O Jorge viveu a infância e os primeiros anos da sua juventude no mundo do “nós”. Nós, os portugueses, os melhores do mundo; nós, os portugueses, os descobridores e senhores de grandes possessões em África, na Índia e na Oceânia; nós, os portugueses, uma plêiade fantástica de heróis, de aventureiros e de santos; nós, o homem branco, senhor do mundo.
Na ciência, pontificavam os ilustres brancos. Na religião, o “deus” era branco, e os seus seguidores eram brancos. Tinham ido, nos tempos de antanho, para África, para a América e para a Índia levar a “boa nova” de paz e amor aos “outros”, os selvagens, coitados.
Quem caminhava a passos largos para conquistar a Lua eram os homens brancos. Na política, sabia, apenas, que, em Portugal, havia um famoso branco, adorado e temido por todos os “outros” brancos.
No início da sua vida, neste espaço terrestre onde nasceu, foi descobrindo que ali também havia o “outro”; ou, melhor, “outros” que se diferenciavam pela casta: os iguais, pobres e humildes, que tiravam o chapéu e se curvavam respeitosamente perante o “outro”, o senhor das terras e haveres, de quem dependiam para sobreviver, pelo trabalho, de sol a sol, que lhe prestavam em troca de uma tijela de caldo e uns tostões para matar a fome aos filhos.
A sua grande descoberta, e que o marcou para toda a vida, aconteceu quando desvendou que ele existia porque existia o “outro” e lhe servia de espelho vivo. Porque o “outro” andava de pé, começou a tentar pôr-se de pé e viu que podia dar passos – os primeiros passos, a grande novidade. Depois foi toda uma vida a olhar para o “outro” e a imitá-lo, para o bem e para o mal. Deste modo, construiu o seu “eu”, a sua personalidade; descobriu as suas capacidades e potencialidades e a forma de as pôr em prática. Se o “outro” não existisse, o Jorge seria apenas um animal, diferente dos outros animais pelo dom de saber pensar, mas nunca seria, na realidade, o homem que é e de que se orgulha de ser.
Ao encontrar-se no cosmos, protegido por um deus branco, sentiu que, afinal, era um privilegiado. Era branco, e havia os brancos, e os “outros”, pobres coitados, incultos, selvagens, incivilizados, que era preciso salvar para o seu deus branco. Os europeus dos tempos de outrora, capitaneados pelos “nossos”, os heróis portugueses, tinham empreendido grandes expedições para localizarem os “outros”, conquistarem as suas terras, explorarem as suas riquezas e converterem-nos à sua religião. Agora, continuavam a “protegê-los” com as suas armas e a enviar os seus missionários para os converterem ao seu deus, porque os deuses dos “outros” eram falsos. Estranhamente, só muito mais tarde desvendou que, afinal, “nós”, os europeus, ganhávamos fortunas colossais com a escravização, humana e económica, dos “outros”, os tais coitadinhos que precisam de ser salvos…
O “nós”, Portugal, encheu-se, assim, de orgulho pelas “descobertas” de terras que fez, como se elas não existissem desde sempre; pelas riquezas que explorou e roubou aos “outros”, e que aliava à “salvação” das suas almas, aqueles “outros” que tinham história e culturas e projetos de vida próprios, terras para cultivarem, e famílias estruturadas à sua maneira.
Um dia, Jorge, a mando dos dominadores do “nós” – os senhores do mundo –, foi até África para mostrar aos “outros” que quem mandava éramos “nós” – os brancos –, com todo o poder na ponta das suas armas de guerra, e sofisticadas estratégias militares. Aterrou numa aldeia cheia dos “outros”, os selvagens, de quem se afirmava que não aceitavam ser portugueses. Contudo, ao internar-se pela
tabanca (1) dentro, armado de uma potente arma, viu-se rodeado por um grupo de simpáticas crianças negras que, disputando-lhe os dedos das mãos, gritavam, alegremente,
“beranco! beranco!” (2), numa atitude de boas-vindas, o que confundiu e perturbou profundamente o seu espírito.
