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quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25110: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (27): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Junho de 1971



"A MINHA IDA À GUERRA"

27 - HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: CAPÍTULO II - ACTIVIDADES NO TO DA GUINÉ

João Moreira


MÊS DE JUNHO 1971

O MEU COMENTÁRIO AO DIA 09 DE JUNHO DE 1971

Partida do resto da Companhia do Olossato para Nhacra (2.ª grupo de combate, 4.º grupo de combate e resto do comando e dos serviços).
Durante o trajecto entre Bissorã e Mansoa uma viatura da coluna "AVARIOU"? por 2 vezes.
Como eu era o graduado mais próximo desta viatura comuniquei ao capitão que mandou parar a coluna.
Pouco tempo depois a viatura voltou a "trabalhar" e a coluna prosseguiu.
Perto de Mansoa a mesma viatura voltou a "AVARIAR".
Após pedir ao capitão para parar a coluna, dirigi-me ao condutor e disse-lhe que estava quase a escurecer e não podíamos ficar ali parados. Desta forma só tinha 2 alternativas:
1) - Ou punha a viatura a trabalhar e seguia com a coluna OU
2) - Ficava lá sozinho, porque a coluna tinha de prosseguir.
Dei sinal ao capitão para a coluna avançar, e passados poucos minutos a tal viatura já seguia na coluna.

Chegados a Mansoa tomamos a estrada asfaltada que ligava Bissau a Mansabá.
Poucos minutos depois a "viatura avariada" por 2 vezes ultrapassou a coluna em grande velocidade e nunca mais ninguém a viu.
Deduzo que este condutor tinha "instruções" para retardar a nossa chegada a Nhacra, porque os nossos quarteis entre Mansoa e Nhacra foram todos ou quase todos atacados ao mesmo tempo que Bissau foi atacada com foguetões 122 m/m, lançados do Cumeré.

Chegados a Nhacra fomos instalar os soldados no edifício, que estava em construção, para instalar o posto emissor da Emissora Provincial, e ficava ao lado do quartel.
Depois fomos para o quartel para descarregar a nossa bagagem e instalarmo-nos nos quartos que reservaram para os furriéis.
Com a viatura parada junto aos nossos quartos e alguns furriéis em cima, a tirar a nossa bagagem, e os outros no chão a recebê-la e arrumá-la para depois nos instalarmos.
Nesta altura começaram a passar balas tracejantes, do lado do Cumeré para a estrada Bissau/Mansoa.
Pela trajectória das balas parecia que vinham dum edifício do quartel e nós, os furriéis da CCAV 2721 a pensar que era alguma brincadeira do pessoal que íamos render dizíamos:
- "Ide brincar com o caralho"...
- "dos tiros vimos nós"...
- "Estamos fartos da guerra"...
- Etc...

Passado pouco tempo rebentou uma rocketada.
Nessa altura percebemos que não era brincadeira.
ERA MESMO UM ATAQUE.
Perguntamos aos "velhinhos", que estavam connosco, onde eram as valas ou qualquer local onde nos pudéssemos proteger.
Como responderam que não havia valas nem locais protegidos, meti-me debaixo da viatura, do lado de dentro da roda de trás. Passados alguns segundos, estavam lá todos os furriéis - nossos e os da companhia que íamos render.

A companhia recebeu ordem para sair, mas eu fiquei no quartel porque tinha os pés cheios de bolhas porque vinha calçado com as botas de couro.
Grande recepção, com "fogo de artifício" e tudo...
E vinha a Companhia para uma zona onde não havia "guerra".
Felizmente, foi caso único.
No destacamento de DUGAL, morreu um soldado do 1º grupo de combate, vítima de ferimentos no ataque ao destacamento.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 18 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25084: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (26): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Maio de 1971

Guiné 61/74 - P25109: Por onde andam os nossos fotógrafos? (19): António Murta, ex-alf mil inf MA, 2ª C/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74) - Parte IV: Bem-vindos a Nhala!

Foto nº 16


Foto nº 17


Foto nº 18


Foto nº 19


Foto nº 20


Foto nº 21


Foto nº 22

Guiné > Região de Quínara > Nhala e Buba >  2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)  

Fotos (e legendas): © António Murta (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Estamos a recuperar, selecionar e reeditar algumas das melhores fotos do António Murta, ex-alf mil inf  MA,  2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74). (*)

O Murta nasceu em Cantanhede, em 1951, vive atualmente na Figueira da Foz. Está reformado há mais de 10 anos. Passou a integrar a Tabanca Grande em 2014.

Tem já cerca de 110 referências no nosso blogue, é  autor de uma notável série, "Caderno de Memórias de António Murta"...  de que se publicaram mais de 4 dezenas de postes.

Só começou a fazer fotos a cores ("slides") quando comprou,  vindo de férias, uma Olympus compacta: "Digitalizados com um scanner normal, são uma triste amostra dos originais. Com muito deles optei por fotografar a projecção em suportes variáveis, com os inconvenientes que também isso acarreta." . 

 Fotos nºs, de 16 -17 > Nhala, 1973:

Foto nº 16 > Pórtico de entrada da tabanca
Foto nº 17 > Centro do aquartelamento com mulheres que vem da fonte.

29 de Abril de 1973 (domingo)  (**)


(...) À chegada da coluna a Nhala, e ainda antes de termos descido das viaturas, num ápice, formou-se uma pequena multidão vinda da tabanca, sobretudo mulheres e crianças, que nos receberam com palmas, cânticos, enfim..., se não em apoteose, pelo menos com grande euforia. 

Fiquei entre contente e surpreso, a achar tudo um bocado exagerado. Seria sempre assim? Não foi preciso passarem muitos dias para ter uma explicação, plausível, para aquele acolhimento tão efusivo.

(...) E cantavam acompanhando com palmas:

Periquito vai pró mato / Ó lé, lé, lé!, Velhice vai no Bissau / Ó lé-lé – lé-lé!.

