrilha, os flagelamentos aos aquartelamentos das NT. Evitavam encontrar-se à mesma hora nos mesmos locais, assim parecia.
É dessa Guerra, talvez a menos importante, que estou a falar. A outra, a que se travava nos ares condicionados de Bissau e de Conacry, essa não merece grande realce nesta escrita, embora pessoalmente nos meus últimos três meses a tenha visto de longe, tão longe que quase nem me dizia respeito. E digo quase, porque no Bento encontrava camaradas vindos, de Catió, de Cutia, de Guileje, de Madina do Boé, de todo o lado. Gente com quem andara não há muitos dias, que fazia parte de mim, que eram da minha família, portanto.
Mas a minha guerra era já outra. Continuava a pôr-me a pé às horas do regimento e largava a papelada também à hora regimental. Banho, música no quarto, as horas do jantar na messe de Santa Luzia a aproximarem-se, e ala que se faz tarde, Bissau à frente, cinema, cerveja, uísque até se fazerem horas para chonar, que no dia seguinte lá me esperavam os movimentos de entradas e saídas de géneros, pagamentos aos pequenos fornecedores, aos fornecedores de alferes, que os maiores eram da responsabilidade de outras graduações, felizmente para mim, que, naquele tempo, talvez devido à demasiada juventude, não era grande apreciador de papel e também de certos envelopes.
Colonialismo e imperialismo eram palavras que nos soavam nos primeiros anos da década de 60. Para a grande maioria dos militares portugueses, palavras que não diziam muito. Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé, Cabo Verde, Timor e Macau eram Portugal. Foi com essas palavras que cresci e com elas me fui fazendo homem.
De um momento para o outro, muita coisa começou a acontecer. Vimos e ouvimos na TV o Artur Agostinho, o Henrique Mendes e as vozes de outros que a minha memória já não retém, o Pandita Nheru a entrar em Goa, as hordas da UPA a assassinarem quem se mexia no norte de Angola e na Guiné umas abatizes e um ou outro assassinato de gente local. Simples casos que as forças policiais não deixariam de resolver imediatamente. Não chegaram estas medidas, viu-se logo, e rapidamente houve que ir para Angola em força e já.
Um incêndio que, soprado por ventos bem fortes rapidamente se alastrou à Guiné e poucos meses depois a Moçambique. Foi o princípio do fim da vida de muitos e até 1974, calcula-se em cerca de oitocentos mil o número de jovens que interromperam as suas vidas para fazerem uma guerra, afinal, inútil.
Eram barcos e barcos que largavam
Fez-se dessa matéria a nossa vida
Marujos e soldados que embarcavam
E gente que chorava à despedida
Letra do Fado Vulgar de Vasco Graça Moura
A caminho
O capitão, comandante da Polícia do Funchal até há um ano atrás, foi dos primeiros a descer as escadas, morto por pôr o pé naquela terra que tão bem conhecia. Queria aproveitar para rever a cidade, dar umas voltas, encontrar amigos. E nem precisou de andar muito. Logo houve quem o convidasse para o almoço no dia seguinte. Só se fosse muito cedo, para o meio-dia, no máximo, que o navio partia às duas da tarde. Arranja-se para o meio-dia então, capitão Marques! Pode trazer quem quiser, um convidado seu é nosso também.
Alferes, para amanhã temos peixe-espada ao almoço, quer vir?
Nem meio-dia era, lá estavam no 1.º andar de um restaurante com boas vistas, até o cais se podia ver, e com algum esforço até o navio se via, treze a uma mesa com as travessas em cima, o convívio a aquecer, e sem darem por ela o tempo a passar-se. Uma sirene de um navio ouviu-se. Não é o nosso Alfredo da Silva2 , pois não? Ai não, não é! Mas a partida não estava marcada para as duas? Ainda falta quase uma hora!
Pois era mesmo o navio deles nas manobras de desatracagem. Ora esta, pode lá ser? Um carro depressa! E o peixe-espada, com tão bom ar, em cima das mesas, a olhar para eles. Olhem, fica para vocês, que vos saiba bem.
A descerem por aquelas ruas abaixo, a caminho do porto, uma carrinha da polícia a abrir, quando lá chegaram, já o navio estava ao largo. Uma lancha depressa, arranja-se já! Sinais e mensagens de rádio, do porto para o navio, o aviso para pararem. Qual quê, não podemos, abrandamos só, que se cheguem. Com a lancha encostada, lançaram-lhes uma escada de cordas.
O capitão à frente, que era mais graduado, o alferes atrás uns bons degraus. Uma dificuldade por ali acima, o capitão Marques a protestar, que maçada, já não tenho idade para desportos destes, que porra! Dentro do navio finalmente, então a partida não estava marcada para as duas? Tivemos que antecipar uma hora e avisámos, se calhar os senhores não dormiram a bordo.
O capitão Marques, do caga-e-tosse3 ou lateiro , como então se dizia, senhor de pouco mais de cinquenta anos, e o alferes miliciano repartiam o camarote. Poucas pessoas para tanta carga. Farinha, medicamentos, açúcar, peças de fardamento, arroz, pneus, motores, batata, latas de óleo, frescos, combustíveis. E armas, munições, explosivos e outro material de guerra arrumado em dezenas de caixotes, em compartimentos à parte.
O mar calmo fez-lhes sempre companhia naqueles três dias de navegação até S. Vicente. Preguiçavam nas amuradas, jogavam a sueca e o king no salão, ouviam música de dança, o costume num navio daqueles anos.
O Mindelo em frente trouxe-lhes os cheiros de África. E também coisas que alguns deles viam pela primeira vez. Engraxadores, miúdos às dezenas com pequenas caixas de madeira debaixo do braço, duas latas de pomada, um pano e uma escova, a atirarem-se aos passageiros, quase todos militares, desembarcados momentos antes, ainda a equilibrarem-se em terra firme. Limpa sapato, alferes? E menina nua a dançar, quer ver? Cabras, com os ossos à mostra, a morderem o pó, papel amarelecido de jornal ao vento, pessoas devagar nas ruas, abrigadas do sol. Graxa, nosso alferes?