Tocavam-lhe com as suas mãozitas e, depois, examinavam-nas atentamente, como que para comprovar se, por acaso, não tinham ficado brancas. Deliciavam-se a massajar-lhe o cabelo louro, liso e macio, e riam-se, riam-se…
Ali, embalado pela música das crianças, encontrou uma sociedade aparentemente muito pobre, para
os seus padrões de vida, mas rica de valores humanos, em que o conceito de solidariedade e respeito pela pessoa era igual, ou até superior, ao que ele tinha aprendido no meio do “nós”, os senhores do mundo. Estranhamente, pela primeira vez, sentiu que era branco e um branco no meio dos “outros”, os pretos.
Que grande descoberta cultural a que fez, nesse fim de tarde! Observou a cor da sua própria pele e a importância que esse pormenor tinha no seu próprio destino. Nunca o tinha feito. E foi uma nova luz para a sua própria história.
Jorge sentia-se o “outro”, e registou na sua mente que, afinal, não há brancos nem pretos; há, apenas, pessoas de pele diferente, com capacidades e potencialidades, com culturas e religiões, com sonhos e ambições, mas pessoas que merecem ser respeitadas. Sentiu, perante a reação das pessoas, que a cor da sua pele, aliada ao poder da arma, que trazia à tiracolo e o acompanhava sempre, eram fatores de separação ou talvez de medo. E ficou triste.
Estava no meio de um povo que amava a vida, tanto quanto ele, e que tinha uma estrutura familiar
bem definida, com as suas crianças cheias de vida e com direito a um futuro promissor, metido no meio de uma guerra que não queria, mas suportava com estoicismo e esperança.
As pessoas que o compunham cantavam e dançavam as suas modinhas, como ele, na sua terra longínqua. Saíam de madrugada para a
lala (3), para amanhar as terras e colher o pão, como também ele o fizera tantas vezes.
Sentavam-se à sombra das árvores no calor da tarde para conversarem, o que lhe recordava, com saudade, os tempos em que ele se aninhava na borda do campo, à sombra das videiras carregadas de cachos de uvas doiradas, para saborear a merenda – quantas vezes –, uma sardinha frita com um naco de boroa e um copo de vinho. Eram um pouco preguiçosos, pensava, sem se aperceber de que o calor era abafante e de que o suor lhe escorria pelo peito, mesmo quando estava sentado à sombra do embondeiro a jogar às cartas ou a escrever uma carta para a namorada.
E tinham medo, um terrível medo da morte, que espreitava pelos canos das armas a todo o momento, tal como ele.
Deixaram-no entrar no seu ciclo de vida e nas horas vagas da guerra. Jorge embrenhava-se na tabanca, como se fosse na sua aldeia. Discutia-se futebol com emoção ou jogava-se, tantas vezes, com uma bola de trapos. Criou amizades e até se apaixonou pela
bajuda (4), que, segundo ele, foi a mulher mais bela que conhecera em toda a sua vida.
Sobre essa paixão, escreveu uns tempos mais tarde:
“Tinha uma pele de uma suavidade intensa, pigmentada com laivos do sangue vermelho que a impregnava e lhe dava vida, transformando o negro, negro, numa coloração rosada; divinal para os meus olhos sedentos. Assim era a pele daquela jovem africana, de corpo esbelto e seios firmes, que avistei ao pôr o pé naquela tabanca, pela primeira vez. O Sol, ao fazer incidir sobre ela os seus raios doirados, dava ainda mais beleza àquele corpo talhado por mão divina em noite de lua cheia.
Os meus dedos, agilmente, tatearam os pomos ardentes que lhe saltavam do peito descoberto, atraídos pelo sorriso cativante e acolhedor que me devorou as entranhas, na ânsia de neles encontrar a chave da porta do futuro, que me esperava naquele chão vermelho.
Um olhar, profundo e firme, vindo de uns olhos amendoados e de um negro fascinante disse-me que estava a ser ousado em demasia, enquanto duas mãos firmes me retinham o gesto, ficando entrelaçadas nas minhas mãos atrevidas.
Tal como o olhar, as mãos daquela jovem de 18 anos, calejadas pelo duro trabalho da labuta na “lala”, deixavam passar um calor humano de boas-vindas que me encadeou o coração àquela terra e às suas gentes.
A Fatmata, assim se chamava a deusa que penetrou tão docemente no meu coração, foi, de ora em diante, a luz que me iluminou o caminho por entre a floresta da vida que trilhei, ao longo do tempo que se seguiu a este encontro feliz com a sua comunidade.