Esta cantilena, soube depois, era conhecida em quase todo o território da Guiné. E eram-lhe acrescentados outros versos, que só aprendi mais tarde, muito brejeiros e, pareceu-me, ao sabor da inspiração do momento:

"Mulher grande cá tem cabaço, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dele / Ó lé-lé – lé-lé"
"Mulher grande cá tem catota, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dela / Ó lé-lé – lé-lé"

E voltavam ao princípio com o Periquito vai pró mato, etc. etc.

(...) Desembarcados com armas e bagagens, havia que distribuir o pessoal pelas acomodações previamente preparadas pelo comando da Companhia que iríamos render (após um longo período de sobreposição das duas companhias para o nosso treino operacional e para conhecimento da nossa área de acção).

Verificámos que o aquartelamento estava ainda em obras, com alguns edifícios inabitáveis e valas a rasgar o chão. Mas em vias de conclusão. Não foi fácil acomodar duas companhias numa área pensada para apenas uma e em vias de conclusão. Parte de nós fomos distribuídos por pequenas palhotas na tabanca. Apesar disso foi com satisfação que constatámos que iríamos ter condições condignas de alojamento. 

Eu, confiante, imaginava já os melhoramentos de conforto a introduzir, o arranjo e embelezamento dos exteriores que tornassem a nossa estadia mais agradável, sobretudo no regresso das saídas para o mato. Até lá, havia que desenrascar. A mim também foi destinada uma pequena palhota mesmo no início da tabanca, portanto, fora da área militar. Cabiam apenas, lado a lado, duas camas de ferro e aí fiquei com outro camarada até à conclusão das obras no aquartelamento. Nalguns casos foi até ao fim da comissão dos “velhinhos”. Pouco espaço nos restava dentro da palhota, mas era um abrigo e, além disso, tinha qualquer coisa de exótico a condizer com os cheiros, o pó e o calor de África. Pessoalmente, gostei da experiência.

(...) A população de Nhala é Fula. Os adultos parecem muito indiferentes em relação a nós, ou mesmo frios. Dependem muito da tropa, mas estão fartos de tropa. As mulheres e as bajudas atravessam o aquartelamento para se deslocarem à fonte que fica a pequena distância, num baixio. Está sempre alguém a passar para um lado e para o outro com bacias à cabeça e com a roupa que nos lavam. (...)

As bajudas, algumas bonitas, e toda a criançada são uma simpatia. É contagiante a alegria delas e um bálsamo para a nossa saúde mental. Ainda assim, como já disse, os “velhinhos” de Nhala parece que já não beneficiam desse bálsamo. Aproveitando as recomendações deles, vamos escolhendo as nossas lavadeiras. A oferta é grande, de modo que se fazem “contratações” despreocupadamente. 

E em matéria de sexo, como é? Já em Bolama aprendemos que há lavadeiras “que lavam tudo” por pouco mais que a mensalidade da roupa lavada. «Desiludam-se!». As fulas são muito reservadas e pouco permissivas. Contam-nos um caso ou outro de envolvimento com militares, mas excepcionais e por questões de afecto. A tropa em geral vai brincando, mais ou menos inocentemente, com as bajudas mais velhitas, mas sem consequências nem gravidade. De vez em quando, por ocasião da entrega da roupa lavada aos soldados, lá vem uma delas fazer queixa:

- Alfero, o soldado Manel do teu pelotão apalpou minha mama!

E eu perguntava:

- Ai, sim? E não lhe deste uma estalada?

E estava o caso resolvido.(...)

Fotos nºs 18-22 > Mulheres de Buba (***)

(...) Não recordo a data (1973 ou 1974) nem a razão deste evento em Buba, com grande aparato de viaturas, mulheres e militares à mistura, mas garanto que foram momentos de grande descontracção os que nos proporcionaram as mulheres de Buba, com a sua alegria, vitalidade e carácter forte. 

Reconheço na assistência, soldados do meu grupo de combate e de outro grupo de Nhala. No meio da roda de dançarinas, pode ver-se o cap mil João Brás Dias,  da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 de Buba, animando a festa. (...) (***)

(Seleção, reedição de fotos, revisão / fixação de texto: LG)

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Guiné 61/74 - P25108: O segredo de...(42): Patrício Ribeiro, "filho da escola", fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre... Numa canoa nhominca, em Varela, pelo mar dentro mar, com os útimos 10 portugueses e outros estrangeiros fugidos da guerra civil de 7 de junho de 1998


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Praia de Varela > Maio de 2021 > Praia sul >  A minha cana de pesca


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Praia de Varela > Maio de 2021 > Praia sul > Quilómetros de praia, que continua a ser bela e aprazível, apesar das alterações climáticas e da erosão.


Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Varela > Tabanca de Iale >  Maio de 2021 > A minha casa ao entardecer, às 6h30

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Não é fácil arrancar "segredos" aos antigos combatentes que passaram pelo TO da Guiné entre 1961 e 1974. Esta série, "O segredo de..." (*), não pretende ser sensacionalista ou voyeurista. Tem apenas como objetivo facilitar a partilha de memórias, mais recalcadas, mais distantes ou já esquecidas, nalguns casos, ou mais difíceis de contar em público, com receio de censura social ou de grupo, noutros casos... Achamos, por outro lado, que devemos também dar visibilidade e  pu
blicidade a ações relevantes, praticadas por amigos e camaradas nossos, cuja modéstia os inibe de falar delas...

Um dos exemplos é o  Patrício Ribeiro que cultiva o "low profile", é discreto, vivendo há quatro décadas na Guiné-Bissau, onde é empresário e... estrangeiro. 

Na guerra civil de 1998/99 ele  estava lá. E teve um comportamento de grande coragem e nobreza, tendo socorrido e ajudado alguns compatriotas e outros estrangeiros, que lá viviam ou foram apanhados pelos acontecimentos.

Recorde-se que ele nasceu em Águeda, em 1947, foi levado pequeno para Angola, cresceu em Nova Lisboa (hoje Huambo). Aqui casou, viveu e trabalhou. Fez a tropa como fuzileiro (1969/72). 