O alferes saiu com o Black, um antigo colega de liceu, a curiosidade a levá-los por aquelas ruas de pedra escura. O mar sempre ao lado, o café deslavado bebido na esplanada, os sapatos a brilharem e os miúdos com as caixas de graxa atrás, que o pó era muito. Tempo morno, pessoas devagar nas ruas, a pararem a qualquer pretexto.
Deve ser bem agradável viver uns tempos aqui, Black. Onde se pode almoçar, menina? Ali? O que se come lá?
Sentados numa varanda, o mar em frente, então o que se arranja? Lagosta grelhada e batata frita? Enquanto esperavam, um olho descansava no azul das águas em frente, o outro não largava o navio à esquerda. Duas moças, vestidos leves nas pernas morenas, para um lado e para outro. Só comem isto? Não querem mais, mesmo? Então, não estava bom?
Quando saíram dali levavam atrás o cortejo dos miúdos e as caixas da graxa, sempre a insistirem, e menina nua a dançar, querem ver agora?
No navio frente ao cais, o capitão Marques encontrou-os debruçados na amurada, a olharem para a cidade. O que levo daqui, meu capitão? As morenas, o andar delas, a maneira como falam, o cantar doce, os gestos calmos de quem tem tão pouco que fazer e tanto tempo à frente, o quilo da lagosta a 90 escudos, a terra amarelada, pó e mais pó, e muitos, muitos miúdos com caixas de graxa. Bissau, se for assim não é nada mau! Nem penses, pior, muito pior, arriscava outro alferes, o Leite, sorriso na cara.
Há dias que uns cheiros diferentes andavam no ar. Era África a entrar-lhes pelo nariz. No convés do “Alfredo da Silva”, já mais composto com alguns passageiros embarcados na Praia, o alferes passava as tardes sentado a dormitar e a ler um livro do Moravia, “La Ciocciara”.
E, numa manhã cedo, o navio lançou o ferro frente a Bissau. Duas horas ao largo, parados, a aguardar as lanchas de transbordo, de olhos arregalados a verem o trabalho da estiva, num linguarejar que não conseguia entender.
E depois, os passageiros começaram a sair, com vagar, a pressa de pisar aquela terra não parecia ser muita, pelos vistos. Pés no chão, a olhar para as palmeiras, o alferes aproveitou a boleia num jeep, que os aguardava, rumo ao QG4.
Avenida acima, pareceu-lhe enorme, a esplanada do Bento5 , longe de pensar que, mais tarde, viria a ser assíduo frequentador, a Sé, os Correios, casas com ar colonial à esquerda e à direita, o BNU, o cinema.
Aqui é a Praça do Império, o Palácio do Governador, Brigadeiro Arnaldo Schulz, já ouviram falar? Este edifício novo todo envidraçado é a Associação Comercial e Industrial de Bissau, um capitão, cicerone esforçado e competente, a virar à direita, agora esta avenida a subir leva-nos a Santa Luzia, ao QG, lá em cima, estão a ver?
E pronto, camaradas, agora dirigem-se ali, àquela porta em frente, apresentam-se na repartição de pessoal que indicará os vossos destinos. Boa sorte, ah!
Na 1.ª Rep.6 passaram-lhe para as mãos um papel, a guia de marcha, e um jipe deixou-o na Amura7, onde havia uma dependência do Batalhão de Cavalaria 4908, a que passara a pertencer, por rendição individual, e que já levava 17 ou 18 meses de comissão.
O 490 tinha estado no Sul, na operação Tridente, o primeiro grande movimento militar na África Portuguesa, 71 ou 72 dias seguidos, abarracados no arquipélago do Como, a comer enlatados. Regressara arrasado, cheio de carraças, hepatites e outras enfermidades, com os pelotões reduzidos a metade, e, segundo as más-línguas de alguns frequentadores do Bento, deixara lá o dobro dos guerrilheiros.
Depois, o tenente-coronel levara o Batalhão para o Norte onde, exaustos, escorriam os meses que faltavam para dizer adeus à guerra. Centrado em Farim, dispusera-se em quadrícula com uma companhia em Cuntima, na fronteira com o Senegal, outra em Jumbembem, a meio caminho entre Cuntima e Farim enquanto a companhia de comando e serviços e a outra operacional ficaram sediadas em Farim.
Disseram-lhes, ao alferes e ao capitão Marques, que aguardassem na Amura, uns dias, não sabiam quantos, até que houvesse transporte aéreo para Farim.
Toda uma pequena vivenda térrea por conta dele, mala pousada a um canto. Dois quartos, um quarto de banho e uma cozinha com frigorífico. O calor invadia tudo, um calor diferente, com cheiro, húmido, a colar a roupa ao corpo. A água do banho, estranha, quente, com cor, a espuma agarrava-se à pele, não queria sair nem por nada.
Depois foi ver a Amura por dentro. Uma fortaleza antiga, numa pequena elevação, com uma praça ampla de casas térreas, pequenas, iguais umas às outras e árvores à volta, a fazerem sombra.
Combinara encontrar-se com os companheiros da viagem, o alferes Leite e o capitão Marques, numa esplanada de um café chamado Bento. Depois de percorrerem as ruas da baixa de Bissau, a marginal e pouco mais, acabaram o dia no Fonseca9 a ostras e cerveja. Nesse dia, o alferes bebera mais cerveja do que em toda a sua vida, no início até estranhara beber tanta, contou até dez garrafas das grandes, que era o tamanho padrão, depois habituou-se, no 2.º dia já não contou. E os primeiros dias foram passados assim, esplanada do Bento, almoço na Amura, sesta com a ventoinha no tecto a andar à roda que o calor era muito, passeio à tarde, ostras e cerveja, jantar outra vez na Amura, e depois na cama, a cabeça a acompanhar a ventoinha, a andar à roda. Amanhã às nove, aqui na Amura, um jeep leva-o ao aeroporto.
Mal dormiu, às 8 estava pronto, pequeno-almoço tomado, mala e saco na mão.
Outra vez para a Praça do Império, pelos vistos passava tudo por ali, depois o jeep guinou para a estrada do aeroporto.