Estávamos na flor da juventude. Provínhamos de lugares e culturas tão diferentes, tanto quanto é diferente a cor da água e a cor do vinho tinto. Uma coisa, nós tínhamos em comum: a vida. E a vida merece ser vivida com garra e doação, o que fizemos nos seis meses que convivemos. Aprendemos a conhecermo-nos melhor como pessoas e a respeitarmos a essência de cada um. Pela sua mão penetrei na comunidade local e na sua cultura ancestral, que desconhecia inteiramente. Foram lições de cultura, saberes e práticas, por vezes estranhos, mas com sentido para a vida da sua etnia e do seu mundo, localizados no espaço e no tempo histórico. Aprendi a ser um deles – Perdi-me na prisão dos seus braços, encandeado pelo seu olhar cativante e desafiador, e fizemos das nossas vidas o mais belo templo do amor.
Da louca corrida do tempo, ficou apenas a sua imagem, colada à suavidade da sua pele.”
Gerou-se, então, uma tremenda desordem na sua mente. Foram meses de interrogações a si próprio, com respostas confusas; meses de silêncios e sofrimento.
Tinha o poder das armas do seu lado. Havia uma população autóctone que nem por sombras era hostil ao seu país, bem pelo contrário, dava mostras de uma extrema fidelidade a Portugal, e havia um inimigo na mata a combater. Um povo rasgado ao meio. Irmãos contra irmãos. As ordens superiores do “outro”, e que mandava nele, eram no sentido de destruir o inimigo e de assegurar o bem-estar da população que lhe era fiel. Mas, do outro lado, nas tabancas dos “outros” que sonhavam com a construção de um país novo, liberto das peias do colonialismo, havia irmãos dos seus amigos africanos, havia esposas, havia mulheres, crianças e velhos.
O Kebá, seu amigo, disse-lhe, um dia, que uma das esposas e dois filhos tinham optado por combater pelos “outros”. Era mais uma razão para se recusar a pegar numa arma, o que não era muito bem visto pelos “senhores” dos galões doirados que mandavam em “nós” e não sabiam o seu segredo, pois, se o soubessem, rotulavam-no de amigo dos “outros” e enviavam-no para a
Ilha das Galinhas (5).
Os duros combates sucediam-se. A morte entrava ruidosamente e ceifava as vidas daquela gente. Choravam-se os mortos. Os de cá, expressando a dor, mas, quando os mortos eram irmãos do outro lado, abafava-se a dor no silêncio e talvez no ódio.
As crianças saltavam-lhe para os braços, puxavam-lhe pela pera, tiravam-lhe os óculos. Ele corria atrás delas e, se caíam no chão, curava-lhes as feridas. Ao cair da noite, sentava-se à porta das
moranças (6) com os mais velhos em amena cavaqueira. O velho Samba, com as suas histórias, mitos e lendas do povo e, os fatos reais de uma vida rica de experiências e a defesa do Corão como livro sagrado e do Islamismo como a religião única e verdadeira, era um homem culto e experiente. Tinha sido durante muitos anos cozinheiro num hotel, na cidade. Quando a guerra eclodiu, decidiu abandonar a profissão e regressar para junto do seu povo, para o organizar na defesa contra o inimigo, a quem ele chamava o “irmão que andava enganado”.
O Abdulai, com as suas perguntas numa preocupação
contínua de apreender novos saberes e conhecimentos da cultura do seu irmão
beranco, aprendera a ler e “devorava” tudo o que lhe aparecia, fossem jornais, revistas de quadradinhos, ou livros.
Um dia, lera algo que o perturbou profundamente: “Os horrores do holocausto”. Descarregou em Jorge todas as questões que tal leitura lhe levantara e transformou uma noite de esplendoroso luar na noite mais escura que Jorge viveu na sua vida. Às perguntas: Por que aconteceu o holocausto, como puderam matar tanta gente que não andava na guerra, por que as mataram, e tantas outras questões que o Abdulai levantou, ele não foi capaz de responder e, sobretudo, encontrar a mínima justificação. Nessa noite, pela primeira vez, sentiu vergonha de ser branco; sentiu-se cúmplice dos crimes cometidos.
Aliu, o homem que detinha o poder gentílico, bamboleando-se na sua rede à porta do seu harém, e Jorge, sentado no banquinho de três pernas, perdidos pela noite dentro e trocando conhecimentos entre duas culturas tão díspares, tanto quanto a sua forma de ser e estar na vida, ou discutindo religião, em que o Islamismo se aproximava do Cristianismo, e vice-versa, no que respeita ao amor de Deus pelos homens e no respeito que o homem deve ter pelo seu semelhante.