Veio depois para Portugal na véspera da independência, na 23.ª hora (**); mas nunca gostou da sua condição de "retornado":  em 1984, decidiu ir viver e trabalhar, na Guiné-Bissau, primeiro como cooperante, e depois estabecendo-se como empresário: fundou uma empresa ligada à energia, a Impar Lda...  Agora, aos  76 anos, recusa-se a reformar-se, está cá e lá (sobretudo quando cá faz frio, e chuva, e é inverno). 

Vai dando, por outro lado, uma mãozinha ao filho que lhe sucedeu nos negócios, continua a gostar de viajar pelo interior da Guiné  (e nomeadamente de canoa nhominca, pelos Bijagós)... E, quando cá vem, dedica-se também à sua agricultura em Águeda.   

Membro da nossa Tabanca Grande desde 2/1/2006, é  autor da série "Bom dia desde Bissau" mostrando-nos pontos desconhecidos ou já esquecidos daquela terra verde-rubra...  

É nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau; tem já cerca de 150 referências no blogue...

Ainda não "abriu o livro todo" das memórias de Angola e da Guiné-Bissau. Mas já nos contou aqui um dos seus "segredos" (*). 

De um outro viemos a sabê-lo, há uns largos anos,  por intermédio de um amigo comum, infelizmente já falecido, o eng. agrónomo  Carlos Schwarz da Silva, mais conhecido por "Pepito"  (1949-2012).

Esse "segredo", em boa verdade já não o é, foi divulgado há anos no blogue (***), merece todavia figurar nesta série... para "memória futura"


O segredo de...(41): Patrício Ribeiro, "filho da escola", fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre... Numa canoa nhominca,  em Varela, pelo mar dentro, com os útimos 10 portugueses  e outros estrangeiros fugidos da guerra civil de 7 de junho de 1998, até ao NRP Vasco da Gama

Tenho aqui perto, em Varela, uma pequena palhota para passar alguns fins de semana (vd. fotos acima). Há 20 anos estava a mais de 250 metros do mar, agora o mar já está muito mais perto; dentro de algum tempo, já posso pescar com a cana, a partir da minha varanda…

Neste mesmo local, numa clareira, aterraram os helicópteros da fragata Vasco da Gama, para recolher os Portugueses que aqui estavam encurralados na guerra de 1998.  Foi num destes helis que o nosso saudoso Pepito, saiu.

Eu também aqui estava… Mas tinha por missão ajudar a sair outros Portugueses que se encontravam no interior, em Canchungo (antiga Teixeira Pinto) e Cacheu. Como não apareceram às horas combinadas, estive em S. Domingos e depois em Ingoré (sem combustível e em situação de guerra),  à procura deles… E de onde, a partir dos rádios da Missão Católica, comuniquei com a fragata a informar que estavam atrasados para a sua evacuação…

Ao fim do dia, também saí desta praia de Varela, numa canoa nhominca, acompanhando os últimos 10 portugueses que quiseram sair, assim como de outras nacionalidades, a quem a fragata autorizou o embarque… 

Como destino, “o pôr do sol”, o poente… Passados 18 milhas, mar adentro, lá encontramos a nossa frota com 3 navios dos “filhos da escola” que na parte final nos vierem cumprimentar nos botes e mandar subir pela escada de corda, para a fragata Vasco da Gama.

Já não foi possível os helis da fragata Vasco da Gama voltarem a aterrar na praia, havia quem os quisesse deitar abaixo… mas fomos acompanhados pelo ar, de onde recebíamos ordens, por vezes mandavam-nos, à nossa canoa, desviar de alguns obstáculos, que havia no mar …

Gosto de falar da minha praia de Varela de que adoro; dos banhos na água quente a 30º, das minhas pescarias diretamente para o grelhador, acompanhadas por umas bacias de ostras, etc…

O que escrevi,  num comentário, é um pequeno resumo dos diversos capítulos vividos naquela época, mas muitos deles ainda os considero 'classificados'.

Quando nos voluntariamos a ajudar os outros, quando pessoas a chorar nos pedem para não os deixar para trás..., a “formação militar não o permite", vem ao de cima...

E, por força das circunstâncias, passamos a ser o elo de ligação entre o resto do mundo e o interior de um país em guerra, de onde não é possível informar os familiares: onde estamos, que estamos vivos…  E, repara, não havia telefones e as fronteiras estavam fechadas, quer internamente, quer com os países vizinhos e estas últimas estavam a ser bombardeadas. Bissau ficava longe e não se sabia o que se passava no interior.

E quando do exterior… nos pedem a colaboração, através do nosso “bombolom”, para encontrar esta e aquela pessoa de quem não se tem notícias há muitas semanas, certamente qualquer um de nós ajudaria, se tivesse condições...

Os restantes capítulos vão saindo, quando alguém tocar na "ferida".

Luís, depois de ter saído na canoa nhominca, que, no regresso, na minha presença, carregou da fragata Vasco da Gama a primeira ajuda humanitária para a Guiné, destinada à Missão Católica de Suzana, eu voltei para Portugal. Não, não fiquei lá...

Mas, passados 2 meses regressei à Guiné, via Dakar e táxi aéreo para Bubaque, dali para Bissau em vedeta de guerra, que foi construída no Alfeite e que estava na mão dos militares senegaleses.

De Bissau por vezes saía para Varela, quando recebia um 'papelinho',  avisando que era melhor ir dar uma volta… Pegava na minha mochila com uma lata de atum, atravessava a pé as bolanhas e lá ia eu para banhos.

O aeroporto de Bissau esteve fechado quase um ano… Quando da morte do 'Nino', tinha ido passar o fim de semana à ilha de  Orango…

Na morte do Ansumane Mané, estava fora de Bissau... Ao reentrar em Bissau encontrei quase uma centena de milhares de pessoas, a saírem a pé. Algumas já iam para lá de Nhacra. Fiz um apelo na rádio RTP África, para mandarem transporte, a fim de apanharem as pessoas que estavam a dormir à beira da estrada, sem quaisquer condições.