De quem é aquela estátua, ali à esquerda? Honório Barreto? Quem foi? Também não sabe? Uma grande recta, casas indígenas de um lado e doutro, à esquerda a seguir a uma curva o Hospital Militar, o Batalhão de Engenharia, o quartel de Brá umas centenas de metros adiante, charcos de água e palmeiras por todo o lado e o aeroporto à vista. Boa sorte, meu alferes, despediu-se assim o cabo condutor. Um Dornier 2710 da Força Aérea aguardava na pista. Era uma pequena avioneta de um motor, os bancos da frente para o piloto e acompanhante, a traseira reservada a correio, malas, pequenos volumes, o que calhasse e coubesse.
Ao rumarem para norte, viu Bissau a ficar mais distante.
Seguiu o voo, as manobras do piloto, as primeiras fotografias do ar, as matas lá em baixo, misteriosas, pouco amigáveis.
Aterraram, pouco mais de meia hora depois, num campo em Farim. Uma pequena povoação junto a um rio11, casas de adobe rodeando outras, maiores, de aspecto colonial, e nuvens de pó de viaturas com militares a rodarem para as margens da pista.
É o alferes que vem substituir o Monteiro, para Cuntima, não é? Estava a ver que nunca mais chegava, o Tenente-Coronel de cavalaria, de mão estendida, ar duro.
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Notas:
2 - Navio misto da Sociedade Geral
3 - Serviço Geral do Exército. Faziam a carreira a partir de praças. Imprescindíveis para o bom funcionamento do Exército.
4 - Quartel-General.
5 - Café-cervejaria, ponto de encontro dos militares aquartelados em Bissau ou dos que se encontravam em trânsito. Ficou também conhecida por 5ª Rep. por naquelas mesas se falar de tudo.
6 - Repartição do QG (Serviços de Pessoal).
7 - A Fortaleza foi fundada em 1696 pelo capitão-mor José Pinheiro. A reconstrução iniciou-se em 1753, sob o traço de Frei Manuel de Vinhais Sarmento, e teve continuação 13 anos mais tarde, sob a direcção do coronel Manuel Germano da Mata. Devido à pedra empregue na construção da fortaleza ser de origem ferruginosa, desgastando-se rapidamente com o tempo, a muralha teve que ser reconstruída novamente em 1946, era então governador o Almirante Sarmento Rodrigues. A fortaleza tinha, no seu interior, um terreiro quadrado com 150 metros sombreado por mangueiras, cujo fruto é muito saboroso.
8 - Sob o comando do Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, o Batalhão integrava a CCS e as C.ªs de Cav 487, 488 e 489. Arrancou de Estremoz, do RC 3, com a divisa "Sempre em Frente". A estadia na Guiné iniciou-se em Julho de 1963 e a comissão foi dada como finda em Agosto de 1965. Da actividade operacional, destaca-se a participação na operação "Tridente", na Ilha do Como, uma das operações militares de maior envergadura efectuadas pelas tropas portuguesas em todos os anos que durou a Guerra de África. Mas a acção do Batalhão não se resumiu a essa operação. Após o desembarque, com base em Bissau, desenvolveu várias acções na zona do Oio. Partiu para as Ilhas do Como, Caiar e Catunco em 14 de Janeiro de 1964 e só de lá saiu quando a acção foi dada por terminada, em 24 de Março de 1964. Passou então à quadrícula, assumindo, em 31 de Maio do mesmo ano, a responsabilidade do sector de Farim, que compreendia os subsectores de Cuntima, Jumbembem, Bigene e Farim e, a partir de 29 de Junho, o de Binta. Em 25 de Março de 1965 preparou-se para ocupar Canjambari (que estava dentro do sector à sua responsabilidade e que na altura estava nas mãos da guerrilha). Não foi uma acção fácil. Com a picada que ligava Jumbembem a Canjambari obstruída por enormes abatizes, emboscados e flagelados constantemente, apesar da vasta experiência das tropas, a ocupação só se deu por concluída em 31 de Maio de 1965. Em 15 de Junho o BCav 490 foi substituído no sector pelo Bat. Art. 733, tendo recolhido a Brá, onde ficou alojado até à data de regresso a Lisboa.
9 - Também conhecido pelo Solar dos 10.
10 - Servia para tudo, transporte de pessoal, correio, pequenas cargas, evacuações, reconhecimentos aéreos, posto de comando aéreo.
11 - Cacheu
(Continua)
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‘Só existe uma coisa mais terrível do que uma guerra, fazer de conta que ela nunca aconteceu’
A guerra é igual para todos os que nela participaram. Alguns não a puderam contar e muitos outros, embora ainda vivos, querem permanecer mortos para as memórias desses tempos.
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A escrita desta história
Esta memória foi escrita com recurso a curtos diários, a relatórios de operações1 feitas pelo grupo e a documentos escritos, depoimentos e diários de camaradas de outros grupos.
Foi esboçada ainda em 1967, dois meses depois de ter regressado a casa, sem qualquer intenção de voltar a pensar no assunto.
Tentei respeitar o espírito que na época vigorava entre nós, em Brá. Apesar de, a certa altura, ter a ideia de que a guerra na Guiné dificilmente seria resolvida pela via militar, no nosso próprio interesse era importante fazê-la com eficácia, fugindo à balbúrdia, do “todos ao monte” e fé em Deus, tão frequentemente vista em unidades espalhadas pelo território e que muitas vezes tão maus resultados acarretava.
Os Comandos formados no CTIG, entre 1964 e 1966, eram realmente diferentes. Tinham um dístico grande à entrada das camaratas: “Os Comandos não são melhores nem piores, são diferentes”.
Operavam em grupos de 20 a 30 homens, diariamente treinados, com boa capacidade física, muito móveis e serviam-se de armamento ligeiro. Tanto saltavam de viaturas em andamento internando-se rapidamente no mato como eram largados de helis mesmo em cima de acampamentos Inimigos. Apesar de utilizarem a surpresa como arma principal de ataque, rodeando-se de cuidados extremos na progressão para o objectivo, nem sempre tiveram sucesso, tiveram os seus desaires. Cerca de 6% dos seus efectivos morreram em combate e 10% foram feridos com mais ou menos gravidade. Deram tudo o que puderam, sem pedirem nada em troca, até a farda amarela que usavam foi paga do seu bolso e o crachá que traziam no peito tiveram que o ganhar com muito treino e em operações reais. Com as acções que desencadearam, aliviaram muitas vezes a pressão a que o pessoal em quadrícula estava sujeito.