Outras vezes, eram as
bajudas, a sua tentação noturna. Perdia-se com elas nas conversas de amor e paixão, sempre em tom baixo, à porta do abrigo e de ouvido atento aos sinais do “outro”, os da outra banda. De vez em quando, aparecia o velho Samba com um sorriso maroto a lembrar o perigo e a mandar recolher.
Nunca a vida tivera tanto valor como naqueles tempos, os melhores tempos da sua juventude. Jorge deixou que o seu sangue embebesse o sofrimento, as alegrias e as esperanças daquele povo e sentiu-se perdido. Ele tinha de ser um dos “outros”, os verdadeiros donos da terra perdidos nas duas frentes da guerra, sem deixar de ser ele, próprio. Mas como?
Havia ainda muito tempo para penar naquela inóspita terra vermelha, regada de sangue e lágrimas por ordem do “outro” que mandava na Metrópole ou “pátria-mãe”, como gostava que se chamasse ao Portugal europeu.
Sabia o rigor das regras militares a que estava submetido, desde que se tornou mancebo e entrou no quartel, tinha vinte anos. Sabia que, numa vivência em estado de guerra, como aquela em que estava envolvido, há momentos em que “ou matas ou morres”, como diz o povo, na sua sabedoria popular. Sentia que não tinha o direito de matar, tal como tinha aprendido na catequese que uma velha e rabugenta, mas muito querida, lhe tinha ministrado em criança.
O dilema bailava-lhe dentro da sua mente em sofrimento, e foi crescendo, crescendo, quase o coibia de pensar. A sua consciência impedia-o de agir com a violência das armas, pelo perigo de matar alguém. Impedia-o, também, de desertar ou, de algum modo, de mostrar o seu desacordo quanto às regras e ordens que lhe eram impostas. A morte de camaradas brancos e africanos, caídos por balas ou estilhaços assassinos, perturbava-o e obrigava-o a um estado de alerta e tensão permanentes. Isolava-se dos camaradas, fechava-se em si, e resistiu à tentação do álcool, mas já não era o mesmo rapaz alegre e comunicativo. Se o queriam ver feliz, era acompanhá-lo nas suas idas à tabanca.
Um dia, caiu numa emboscada. Atirou-se para o chão, protegeu-se atrás de uma árvore e deixou-se estar de arma calada. Mandado avançar numa tentativa de envolver o inimigo, seguiu os seus camaradas de arma em posição de ataque, sem dar fogo. Descobriu, então, que se podia “fazer guerra” de uma forma passiva, não intervindo: tomou a decisão. Guardou ciosamente o seu segredo durante o resto da longa comissão.
E quantas vezes, perante as situações de morte e de sofrimento que, à sua volta, grassavam na sequência das duras lutas travadas, a tentação de reagir pela força da sua arma teve de ser repelida pela consciência, num combate constante entre o coração e a razão!
Os camaradas foram-se apercebendo da mudança que nele se operou. Tornou-se, de novo, um
companheiro alegre e comunicativo. Participava nas animações que, esporadicamente, os camaradas promoviam a pretexto de um aniversário, de uma remessa de iguarias que alguma mãe enviara, numa tentativa de aliviar o isolamento e o sofrimento do filho querido, perdido na guerra. Deliciavam-se com os fadinhos de Coimbra, que Jorge tão bem cantava, mas, quando saíam para o mato, em missão, dita de soberania, à procura do inimigo, Jorge transmudava-se. Fechava-se em si próprio, no silêncio e na atenção aos movimentos que podiam vir da traiçoeira mata.
Terminada a comissão de serviço, regressou à sua terra natal – o Porto –, onde o esperava a família para lhe fazer uma viva e calorosa receção. Recorda-se que só se sentiu liberto do fantasma da guerra quando, ao chegar à estação de Gaia, avistou o seu Porto. Do que resta do primeiro encontro com a família, só se lembra de abraçar a mãe e dizer-lhe ao ouvido: “consegui”.
Ele conseguira cumprir a promessa que fizera à sua mãe na hora da partida para a guerra. Não matar!
José Teixeira
O Zé Teixeira: (i) tem cerca de 300 referências no nosso blogue;