Ao mínimo problema, a estrada principal era fechada a viaturas, em Safim.

Assim, como da morte dos restantes altos dirigentes do país..., estava fora, por Varela, Contuboel, etc.  

( Excertos  de vários textos e comentários, revisão / fixação de texto / negritos:  LG)


2. Comentário do nosso editor LG:
 
Patrício Ribeiro, português,
nascido em Águeda, em 1947,
criadoe casado em Angola,
com família no Huambo,
ex-fuzileiro em Angola de 1969
a 1972, a viver na Guiné-Bssau
desde 1984,
fundador, sócio-gerente
e director técnico
da firma Impar, Lda-


Patrício,  não é por acaso que eras conhecido em Bissau, ainda até há pouco tempo, como o "pai dos tugas"... Os jovens, cooperantes, rapazes e raparigas, tinham por ti um enorme respeito e admiração na altura em que o meu filho, João Graça, te conheceu em dezembro de 2009, em Bissau...

Esta história do resgaste de diversos portugueses e 
outros, em plena guerra civil (que começou com o golpe de  Estado de 7 de junho de 1998), perdidos em Varela, Canchungo  e Cacheu, devia merecer honras de título de caixa alta nos jornais da época e nas parangonas dos telejornais... Não me dei conta que isso tenha acontecido... Mas é uma verdadeira história de heroísmo que te honra e nos honra a todos nós, portugueses, teus amigos e camaradas!...

Deixa-me recordar, para os nossos leitores mais recentes, que na sequência daquele conflito, foi  montada pelo Governo Português uma operação de resgaste de cidadãos portugueses e de outras nacionalidades. 

Essa operação, com o nome de código Crocodilo, envolveu uma força conjunta dos três ramos das Forças Armadas. A componente naval foi  constituída pela fragata Vasco da Gama, com dois helicópteros Lynx Mk95 embarcados, pelas corvetas Honório Barreto e João Coutinho e o navio reabastecedor Bérrio

A atuação dos dois helicópteros foi fundamental para o êxito da missão. A força naval foi comandada pelo capitão-de-mar e guerra Melo Gomes. 

(Vd. P. Conceição Lopes, CFR: Operação Crocodilo. "Revista da Armada", julho de 2013, pág. 20).

A história do resgate, efectuado por tua conta e risco, em Varela, já a tinha ouvido contar, na tabanca de São Martinho do Porto, há uns largos anos atrás, talvez em 2012, da boca do nosso saudoso Pepito (1949-2012), um dos "encurralados", em junho de 1998, em Varela, onde também tinha casa de praia, já do tempo dos pais, e que era portanto teu vizinho.

Conseguiste metê-lo, a ele e à família, e a mais cidadãos, num dos helis da fragata Vasco da Gama, ancorada ao largo, a 18 milhas, fora das águas territoriais do país, com mais os dois ou três avios de apoio...

Eu já sabia, além disso, que, na impossibilidade de voltar o heli a Varela, tu já te havias metido na tua canoa nhominca, levando mais um grupo (10 pessoas, de nacionalidade portuguesa, e outros estrangerios...) ao fim da tarde, pelo mar fora, até à fragata salvadora!...

Camaradas e amigos, 18 milhas náuticas numa canoa nhominca (embarcação em que tu és perito e que muito admiras!), são mais do que 33 km pelo mar adentro... Não é para todos, é para quem aprendeu a amar e respeitar o mar, como tu, que foste "filho da escola" da Armada... Afinal, fuzileiro uma vez, fuzileiro para sempre!

Volto a escrever o que já repeti aqui: esta tua história incrível merece ser contada uma e outra vez. Sei que és um homem discreto e modesto, mas ainda espero ir ao 10 de junho, se não for longe, para te ver ser condecoradao por este feito de grande coragem, altruísmo e patriotismo!...

Patrício, se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores!

Registo, para mais, este facto: durante o conflito político-militar, sangrento, de 1998/99, tu foste incapaz de estar longe da tua/nossa Guiné mais do que dois meses... Ao fim de dois meses, voltaste a entrar no país via Dacar, Senegal.


Carlos Schwarz da Silva, "Pepito",
 Lisboa, campus
da ENSP/NOVA. 6/9/2007.
Foto de Luís Graça
O Pepito e a família, cuja casa no bairro do Quelélé, em Bissau, foi pilhada e destruída pela 
soldadesca senegalesa, que apoiava o 'Nino' Vieira, estiveram refugiados em Cabo Verde, à volta de um ano (se bem me lembro)... 

O Pepito tinha nacionalidade guineense, e este foi um dos acontecimentos mais marcantes (e traumatizantes) da sua vida (segundo me confidenciou em São Martinho do Porto)... Voltou à Guiné, para recomeçar a sua vida, uma vida nova, nunca escondendo a sua gratidão para contigo. 

Tu, por sua vez, eras/és português, aliás o português mais guineense da Guiné-Bissau que eu conheço... e a Guiné-Bissau está-te grata pelo trabalho que lá tens feito, levando a energia elétrica a muitas tabancas mas também hotéis, escolas, hospitais....

És um homem que sabe muito da história recente da Guiné-Bissau, saberás até demais, pelos círculos em que te moves, o que te torna também um pessoa cautelosa, discreta, diplomática, sem deixares de ser fiável, afável, prestável, solidário e generoso.

Quem está há 40 anos na Guiné-Bissau, não se imaginando já capaz de viver e trabalhar noutro sítio do planeta, é um sobrevivente nato, capaz de enfrentar e resistir a tudo o que apoquenta, chateia e mata naquela terra (a sida, o paludismo, a cólera, as infecções nosocomiais, as canoas inhomincas, as armas, o tráfico de droga, a violência, a droga de vida, os golpes de Estado, a ausência de Estado, as picadas mal alcatroadas, o tempo seco, o tempo das chuvas, a pobreza, etc....).

Felizmente Águeda não está longe: tu também sabes que tens aqui uma retaguarda segura, à entrada da velha Europa, onde podes 'carregar baterias', revisitar família e amigos, fazer as teus exames de saúde, as tuas consultas médicas... É bom ter uma retaguarda segura, é bom ter uma Pátria, senão mesmo 
duas ou três... 