E mostrámos que também era possível desinquietar o IN nos seus santuários.
As outras histórias que entram nesta escrita fazem parte do ambiente que se vivia na altura e ajudam a compreender melhor a guerra traiçoeira, sem tréguas, movida por uma guerrilha que se encontrava no seu meio, especialista, na altura, no bate e foge e em semear minas, contra um exército de jovens de vinte e poucos anos, na sua maioria, com preparação militar muito deficiente e que mesmo assim resistiu denodadamente.
As chamadas tropas regulares, dispersas em quadrícula, viveram a parte mais dura. Com armamento inferior, especialmente a partir de finais dos anos 60 e a viverem em condições precárias, em locais de difícil acesso, sujeitas a ataques diários, com as evacuações condicionadas ao horário solar, num ambiente hostil e com o moral a ser fustigado a toda a hora pela propaganda do PAIGC, tudo tiveram contra elas, inclusive militares das nossas próprias tropas que passavam informações para o Inimigo.
Mesmo assim, fizemos, nós todos, o que nos competia: a vida negra à guerrilha. A vida dos combatentes do PAIGC nunca foi fácil, nem nos santuários de que se afirmavam donos e senhores podiam dormir descansados.
Soldados e cabos, furriéis e alferes, milicianos na esmagadora maioria, sem esquecer os valorosos profissionais que os enquadraram, honraram as páginas mais brilhantes, que tanto gostara de ler, na escola primária, no livro da História de Portugal.
Nas outras páginas, o mesmo Portugal que lhes pediu os melhores anos da vida, bocados deles e a própria vida de muitos deles, findas as hostilidades, tudo fez para que se envergonhassem da guerra em que estiveram envolvidos.
Na história recente rapidamente o País esqueceu os que se bateram na 1.ª Grande Guerra na Flandres e aos que se bateram em África permitiu que lhes colassem etiquetas de selváticos colonialistas. Aos bravos naturais da Guiné que, por um motivo ou outro, optaram por se juntarem às tropas nacionais, a esses, os governantes da altura abandonaram-nos à própria sorte. O PAIGC de então não lhes perdoou, apelidava-os de cães raivosos e abateu-os como tal.
É a história, é certo. Mas é também uma parte dessas páginas que ainda não está suficientemente esclarecida.
Não se pretende aqui fazer história, trata-se apenas de deixar o testemunho do que viveu e viu, um dos participantes na guerra na Guiné.
Lisboa, Janeiro de 2015.
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Nota:
1 - Filmes da guerra da Guiné são raros. No QG, em Bissau, havia um departamento de fotografia e cinema com operadores. Pois em centenas de quilómetros percorridos, a pé ou em viaturas, nunca os vi. As escassas imagens filmadas em combate são, na quase totalidade, as que foram obtidas por jornalistas estrangeiros que acompanharam a guerrilha. E nos que nos acompanharam o destaque vai para o filme de uma emboscada que nos custou mortos e feridos (realização da ORTF, hoje alojado no I.N.A.), ocasionalmente filmado numa operação de propaganda à política da Guiné Melhor durante a governação do então Brigadeiro Spínola. Ficam os depoimentos dos que ainda estão vivos.
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À minha Mulher, às nossas Mulheres
As nossas Mulheres. As que nos acompanharam desde os bancos das escolas. Que viveram, com a Cruz na parede das salas, com o olhar severo e crítico dos Pais, sempre presentes ao jantar, e o olhar benevolente e compreensivo das Mães, presentes o dia todo.
As nossas Mulheres. Amantes, de beijos roubados às portas das casas, de um sôfrego respiro de ânsias e desejos difíceis de esconder.
As nossas Mulheres. Que nos acompanharam com linhas escritas com lágrimas, em aerogramas de saudade e esperança numa vida que diziam estar, mesmo aqui, ao lado da esquina, amanhã, o mais tardar. De tão jovens, algumas não aguentaram tanta separação. Quem lhes leva a mal, que a vida é curta e a Guiné estava tão longe.
As nossas Mulheres. Que nos recolheram, exaustos de uma vida tão mal vivida, e nos ensinaram de novo a vivê-la.
As nossas Mulheres. Que foram dando à luz e criando, quantas vezes sós, os filhos de uma geração desperdiçada, tantas vezes com os companheiros ausentes e desinteressados.
Às nossas Mulheres, às que estiveram no Terreiro do Paço a receberem medalhas e a todas as Mulheres da nossa geração, que de uma ou outra forma, compartilharam a nossa vida.
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Mas então como é a guerra lá?
A guerra lá… não tem muito que contar. É a gente ir numa coluna a pé ou em viaturas e de repente rompe um fogachal do caralho, com os gajos a abrir fogo sobre a malta e depois nós respondemos.
De uma conversa à mesa, ao jantar, entre o pai da noiva e o futuro genro, recém-chegado da Guiné, quando este lhe foi comunicar que queria casar com a filha.
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Em dois anos muito do que aconteceu
A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para a contar
Gabriel Garcia Marques em "Viver para contá-la"
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A minha Guerra
Este é o sítio para falar comigo.
Parece despropositado levantar a questão da minha Guerra, aqui, num local tão público. Qual Guerra? A nossa, a minha, a que vivi nos naqueles anos, de 65 e 66, ainda de barba mal crescida. Uma Guerra ainda imberbe, dirão alguns. Imberbe ou não, foi matando um aqui, outro ali, outro aqui outra vez e outro ali de novo. Para os que morreram foi definitiva. E esfacelando um em Binta, outro em Cufar, um em Guidaje, um outro em Cuntima, outro ainda acolá. Não interessa agora falar em locais, naqueles anos o pessoal do Hospital, todos os dias tinha trabalho novo.
