1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2020:
Queridos amigos,
Tendo entrado o Kaabunké em declínio, fruto de uma desagregação interna e sujeito a uma pressão permanente dos Fulas, o reino, que assentara secularmente numa relação relativamente harmoniosa entre animistas e muçulmanos, não aguentou o embate do fim do comércio negreiro, ainda resistiu a sucessivas incursões militares da Confederação do Futa-Jalo até tudo se perder com a queda de Kansala. A tese sobre a herança Kaabunké, uma alegada dinâmica cultural homogénea e consistente em vários Estados lembra um pouco o que um conceituado historiador senegalês, Boubacar Barry, propôs para a Grande Senegâmbia. São teses arrojadas, seguramente que os políticos do presente são muito menos atraídos pelo federalismo que a geração de Kwame Nkrumah e Amílcar Cabral, são inúmeras as disputas internas e os receios de golpes, pensa-se no Casamansa ou nos sonhos desaforados de Sékou Touré acerca de uma Grande Guiné, onde os Mandingas teriam um papel preponderante.
Não basta querer estudar o passado e procurar analogias com alegadas boas relações interétnicas, as fronteiras vieram para ficar, as populações movem-se facilmente entre os países e todos sabem que as guerras de secessão são habitualmente sangrentas, lembre-se o Biafra.
Um abraço do
Mário
A Guiné antes e durante a presença portuguesa:
Kaabunké, um trabalho admirável de Carlos Lopes, historiografia incontornável (3)
Mário Beja Santos
"Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, vale a pena insistir, continua a ser o estudo mais completo sobre o que terá sido o Cabo Malinké, o Reino do Cabo, com incidência na historiografia da antiga colónia portuguesa, e como exercício da interdisciplinaridade que deve existir nos estudos africanos, é de leitura obrigatória. Nos dois textos anteriores, vimos como Carlos Lopes aborda a expansão Kaabunké, a natureza dos seus espaços, a sua administração e como é que veio a ocorrer o seu declínio, em sintonia com a efetiva presença colonial e o fim do tráfico de escravos, o pilar económico mais poderoso deste reino.
É quanto à herança Kaabunké que Carlos Lopes enuncia teses altamente polémicas. Se é verdade que o colonialismo português funcionou como placa giratória, ainda que com recursos muito modestos, para a costa da Guiné, do Senegal à Serra Leoa, tendo preponderado em Ziguinchor, Cacheu, Bolama, Bissau, Farim e Geba, contribuindo para instituir a língua veicular, o crioulo, usada nas suas praças e feitorias, não conseguiu perturbar as linhagens étnicas nem abalar o vigor cultural autóctone. Faz a interpretação da história do Kaabú, atribui-lhe um enorme impacto em toda a região, não foi um Estado forte nem deixou realizações infraestruturais, enfim, não teve a grandeza da civilização do Mali. O poder Kaabunké, diz Carlos Lopes, foi uma instituição secular, exprimiu-se por formas de poder a que hoje chamaríamos tradicionais. O Kaabú, insiste o autor, deixou uma pesada herança nos Estados da Guiné-Bissau, Gâmbia e Senegal, são estes os herdeiros da estrutura política instituída no fim do século XIX pelos portugueses, pelos franceses e ingleses, é esta civilização a parte integrante dos povos da região. E passa em revista o sistema político, que não era um poder absoluto, praticava-se a rotatividade do poder, e a chegada do controlo territorial colonial inspirou formas radicais de poder, a partir da assunção dos Fulas que foram obrigados, no quadro português, a compactuar com a administração portuguesa que os premiou com chefaturas genuínas, os Fulas tiveram sempre régulos Fulas. Mas uma outra evidência se impôs, o território desta região não se deixou dominar pela natureza dos Estados que se constituíram. E começam as perguntas:
“A Guiné-Bissau é um pedaço do Kaabú. Porquê refugiar-se nesta parte quando o espaço histórico Kaabunké continua presente na Gâmbia, na Casamance e numa parte do Futa-Jalo? Porquê considerar a Guiné-Bissau como o limite da expressão das ideias existentes sobre a construção nacional? Não será o Kaabú o berço e unificador de todas as culturas da região? Porquê fragmentá-lo?.
Seguramente que os políticos da Gâmbia, do Senegal, da Guiné-Conacri e da Guiné-Bissau permanecem indiferentes à organização política Kaabunké, indiferentes a esta civilização Kaabunké que tem os seus traços comuns em toda a Senegâmbia meridional”.