Tiro-te chapéu pela tua longevidade na Guiné, pela tua história de vida, pela tua sabedoria de verdadeiro africanista. 

Que Deus, Alá e os bons irãs te continuem a proteger  sempre!...
LG

PS1- Espero que no relatório da Op Crocodilo também apareça o teu nome e as tuas boas ações. Nunca chegarás a almirante, mas foste um bravo fuzileiro. 

PS2 - A RPT1, na"Sociedade Civil", ainda recentemente, dedicou a esta operação dois programas num total de cerca de 2 horas e meia. Os vídeos estão disponíves em RTP Play:

24 de julho de 2023 > Operação Crocodilo / Falcão (Parte 1) (1h 12m 08s)
25 de julho de 2023 > Operação Crocodilo / Falcão (Parte 2) (1h 20m 31s)

  

NRP Vasco da Gama (F330) na sua visita a Tallinn, capital da Estónia, entre 27 e 31 de março de 2008. Pormenor, imagem editada pelo nosso Blogue, da autoria de Ivo Kruusamägi da Wikipedia estoniana (2008) (Com a devia vénia ao autor e à Wikimedia Commons)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 18 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25083: O segredo de... (41): António Rosinha (ex-fur mil, Angola, 1961/62; topógrafo da TECNIL, Bissau, 1987/1993): Luís Cabral, a camarada Milanka, eu e o 'mau agoiro' do meu patrão

(***) Vd. poste de 18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23090: (In)citações (198): a atuação de Patrício Ribeiro, durante a guerra civil de 1998/99, e nomeadamente em Varela, em articulação com o NRP Vasco da Gama..."Se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores" (Luís Graça)

Ver ainda postes de:

31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: Histórias de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)




18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23088: (In)citações (197): Mais recordações do conflito político-militar de 1998-1999, por parte de quem o viveu por perto, o Cherno Baldé e o Patrício Ribeiro

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25107: Memória dos lugares (452): Gadamael, 1971, comandando jovens desmotivados, desejosos de regressar inteiros e para quem África era apenas fonte de ansiedade e sofrimento (Morais da Silva, Cor Art Ref)


Gadamael, 1971 > "Matando saudades" - Foto e legenda: © Cor António Carlos Morais da Silva

1. Mensagem do nosso camarada, Coronel Art Ref, António Carlos Morais da Silva (ex-Instrutor da 1.ª CCmds Africanos em Fá Mandinga; Adjunto do COP 6 em Mansabá e Comandante da CCAÇ 2796 em Gadamael, 1970 e 1972), com data de 21 de Janeiro de 2024:

Caro Vinhal,

Estando o blog numa onda de “fotos” revivendo memórias, aqui vai a que sempre me suscita a seguinte reflexão:

1971 – Em Gadamael, comandando jovens desmotivados, desejosos de regressar inteiros e para quem África era apenas fonte de ansiedade e sofrimento.

Cumprimentos cordiais
Morais Silva


P.S. - A AM inaugurou há dias uma exposição lembrando os seus Oficiais envolvidos na preparação e execução do 25 de Abril. Está aberta ao público no aquartelamento de Gomes Freire.
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Nota do editor

Último post da série de 24 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24882: Memória dos lugares (451): Farim no ano de 1971 (José Carvalho, ex-Alf Mil da CCAÇ 2753)

Guiné 61/74 - P25106: Historiografia da presença portuguesa em África (406): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Confesso que me rendo a este espantoso espírito de observação do Tenente Costa Oliveira, certo e seguro ele faria diários dos itinerários, dos acidentes, das emoções que a natureza lhe provocava; não se existe um outro testemunho ao vivo de tal valia como o dele quanto à guerra do Forreá, veremos adiante que ele estava bem informado sobre todas estas vicissitudes; é igualmente um diário histórico, não encontrei até agora ninguém que tenha descrito a demarcação de fronteiras, com especial ênfase no sul, como ele; e mostra-se profundamente crítico pela incúria em que deixámos a Senegâmbia portuguesa, tecerá comentários ácidos à decisão de termos ofertado em bandeja o Casamansa à França, se havia ponto, depois de Cacheu e Bissau, onde a nossa presença tinha algum relevo era em Ziguinchor. É um observador contumaz: a natureza das tabancas, a importância do Corubal e do Geba, não esconde o seu entusiasmo com as belezas guineenses e não deixa de lastimar como a colónia está num prático abandono. E que o leitor se prepare, o tenente Costa Oliveira ainda tem muito por contar.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (3)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8.ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, Oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesas da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

Estamos no início de março de 1888, a comissão luso-francesa tem permissão de marcar as fronteiras, visitou o rio Cogon, depois disso levantou-se o acampamento e abalaram para Kumataly, uma povoação importante e fortificada. Observa o tenente da Armada Real:

“As fortificações do gentio na Guiné são extremamente curiosas. As habitações ou cubatas são dispostas circularmente. Em torno delas constroem uma espécie de muralhas com altos e grossos troncos de árvores das espécies mais resistentes, pau-carvão, pau-ferro, sibes, etc. e a dois metros pouco mais ou menos de distância pela parte de fora uma segunda estacaria de troncos mais delgados e menos humildes, mas coberta de ramos de plantas espinhosas. Grossos portões de madeira fecham estas tabancas, e os caminhos que dão serventia ao interior da praça são tão complicados e cheios de óbices que se um estranho atrevido ousar entrar por algum deles, sem perfeito conhecimento daqueles labirintos, jamais sairá do espaço compreendido entre as duas paliçadas, por mais esforços que faça.”