Este é o sítio para eu falar da Guerra dos Combatentes, da que se travou em lalas, bolanhas, picadas e matas. Da que se tratou a tiro, à morteirada, com foguetes e rockets a abrir capim e carne, do silvo das saídas do morteiro e do estrondo, muito longe, muitas outras não tão longe assim. Dos ataques e flagelações a bases da guerrilha e a aquartelamentos das NT. Dos ataques às barracas do PAIGC, a maioria nas madrugadas, que as NT tanto pareciam gostar. Foram instruídas para isso, em Mafra, Tavira, Caldas. Abrir fogo logo ao nascer do sol, que havia ainda muito para fazer e andar. E ao aproximar das noites, como parece ter sido também o gosto da guerrilha, os flagelamentos aos aquartelamentos das NT. Evitavam encontrar-se à mesma hora nos mesmos locais, assim parecia.
É dessa Guerra, talvez a menos importante, que estou a falar. A outra, a que se travava nos ares condicionados de Bissau e de Conacry, essa não merece grande realce nesta escrita, embora pessoalmente nos meus últimos três meses a tenha visto de longe, tão longe que quase nem me dizia respeito. E digo quase, porque no Bento encontrava camaradas vindos, de Catió, de Cutia, de Guileje, de Madina do Boé, de todo o lado. Gente com quem andara não há muitos dias, que fazia parte de mim, que eram da minha família, portanto.
Mas a minha guerra era já outra. Continuava a pôr-me a pé às horas do regimento e largava a papelada também à hora regimental. Banho, música no quarto, as horas do jantar na messe de Santa Luzia a aproximarem-se, e ala que se faz tarde, Bissau à frente, cinema, cerveja, uísque até se fazerem horas para chonar, que no dia seguinte lá me esperavam os movimentos de entradas e saídas de géneros, pagamentos aos pequenos fornecedores, aos fornecedores de alferes, que os maiores eram da responsabilidade de outras graduações, felizmente para mim, que, naquele tempo, talvez devido à demasiada juventude, não era grande apreciador de papel e também de certos envelopes.
Colonialismo e imperialismo eram palavras que nos soavam nos primeiros anos da década de 60. Para a grande maioria dos militares portugueses, palavras que não diziam muito. Angola, Moçambique, Guiné, S. Tomé, Cabo Verde, Timor e Macau eram Portugal. Foi com essas palavras que cresci e com elas me fui fazendo homem.
De um momento para o outro, muita coisa começou a acontecer. Vimos e ouvimos na TV o Artur Agostinho, o Henrique Mendes e as vozes de outros que a minha memória já não retém, o Pandita Nheru a entrar em Goa, as hordas da UPA a assassinarem quem se mexia no norte de Angola e na Guiné umas abatizes e um ou outro assassinato de gente local. Simples casos que as forças policiais não deixariam de resolver imediatamente. Não chegaram estas medidas, viu-se logo, e rapidamente houve que ir para Angola em força e já.
Um incêndio que, soprado por ventos bem fortes rapidamente se alastrou à Guiné e poucos meses depois a Moçambique. Foi o princípio do fim da vida de muitos e até 1974, calcula-se em cerca de oitocentos mil o número de jovens que interromperam as suas vidas para fazerem uma guerra, afinal, inútil.
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Eram barcos e barcos que largavam
Fez-se dessa matéria a nossa vida
Marujos e soldados que embarcavam
E gente que chorava à despedida
Letra do Fado Vulgar de Vasco Graça Moura
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GUINÉ, IR E VOLTAR - I
A caminho
O capitão, comandante da Polícia do Funchal até há um ano atrás, foi dos primeiros a descer as escadas, morto por pôr o pé naquela terra que tão bem conhecia. Queria aproveitar para rever a cidade, dar umas voltas, encontrar amigos. E nem precisou de andar muito. Logo houve quem o convidasse para o almoço no dia seguinte. Só se fosse muito cedo, para o meio-dia, no máximo, que o navio partia às duas da tarde. Arranja-se para o meio-dia então, capitão Marques! Pode trazer quem quiser, um convidado seu é nosso também.
Alferes, para amanhã temos peixe-espada ao almoço, quer vir?
Porto do Funchal em Janeiro de 1965. © Foto do autor.
Nem meio-dia era, lá estavam no 1.º andar de um restaurante com boas vistas, até o cais se podia ver, e com algum esforço até o navio se via, treze a uma mesa com as travessas em cima, o convívio a aquecer, e sem darem por ela o tempo a passar-se. Uma sirene de um navio ouviu-se. Não é o nosso Alfredo da Silva2 , pois não? Ai não, não é! Mas a partida não estava marcada para as duas? Ainda falta quase uma hora!
Pois era mesmo o navio deles nas manobras de desatracagem. Ora esta, pode lá ser? Um carro depressa! E o peixe-espada, com tão bom ar, em cima das mesas, a olhar para eles. Olhem, fica para vocês, que vos saiba bem.
A descerem por aquelas ruas abaixo, a caminho do porto, uma carrinha da polícia a abrir, quando lá chegaram, já o navio estava ao largo. Uma lancha depressa, arranja-se já! Sinais e mensagens de rádio, do porto para o navio, o aviso para pararem. Qual quê, não podemos, abrandamos só, que se cheguem. Com a lancha encostada, lançaram-lhes uma escada de cordas.
O capitão à frente, que era mais graduado, o alferes atrás uns bons degraus. Uma dificuldade por ali acima, o capitão Marques a protestar, que maçada, já não tenho idade para desportos destes, que porra! Dentro do navio finalmente, então a partida não estava marcada para as duas? Tivemos que antecipar uma hora e avisámos, se calhar os senhores não dormiram a bordo.
O capitão Marques, do caga-e-tosse3 ou lateiro , como então se dizia, senhor de pouco mais de cinquenta anos, e o alferes miliciano repartiam o camarote. Poucas pessoas para tanta carga. Farinha, medicamentos, açúcar, peças de fardamento, arroz, pneus, motores, batata, latas de óleo, frescos, combustíveis. E armas, munições, explosivos e outro material de guerra arrumado em dezenas de caixotes, em compartimentos à parte.
O mar calmo fez-lhes sempre companhia naqueles três dias de navegação até S. Vicente. Preguiçavam nas amuradas, jogavam a sueca e o king no salão, ouviam música de dança, o costume num navio daqueles anos.