Carlos Lopes reconhece haver perigos na mitigação do Kaabú mas pondera que o Kaabú na perspetiva do seu impacto contemporâneo se revela interessante para a reflexão para a interdisciplinaridade para os estudos africanos. E termina assim o seu trabalho:
“Todos os pontos comuns destes países ditos subdesenvolvidos, ou simplesmente africanos, escondem a enormidade das suas diferenças. Seria absurdo querer negar esse facto. O conjunto das interações estudadas demonstra que os problemas da construção nacional e do desenvolvimento têm raízes históricas precisas. A não utilização dos ensinamentos históricos produz uma visão simplista da sociedade. A noção de estruturação espacial aplicada ao estudo dos Kaabunké e, por extensão, à Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance, demonstra que o seu primeiro significado é histórico e não geográfico. Não existe nação num espaço não-apropriado. Não existe desenvolvimento sem articulação nacional”.
Finda esta leitura, havia que procurar outros fios de reflexão. Recordar que Sékou Touré sonhava com a Grande Guiné, uma expressão mitológica que não andaria muito longe dos Malinké. Recordar que Amílcar Cabral desde a primeira hora enfatizou que a Guiné-Bissau manteria sem qualquer reserva as mesmas fronteiras que as do Estado colonial. E que durante o período da chamada guerra da libertação assegurou a Leopoldo Senghor que jamais apoiaria a sublevação do Casamansa, e que não tinha pretensões territoriais nesta região. As questões postas por Carlos Lopes vão ao encontro dos trabalhos do historiador senegalês Boubacar Barry, o leitor tem acesso na revista de estudos guineenses Soronda, n.º 9, janeiro de 1990, já digitalizada (
http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_7288) às suas tomadas de posição sobre o que ele pensa ser a Senegâmbia ao longo dos séculos, no espaço de encontros e dispersões, de tráfico negreiro, de revoluções muçulmanas, de densos conflitos de soberania, e de inequívocas resistências aos apetites dos poderes coloniais. A França desde cedo teve interesses económicos ligados à expansão do amendoim, as suas campanhas militares foram particularmente violentas tanto no Sudão como na Senegâmbia setentrional.
A conquista colonial, sintetiza ele, para além da derrota dos soberanos legitimistas, consagrou a desagregação política da Senegâmbia.
“Esta partilha, seguida da perda total de toda a autonomia, constitui hoje em dia a herança mais difícil de assumir pelos Estados independentes do Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Mauritânia, Mali e Guiné Conacri, que pertencem total ou parcialmente à Grande Senegâmbia”. Haverá pois que extrair lições desta Senegâmbia para as outras sub-regiões da África Ocidental, isto irá permitir estudar as diferentes formas de economia interna e a evolução das instituições políticas e sociais. O historiador senegalês supõe que toda esta região da África Ocidental não pôde levar a cabo a sua revolução interna pois foi confrontada pela conquista colonial. E faz uma advertência quanto à atualidade:
“O estudo do presente é abandonado aos sociólogos, aos antropólogos, aos politólogos e aos economistas. É importante que os historiadores tomem a seu cargo o estudo do presente para refletir em relação com os investigadores das outras Ciências Sociais sobre os problemas contemporâneos da História imediata, trazendo a luz do passado longínquo ou próximo à definição do futuro das nossas sociedades em mutação”.
Os Estados são o que são, rever fronteiras, posicionamentos étnicos, o estabelecimento de redes interétnicas seria tão explosivo e tão devastador que iria debilitar acentuadamente estes Estados frágeis da África Ocidental. Na alvorada do sentimento nacionalista africano, um conjunto de líderes, cientes da porosidade das fronteiras impostas pela Conferência de Berlim, tiveram a preocupação de formar federações ou tratados de âmbito regional, como é sabido todas estas formas federalistas foram um enorme insucesso, só subsiste a Tanzânia, formada pelo antigo Tanganica e pela ilha de Zanzibar. Reconheça-se que estudar o passado levanta questões delicadíssimas mas não se esqueça, como o próprio Carlos Lopes escreve no proémio que tomou conhecimento do Kaabunké em 1972, ele e outros tiveram então uma grande descoberta sobre estes Mandingas do Oeste, os herdeiros do Império do Mali. Dito de outro modo, não nos podemos exceder pela euforia das descobertas para pôr os políticos atuais à busca de soluções que o xadrez internacional, o estado de subdesenvolvimento da região, a afloração de apetites ditatoriais, etc., nada recomendam.
Para que conste.
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Nota do editor
Último poste da série de 24 de fevereiro de 2021 >
Guiné 61/74 - P21941: Historiografia da presença portuguesa em África (253): "Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais", por Carlos Lopes; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999 (2) (Mário Beja Santos)