Relata a passagem por uma povoação destruída e incendiada pelos Biafadas. É o momento propício para o autor tecer observações sobre gente importante da região:

“Já que falámos dos Biafadas ou Biafares, vem talvez a propósito dizer o que sabemos acerca de Mahmad-Jolá, o chefe de uma tribo que tanto concorreu para o abandono das feitorias do rio Grande. Conta-se que em certa ocasião, Mudi-Yaiá, fazendo guerra aos Biafadas, aprisionara bastante gente, e entre elas uma criança dos seus nove aos dez anos, viva, inteligente, simpática.
Mudi-Yaiá afeiçoou-se a esta criança, e levou-a para a sua companhia, dando-lhe mais tarde um lugar importante nos seus exércitos. Anos depois, esta criança, já um homem feito, quando entrava em qualquer conflito gentílico, tinha sempre o ensejo de se distinguir, já pelo seu valor pessoal, já pela perícia com que dirigia as suas hostes; e Mudi-Yaiá, satisfeitíssimo com o seu pupilo, enchia-o de presentes e até de mimos.

"Um dia os Biafadas atacaram os Fulas. Fizeram-se grandes combates, arrasaram-se muitas tabancas e fizeram numerosos prisioneiros de parte a parte. A sorte desta vez foi favorável aos fulas, e Mahmad-Jolá havia-se distinguido nos recontes em que entrara. Mudi-Yaiá, exultante de alegria, elogia-o publicamente, e conta-se que nessa ocasião solene lhe dissera:
- Bateste-te como um valente, é pena que sejas um Biafada!

"Mahmad-Jolá ouviu a sua triste história e a dos seus, silencioso e com as lágrimas a marejar-lhe os olhos, foi, dizem, nessa ocasião, que concebeu o arrojado plano de fujir e apresentar-se ao régulo dos Biafadas, seu legítimo rei e senhor!

"Apresentou-se ao chefe dos Biafadas e ofereceu-lhe a sua perícia na arte da guerra, jurando morrer ou exterminar a maldita raça Fula!”


O que importa saber é que Mahmad-Jolá passou a partir de então a atacar feitorias do rio Grande, com o fim exclusivo de roubar e até matar.

Costa Oliveira vai agora descrever o itinerário para Damdum, e dirá adiante que nesta povoação ainda lá estava a comissão francesa, emprestou-se dinheiro Monsieur Brosselard para contratar alguns carregadores para a sua viagem de regresso a Buba. E de novo este espantoso espírito observador do oficial da Armada vem ao de cima:

“De Chequeúel para Mahmed-Djimi o aspeto do país começa a modificar-se. Já tivemos que subir um monte de 160 metros de altura acima do planalto em que caminhávamos, monte conhecido com o nome de Deballara. Do cume deste monte percebem-se os rios Cogon e Kolibá. Pegadas de elefantes e grandes antílopes abundam nestas paragens. A água é magnífica e a temperatura média menos elevada 21ºC. Nas margens das ribeiras abundam árvores, e nas colinas e planícies o pau-carvão, o pau-ferro, o pau-sangue, o bambu e o algodoeiro-silvestre. Os seus habitantes são todos, ou quase todos, escravos de Mudi-Yaiá, e aproveitam sempre as ocasiões favoráveis para fugirem ao jugo daquele poderoso tirano. No caminho encontrámos depois algumas destas desgraçadas famílias, que se dirigiam também para as bandas de Contabane.”

Abasteceram-se em Damdum de mantimentos a troco de contas de coral, missanga e dinheiro. No dia 15, estiveram a determinar as posições geográficas do Cogon e no dia seguinte o Kolibá. Agora um aspeto curioso que ele escreve:

“Corubal, Kolibá, Kokoli e Koli são diferentes nomes do mesmo rio, dados nas diversas zonas por onde corre. É sempre um grande rio de 200 ou 300 metros de largura. Passa por Kadé, e dizem nascer nas altas montanhas do Futa-Djalon; é fundo, navegável muitas milhas pelo sertão dentro e despenha-se de 4 metros de altura próximo de Consinto (não será Cusselinta?).
De Mahmed-Djimi para o Kolibá, observa o oficial, não há vereda trilhada pelo pé do homem, caminha-se através do mato que, facto notável, pode considerar-se divido em três zonas distintas, atenta a natureza da vegetação que nelas predomina, sendo a primeira de gramíneas, a segunda de bambus e a terceira uma floresta virgem cheia de plantas espinhosas, nas quais rasgámos as carnes e deixámos pedaços de fato!”


Não menos interessante é a observação que ele faz sobre o rio Geba:

“Para mim é ponto de fé que o futuro da Senegâmbia portuguesa está ligado a este rio. Geba e Damdum são pontos estratégicos e importantes do Sertão e, se fossem convenientemente guarnecidos e defendidos, assim como Sambel-Nhantá, S. Belchior e mais alguns no Corubal, o comércio, à sombra desta proteção havia de desenvolver-se rapidamente e Bissau poderia ser, num futuro não muito remoto, o empório daquela rica e extensa região.”

Julga importante dar-nos uma outra informação: Mamadu Paté, irmão de Bacari Guidali, mandado assassinar em 1886 por Mudi-Yaiá, domina todo o território ente Geba e Damdum e não consente que os Fulas de Yaiá, seu inimigo, viagem neste seu território. E aproveita para tecer outra consideração:

“Se nós tivéssemos a habilidade de promover a paz entre aqueles dois potentados, e conseguíssemos estabelecer um posto militar em Damdum, o comércio que por ali passa não poderia derivar-se para Geba, principalmente no tempo seco?”

E volta a tecer considerações sobre a presença portuguesa, propõe pontos a fortificar: Farim, Geba, Buba, Damdum, Bolor, Bissau e a colónia do rio Grande de Bolola, e pontos intermédios tais como S. Belchior, Sambel-Nhatá, no rio Geba, e Gampará, no Cacheu. Às duas horas da tarde do dia 18 abalava a comissão portuguesa de Damdum. 

“Na vanguarda da extrema linha de carregadores, levada por um cabo de caçadores, tremulava a bandeira nacional, respeitada por todos e testemunha insuspeita de que nunca se praticara um ato indigno!”