O Mindelo em frente trouxe-lhes os cheiros de África. E também coisas que alguns deles viam pela primeira vez. Engraxadores, miúdos às dezenas com pequenas caixas de madeira debaixo do braço, duas latas de pomada, um pano e uma escova, a atirarem-se aos passageiros, quase todos militares, desembarcados momentos antes, ainda a equilibrarem-se em terra firme. Limpa sapato, alferes? E menina nua a dançar, quer ver? Cabras, com os ossos à mostra, a morderem o pó, papel amarelecido de jornal ao vento, pessoas devagar nas ruas, abrigadas do sol. Graxa, nosso alferes?
O alferes saiu com o Black, um antigo colega de liceu, a curiosidade a levá-los por aquelas ruas de pedra escura. O mar sempre ao lado, o café deslavado bebido na esplanada, os sapatos a brilharem e os miúdos com as caixas de graxa atrás, que o pó era muito. Tempo morno, pessoas devagar nas ruas, a pararem a qualquer pretexto.
Deve ser bem agradável viver uns tempos aqui, Black. Onde se pode almoçar, menina? Ali? O que se come lá?
Sentados numa varanda, o mar em frente, então o que se arranja? Lagosta grelhada e batata frita? Enquanto esperavam, um olho descansava no azul das águas em frente, o outro não largava o navio à esquerda. Duas moças, vestidos leves nas pernas morenas, para um lado e para outro. Só comem isto? Não querem mais, mesmo? Então, não estava bom?
Quando saíram dali levavam atrás o cortejo dos miúdos e as caixas da graxa, sempre a insistirem, e menina nua a dançar, querem ver agora?
No navio frente ao cais, o capitão Marques encontrou-os debruçados na amurada, a olharem para a cidade. O que levo daqui, meu capitão? As morenas, o andar delas, a maneira como falam, o cantar doce, os gestos calmos de quem tem tão pouco que fazer e tanto tempo à frente, o quilo da lagosta a 90 escudos, a terra amarelada, pó e mais pó, e muitos, muitos miúdos com caixas de graxa. Bissau, se for assim não é nada mau! Nem penses, pior, muito pior, arriscava outro alferes, o Leite, sorriso na cara.
Há dias que uns cheiros diferentes andavam no ar. Era África a entrar-lhes pelo nariz. No convés do “Alfredo da Silva”, já mais composto com alguns passageiros embarcados na Praia, o alferes passava as tardes sentado a dormitar e a ler um livro do Moravia, “La Ciocciara”.
E, numa manhã cedo, o navio lançou o ferro frente a Bissau. Duas horas ao largo, parados, a aguardar as lanchas de transbordo, de olhos arregalados a verem o trabalho da estiva, num linguarejar que não conseguia entender.
Bissau à nossa frente. © Imagem no blogue de Luís Graça e Camaradas da Guiné
E depois, os passageiros começaram a sair, com vagar, a pressa de pisar aquela terra não parecia ser muita, pelos vistos. Pés no chão, a olhar para as palmeiras, o alferes aproveitou a boleia num jeep, que os aguardava, rumo ao QG4.
Avenida acima, pareceu-lhe enorme, a esplanada do Bento5 , longe de pensar que, mais tarde, viria a ser assíduo frequentador, a Sé, os Correios, casas com ar colonial à esquerda e à direita, o BNU, o cinema.
Avenida da Praça do Império até ao cais. © Foto do autor.
Aqui é a Praça do Império, o Palácio do Governador, Brigadeiro Arnaldo Schulz, já ouviram falar? Este edifício novo todo envidraçado é a Associação Comercial e Industrial de Bissau, um capitão, cicerone esforçado e competente, a virar à direita, agora esta avenida a subir leva-nos a Santa Luzia, ao QG, lá em cima, estão a ver?
E pronto, camaradas, agora dirigem-se ali, àquela porta em frente, apresentam-se na repartição de pessoal que indicará os vossos destinos. Boa sorte, ah!
Palácio do Governo, Praça do Império, Bissau. © Foto do autor.
Na 1.ª Rep.6 passaram-lhe para as mãos um papel, a guia de marcha, e um jipe deixou-o na Amura7, onde havia uma dependência do Batalhão de Cavalaria 4908, a que passara a pertencer, por rendição individual, e que já levava 17 ou 18 meses de comissão.
O 490 tinha estado no Sul, na operação Tridente, o primeiro grande movimento militar na África Portuguesa, 71 ou 72 dias seguidos, abarracados no arquipélago do Como, a comer enlatados. Regressara arrasado, cheio de carraças, hepatites e outras enfermidades, com os pelotões reduzidos a metade, e, segundo as más-línguas de alguns frequentadores do Bento, deixara lá o dobro dos guerrilheiros.
Depois, o tenente-coronel levara o Batalhão para o Norte onde, exaustos, escorriam os meses que faltavam para dizer adeus à guerra. Centrado em Farim, dispusera-se em quadrícula com uma companhia em Cuntima, na fronteira com o Senegal, outra em Jumbembem, a meio caminho entre Cuntima e Farim enquanto a companhia de comando e serviços e a outra operacional ficaram sediadas em Farim.
Disseram-lhes, ao alferes e ao capitão Marques, que aguardassem na Amura, uns dias, não sabiam quantos, até que houvesse transporte aéreo para Farim.
Fortaleza de Amura, Bissau. © Imagem em Luís Graça e Camaradas da Guiné.
Toda uma pequena vivenda térrea por conta dele, mala pousada a um canto. Dois quartos, um quarto de banho e uma cozinha com frigorífico. O calor invadia tudo, um calor diferente, com cheiro, húmido, a colar a roupa ao corpo. A água do banho, estranha, quente, com cor, a espuma agarrava-se à pele, não queria sair nem por nada.
Depois foi ver a Amura por dentro. Uma fortaleza antiga, numa pequena elevação, com uma praça ampla de casas térreas, pequenas, iguais umas às outras e árvores à volta, a fazerem sombra.
Combinara encontrar-se com os companheiros da viagem, o alferes Leite e o capitão Marques, numa esplanada de um café chamado Bento. Depois de percorrerem as ruas da baixa de Bissau, a marginal e pouco mais, acabaram o dia no Fonseca9 a ostras e cerveja. Nesse dia, o alferes bebera mais cerveja do que em toda a sua vida, no início até estranhara beber tanta, contou até dez garrafas das grandes, que era o tamanho padrão, depois habituou-se, no 2.º dia já não contou. E os primeiros dias foram passados assim, esplanada do Bento, almoço na Amura, sesta com a ventoinha no tecto a andar à roda que o calor era muito, passeio à tarde, ostras e cerveja, jantar outra vez na Amura, e depois na cama, a cabeça a acompanhar a ventoinha, a andar à roda. Amanhã às nove, aqui na Amura, um jeep leva-o ao aeroporto.
Mal dormiu, às 8 estava pronto, pequeno-almoço tomado, mala e saco na mão.
Outra vez para a Praça do Império, pelos vistos passava tudo por ali, depois o jeep guinou para a estrada do aeroporto.
De quem é aquela estátua, ali à esquerda? Honório Barreto? Quem foi? Também não sabe? Uma grande recta, casas indígenas de um lado e doutro, à esquerda a seguir a uma curva o Hospital Militar, o Batalhão de Engenharia, o quartel de Brá umas centenas de metros adiante, charcos de água e palmeiras por todo o lado e o aeroporto à vista. Boa sorte, meu alferes, despediu-se assim o cabo condutor. Um Dornier 2710 da Força Aérea aguardava na pista. Era uma pequena avioneta de um motor, os bancos da frente para o piloto e acompanhante, a traseira reservada a correio, malas, pequenos volumes, o que calhasse e coubesse.
Ao rumarem para norte, viu Bissau a ficar mais distante.
Zona de Farim. © Foto de Carlos Silva.
Seguiu o voo, as manobras do piloto, as primeiras fotografias do ar, as matas lá em baixo, misteriosas, pouco amigáveis.
Aterraram, pouco mais de meia hora depois, num campo em Farim. Uma pequena povoação junto a um rio11, casas de adobe rodeando outras, maiores, de aspecto colonial, e nuvens de pó de viaturas com militares a rodarem para as margens da pista.
Aproximação à pista de Farim. © Foto de Carlos Silva.
É o alferes que vem substituir o Monteiro, para Cuntima, não é? Estava a ver que nunca mais chegava, o Tenente-Coronel de cavalaria, de mão estendida, ar duro.
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Notas:
2 - Navio misto da Sociedade Geral
3 - Serviço Geral do Exército. Faziam a carreira a partir de praças. Imprescindíveis para o bom funcionamento do Exército.
4 - Quartel-General.
5 - Café-cervejaria, ponto de encontro dos militares aquartelados em Bissau ou dos que se encontravam em trânsito. Ficou também conhecida por 5ª Rep. por naquelas mesas se falar de tudo.
6 - Repartição do QG (Serviços de Pessoal).
7 - A Fortaleza foi fundada em 1696 pelo capitão-mor José Pinheiro. A reconstrução iniciou-se em 1753, sob o traço de Frei Manuel de Vinhais Sarmento, e teve continuação 13 anos mais tarde, sob a direcção do coronel Manuel Germano da Mata. Devido à pedra empregue na construção da fortaleza ser de origem ferruginosa, desgastando-se rapidamente com o tempo, a muralha teve que ser reconstruída novamente em 1946, era então governador o Almirante Sarmento Rodrigues. A fortaleza tinha, no seu interior, um terreiro quadrado com 150 metros sombreado por mangueiras, cujo fruto é muito saboroso.
8 - Sob o comando do Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro, o Batalhão integrava a CCS e as C.ªs de Cav 487, 488 e 489. Arrancou de Estremoz, do RC 3, com a divisa "Sempre em Frente". A estadia na Guiné iniciou-se em Julho de 1963 e a comissão foi dada como finda em Agosto de 1965. Da actividade operacional, destaca-se a participação na operação "Tridente", na Ilha do Como, uma das operações militares de maior envergadura efectuadas pelas tropas portuguesas em todos os anos que durou a Guerra de África. Mas a acção do Batalhão não se resumiu a essa operação. Após o desembarque, com base em Bissau, desenvolveu várias acções na zona do Oio. Partiu para as Ilhas do Como, Caiar e Catunco em 14 de Janeiro de 1964 e só de lá saiu quando a acção foi dada por terminada, em 24 de Março de 1964. Passou então à quadrícula, assumindo, em 31 de Maio do mesmo ano, a responsabilidade do sector de Farim, que compreendia os subsectores de Cuntima, Jumbembem, Bigene e Farim e, a partir de 29 de Junho, o de Binta. Em 25 de Março de 1965 preparou-se para ocupar Canjambari (que estava dentro do sector à sua responsabilidade e que na altura estava nas mãos da guerrilha). Não foi uma acção fácil. Com a picada que ligava Jumbembem a Canjambari obstruída por enormes abatizes, emboscados e flagelados constantemente, apesar da vasta experiência das tropas, a ocupação só se deu por concluída em 31 de Maio de 1965. Em 15 de Junho o BCav 490 foi substituído no sector pelo Bat. Art. 733, tendo recolhido a Brá, onde ficou alojado até à data de regresso a Lisboa.
9 - Também conhecido pelo Solar dos 10.
10 - Servia para tudo, transporte de pessoal, correio, pequenas cargas, evacuações, reconhecimentos aéreos, posto de comando aéreo.
11 - Cacheu
(Continua)
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sábado, 27 de junho de 2015
Guiné 63/74 - P14802: Cancioneiro de Buba: "Oh! Xenhôr dos Matosinhos /, Oh! Xenhôra da Boa-Hora,/ Ensinai-nos os caminhos /P'ra desandarmos daqui p'ra fora!" ...(Manuel Traquina, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70)
Manuel Traquina, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2382, Buba, 1968/70, |
"Eles" era muita gente, mas cada um lá sabía dos seus ódios de estimação...Nessa altura,. eu tinha apenas uma semana de Guiné, e já tinha chegado a Contuboel onde puseram a funcionar um pseudo centro de intrução militar... Éramos mais de 400, entre instrutores
e recrutas, a CART 2479 e a CCAÇ 2590 (reduzia a 60 gatos pingados)... Os nossos recrutas, do recrutamento local, eram mais de 3e deram origem às futuras CART 11 / CCAÇ11 e CCAÇ 12...