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecido
Atual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
Imagem do antigo quartel de Bolama, retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 17 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25080: Historiografia da presença portuguesa em África (404): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 22 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25098: Historiografia da presença portuguesa em África (405): voyeurismo, exotismo, sexismo e racismo na exposição colonial do Porto de 1934: uma reportagem do jornalista de "O Comércio do Porto", Hugo Rocha (1907-1993), publicada no "Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro"

Guiné 61/74 - P25105: Blogues da nossa blogosfera (185): O que é feito do "Vidas Lusófonas", sítio fundado e animado por Fernando Correia da Silva (1931-2014) ? Fomos revisitá-lo no Arquivo.pt e encontrámos revelações surpreendentes na biografia de Vasco Cabral...

 

1. Há um ano atrás fomos "revisitar" a nossa lista de  "blogues da nossa blogosfera" (*),  blogues e outras páginas (c. 110) que  constavam da coluna estática do nosso blogue, no lado esquerdo (a "aba", como lhe chama o Carlos Vinhal). Há muito  que não era atualizada, essa lista.


Numa verificação por amostragem demos conta  que mais de metade dos blogue e outras sítios (ou "sites")  tinham sido  descontinuadas, já não existiam ou tinham mudado de URL. 

Comentámos então que era o preço que se pagava por uma existência virtual, que é sempre precária, dependente da boa vontade ou dos caprichos dos servidores, das contingências da vida dos fundadores e animadores, etc.

Uma das páginas que seguíamos era a da  "Vidas Lusófonas" (vd. logo acima): 

O sítio era animado por  Fernando Correia da Silva (1931-2014), e outros jornalistas e escritores de língua portuguesa (mais de 3 dezenas de colaboradores). Infelizmente o sítio já não existe... Entretanto, e felizmente,  foi capturado pelo robô do Arquivo.pt (a última captura de écrã terá sido feita em 21 de fevereiro de 2017):



2. O "Vidas Lusófonas" ainda se mudou para a página "A Viagem  dos Argonautas" (onde também é argonauta o nosso camarada Adão Cruz). Aí escreveu o seguinte, em 21 de julho de 2015, a filha do Fernando Correia da Silva, Ethel Feldman:

(...) Queridos colaboradores,

No início, em 1998, tudo indicava que seria mais um projeto utópico de pouca dura. Um site cultural, onde todos os colaboradores estavam empenhados, cujo o intuito era o de partilhar a vida de personagens que fizeram história, cuja língua materna é o português.

O dinheiro não fez parte da equação. A dedicada teimosia de todos mostra que o Vidas Lusófonas só morrerá depois de todos termos partido.

No dia do aniversário da morte do seu fundador, meu pai, cumpro a promessa de um site renovado. A todos quero agradecer a paciência e confiança. O site continua tendo um número de visitas extraordinário.

Que se mantenha assim e sob o lema do Fernando: "Acho que cada vida tem que ser contada como se fosse um romance. Portanto, morra a prosa de notário! Morra a chatice do verbete enciclopédico!” (...)
 

Em quase duas centenas de biografias de gente lusófona,  de A a Z  (de Portugal, Brasil, Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé Príncipe, Galiza, etc.) temos também a de Vasco Cabral (**), assinada pelo próprio Fernando Correia da Silva de quem foi colega da faculdade e amigo en Lisboa e depois ao longo da vida fora.  

Com o exílio de ambos, andaram desencontrados mais de vinte anos. Depois de regressar do Brasil, na sequência do 25 de Abril de 1974, o escritor e exilado político Fernando Correia da Silva integra a Federação das Cooperativas de Produção e +e numa viagem a Cabo Verde que reencontra o Vasco Cabral. Aqui vão excertos, com a devida vénia, do que ele escreveu sobre o seu amigo, e figura histórica do PAIGC.


3. Vidas Lusófonas > Biografia de Vasco Cabral  (Farim, 1926- Bissau, 2005)

por Fernando Correia da Silva


 (...) Achamos que o mais correcto seria convencer os operários a tomar conta dos meios de produção abandonados pós 25 de Abril. A ideia vinga e os trabalhadores de umas cinquenta pequenas e médias indústrias aceitam a proposta e assim nasce a Federação das Cooperativas de Produção.

Uma das metas da Federação é promover a compra de matérias primas e a venda de produtos manufacturados. Com a independência das ex-colónias portuguesas o mercado tende a alargar-se. Ainda em 1975 sou mandatado pela Federação para viajar até à Guiné-Bissau, já que Vasco Cabral, o Ministro da Economia da jovem nação, é meu amigo pessoal. 

Foi assim: em 1949 ambos participámos na campanha de Norton de Matos, candidato da Oposição anti-salazarista à presidência da República Portuguesa; em 1950 fomos colegas em Ciências Económicas e Financeiras, ele no 5.º e último ano, eu no 1.º; em 1953 participámos, em Bucareste, no IV Festival Mundial da Juventude (ele como militante comunista, eu apenas como aderente do MUD Juvenil, movimento unitário antifascista). Tanto bastou para firmar a nossa amizade. 

E agora passo a recordar o que vim a saber depois: Vasco é preso em 53 e libertado cinco anos depois. Em 62, numa fuga organizada pelo PCP, Vasco, juntamente com o angolano Agostinho Neto, de barco alcança Tânger. Ruma depois para o sul e vai procurar Amílcar Cabral para formalizar a sua adesão ao PAIGC e, junto com o fundador do Partido, lutar pela independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Cabral é pura coincidência de sobrenomes porque entre ambos não há qualquer parentesco. Em 63 começa a luta armada.

NA CIDADE DA PRAIA

Por telegrama, combino encontro com o Vasco Cabral em Cabo Verde, onde ele está transitoriamente. Desço na ilha do Sal, um longo, plano e calvo rochedo em alto mar. Dali, num pequeno bimotor sigo para a Cidade da Praia, na ilha de Santiago, esta já arqueada, cumes e vales, litoral recortado, arvoredo à beira-mar.

Na Alfândega, ao apresentar o meu passaporte, dizem-me que há um carro do Estado à minha espera. Sento-me ao lado do motorista. Atravessamos a Cidade da Praia e seguimos pela Marginal rumo à Prainha.