Ao fim de seis meses eu também já cantava o "Eles não sabem nem sonham / Que o sonho comanda a vida / E que sempre que um homem sonha / O mundo pula e avança / Como bola colorida / Entre as mãos de uma criança".. O poema era do António Gedeão, lembram-se ?...
Não admira, por isso, que a canção favorita em Buba, por esses tempos, fosse o "senhor de Matosinhos", com o Cardoso da 15ª Companhia de Comandos, à viola, e o Gonçalves da CCS do Batalhão 2834, no acordeão...
Cantava esta e outras, ao fim de seis meses, já "apanhado do clima"... Não admira, por isso, que o "senhor de Matosinhos" fosse uma das canções favoritas da malta da Guiné, cantarolada por muitos de nós, nas noites de álcool, camaradagem e solidão... Não só por ser brejeira e divertida mas também pelo seu refrão, a que dávamos um sentido e um tom, sarcásticos, de contestação à tropa e à guerra... Em Buba, em Bambadinca, em muitos outros sítios... Julgo que a maior parte da malta não sabia a letra completa, mas todos sabiamos ao menos o refrão, muitas vezes cantado à moda do norte:
Oh! Xenhôr dos Matosinhos,
Oh! Xenhôra da Boa-Hora,
Ensinai-nos os caminhos
P'ra desandarmos daqui p'ra fora.
2. Aqui fica a letra. recuperada de um sítio dos escoteiros, e reproduzida com a devida vénia... [Ar livre > Escotismo > Cancioneiro].
Li algures, mas ainda não pude confirmar, que o autor (da letra e da música) seria um tal Avelino Carneiro (1907-1961), natural de Telheiro, São Mamede de Infesta, Matosinhos, talentoso autor, amador, de alguns peças de teatro de revista (, a primeira das quais terá sido, em 1942, "O senhor de Matosinhos), levadas a cena no Porto mas também em Lisboa, no parque Mayer.
Nada como a malta de Matosinhos para me esclarecer sobre este ponto... Por falta de tempo, não pesquisei mais nada sobre o "senhor de Matosinhos" que eu devo ter ouvido, pela primeira vez, na Guiné... E confesso que nem sequer sabia bem onde ficava Matosinhos... Só lá fui depois do 25 de abril, não à festa mas à terra, de gente boa, trabalhadora e hospitaleira... LG
Pom pom...
Da chidade da birgem, os dois,
Nós biemos há dias para cá,
A biagem foi bom mas depois
Ninguém biu o que a gente biu já.
Dizem que lá por Lisboa
A bida é boa, boa bai ela,
Mas só se bêem p'las ruas
Catraias nuas, ó lariló lé las.
Por isso como em Paranhos
Há paus tamanhos que é de 'spantar,
Na Baixa ou no Arrebalde
São de ramal os paus no ar.
Refrão
Oh! Xenhôr dos Matosinhos,
Oh! Xenhôra da Boa-Hora,
Ensinai-nos os caminhos
P'ra desandarmos daqui p'ra fora.
Pom pom . . .
Sant' Antoninho da Estrada,
Não digas nada, de tudo isto,
Quinté já sinto ingonias
Das porcarias que tenho bisto.
Ind' ontem ali na abenida,
Uma astrebida de perna à bela
Quis m' agarrar na mãozinha,
Mas, coitadinha, lebou com ela.
Refrão (...)
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Nota do editor:
(*) Vd poste de 23 de novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7324: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina (8): Dia de Aniversário
Não admira, por isso, que a canção favorita em Buba, por esses tempos, fosse o "senhor de Matosinhos", com o Cardoso da 15ª Companhia de Comandos, à viola, e o Gonçalves da CCS do Batalhão 2834, no acordeão...
Cantava esta e outras, ao fim de seis meses, já "apanhado do clima"... Não admira, por isso, que o "senhor de Matosinhos" fosse uma das canções favoritas da malta da Guiné, cantarolada por muitos de nós, nas noites de álcool, camaradagem e solidão... Não só por ser brejeira e divertida mas também pelo seu refrão, a que dávamos um sentido e um tom, sarcásticos, de contestação à tropa e à guerra... Em Buba, em Bambadinca, em muitos outros sítios... Julgo que a maior parte da malta não sabia a letra completa, mas todos sabiamos ao menos o refrão, muitas vezes cantado à moda do norte:
Ensinai-nos os caminhos
P'ra desandarmos daqui p'ra fora.
2. Aqui fica a letra. recuperada de um sítio dos escoteiros, e reproduzida com a devida vénia... [Ar livre > Escotismo > Cancioneiro].
Nada como a malta de Matosinhos para me esclarecer sobre este ponto... Por falta de tempo, não pesquisei mais nada sobre o "senhor de Matosinhos" que eu devo ter ouvido, pela primeira vez, na Guiné... E confesso que nem sequer sabia bem onde ficava Matosinhos... Só lá fui depois do 25 de abril, não à festa mas à terra, de gente boa, trabalhadora e hospitaleira... LG
Pom pom...
Da chidade da birgem, os dois,
Nós biemos há dias para cá,
A biagem foi bom mas depois
Ninguém biu o que a gente biu já.
Dizem que lá por Lisboa
A bida é boa, boa bai ela,
Mas só se bêem p'las ruas
Catraias nuas, ó lariló lé las.
Por isso como em Paranhos
Há paus tamanhos que é de 'spantar,
Na Baixa ou no Arrebalde
São de ramal os paus no ar.
Refrão
Oh! Xenhôr dos Matosinhos,
Oh! Xenhôra da Boa-Hora,
Ensinai-nos os caminhos
P'ra desandarmos daqui p'ra fora.
Pom pom . . .
Sant' Antoninho da Estrada,
Não digas nada, de tudo isto,
Quinté já sinto ingonias
Das porcarias que tenho bisto.
Ind' ontem ali na abenida,
Uma astrebida de perna à bela
Quis m' agarrar na mãozinha,
Mas, coitadinha, lebou com ela.
Refrão (...)
Nota do editor:
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