Paramos frente a uma vivenda e no alpendre está o Vasco Cabral à minha espera. Levanta-se e abre os braços, eu corro para ele, o grande e apertado abraço, há mais de 20 anos que a gente não se via. Em 54 eu fugira para o Brasil antes que a PIDE me deitasse a luva, o que parecia estar prestes a acontecer. Porém, sob a euforia do Vasco pressinto um alçapão. A ver vamos aonde é que ele vai dar…

Lá do fundo da vivenda surge então o Mário Pinto de Andrade, angolano meu amigo desde os tempos do Café Chiado, em Lisboa. Mais um longo e apertado abraço. O Mário fora um dos dirigentes da luta pela libertação de Angola. Mas depois da independência saíra do seu país por não suportar a prepotência do seu camarada Agostinho Neto e, na condição de refugiado, viera para Cabo Verde trabalhar na área da Cultura.

Anoitece, deito-me, durmo. No dia seguinte, de manhã, o Vasco convida-me a ir até à Cidade da Praia. Vou. Num clube local disputa umas partidas de ténis. Não tenho jeito para esse desporto e fico na bancada a assistir. Uma hora depois, já cansado, o Vasco vem sentar-se a meu lado enquanto, lá em baixo, outros pares continuam a bater bola. 

Evoco o IV Festival Mundial da Juventude. Sorrindo com malícia, o Vasco pergunta-me pela brasileirinha que eu andava a namorar em Bucareste. Óptimo! , se ele quer brincar talvez consinta que eu abra o seu alçapão secreto… 

Conto-lhe que em datas diferentes eu e a brasileirinha saímos de Bucareste porém marcámos reencontro em Paris. E de Paris rumámos para Lisboa onde viemos a casar em Janeiro de 54. O Vasco espantado com esta aventura mas não paro. Digo-lhe que ela era filha de judeus polacos emigrados para o Brasil e que o seu casamento com um não judeu causara traumas na família, apesar de progressistas serem eles. 

Digo ainda que, de navio, seguimos depois para o Brasil (eu já a furar o cerco da PIDE…) Ao descermos no porto de Santos lá estava toda a sua família, pais, irmão, avó, tios e primos. A avó, que teria mais de oitenta anos, dá-me um beijo e um abraço e, para a neta, diz qualquer coisa que me traduzem:

– Quando se cai de um cavalo, que seja de raça!

Aproximo-me da matriarca, dou-lhe um outro beijo e relincho.

O Vasco mata-se a rir com a história. Aproveito a galhofa para tentar abrir o alçapão. Pergunto-lhe como é que fora assassinado o Amílcar Cabral. Apesar de renitente, conta-me que um grupo de ex-guerrilheiros do PAIGC, controlados pela tropa colonial e pela PIDE, assaltara a sede do PAIGC na Guiné-Conacry, matara o Amílcar e preparava-se para matar outros dirigentes como o Aristides Pereira, o Pedro Pires e o próprio Vasco, quando Seku Touré, presidente da Guiné-Conacry interviera e frustara a tentativa. Pergunto depois se o bando de assassinos tinha sido caçado e justiçado. Responde-me o Vasco:

– Não quero falar disso.

E não fala, ponto final. Mas não desisto. No fim de tarde, ao regressar à vivenda na Marginal, puxo o Mário para o pátio e peço-lhe que me explique a agonia do Vasco. E ele explica ou tenta explicar:

Fernando, tu não sabes o que é a luta armada. Nem podes imaginar o que é ser traído por antigos companheiros de armas, a pretexto do tu seres cabo-verdiano e eles serem guineenses.

– Compreendo, ou tento compreender. E o Vasco caçou os assassinos?

– Todos.

– Quantos eram?

Mais ou menos cinquenta entre matadores e cúmplices. Caçou e executou ou mandou executá-los. É por isso que ele anda sorumbático, porque cada um dos executados tinha sido seu companheiro de armas, portanto tinha sido seu amigo. Compreendes?

Sim, compreendo. Magoado, mas compreendo…

No princípio da noite um carro, acompanhado por quatro motociclistas, pára frente à vivenda. É Pedro Pires, o primeiro-ministro de Cabo Verde que vem despedir-se do Vasco, o qual viaja amanhã para Bissau. Eu também viajarei amanhã, mas num voo diferente. Não quero ser intrometido e recolho-me lá para os fundos da vivenda. Porém, pouco tempo depois o Vasco vai buscar-me e apresenta-me o Pedro Pires. É uma simpatia de homem. Entre outras coisas pergunta-me:

– Como é que vai a Reforma Agrária portuguesa? Vinga?

E eu respondo:

– Se o folclore revolucionário for substituído por uma eficiente gestão económica, não há quem possa destruí-la. (...)

(Seleção, transcrição, revisão / fixação de texto, negritos, para efeitos de edição deste poste, com a devida vénia, e à memória do autor: LG. )

4. Outras vidas lusófonas (apemas uma amostra) que podem ser lidas, no sítio agora recuperado pelo Arquivo.pt:

Amílcar Cabral (1924-1973) (Guiné-Bissau), por Carlos Pinto Santos

Eugénio Tavares (1867 - 1930), (Cabo Verde) por Carlos Lopes

Fernando Correia da Silva (1931 - 2014) (Portugal), por José Brandão

Joaquim José da Silva Xavier, "O TIraddentes" (17446 - 1792) (Brasil), por João Sodré 

Joshua Benoliel (1873-1932) (Portugal), por Fernando Correia da Silva

Mário Pinto de Andrade  (1928 - 1990) (Angola(, por Fernando Correia da Silva

NGungunhane (c.1850 - 1906) (Moçambique),por Carlos Pinto Santos

Rainha Jinga (1582 - 1663) (Angola), por Fernando Correia da Silva

Salgueiro Maia (1944 . 1992) (Portugal), por Carlos Lopes

Samora Moisés Machel (1933 - 1986) (Moçambique), por Fernando Correia da Silva)