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terça-feira, 20 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26822: Lembrete (52): Há já 59 magníficos inscritos para o 61º almoço-convívio da Tabanca da Linha, 5ª feira, dia 29 de maio, em Algés... Prazo-limite de inscrição: até ao fim de 2ª feira, dia 26


Jorge Rosales (1939-2019) |  José Manuel Matos Dinis (1948- 2021): Sempre presentes!



Cascais > Estrada do Guincho > Restaurante Oitavos > 20 de novembro de 2014 >  XVII Almoço-convívio da Magnífica Tabanca da Linha, o almoço (antecipado) de Natal. Reuniu 55 convivas, o dobro do habitual naquele tempo. Sem publicidade, sem alardes. O pestisco foi o consagrado e aclamado arroz de marisco da casa (Restaurante e Casa de Chá,  "Oitavos").

 O sítio era encantador, rodeado de verde, de mar e de chuva... Ao fim da tarde, o sol apareceu, a dar um ar de sorriso... natalício. 

Acima pode ver-se a magnífica mariscada que, durante uns tempos, foi um dos "ex-libris" ou ícones do serviço de "catering" da Tabanca da Linha... O segredo estava bem guardado, dizia o "régulo" da tabanca, o Jorge Rosales (1939-2019), quando a gente lhe perguntava quem eram o fornecedor e o cozinheiro...

 O Manuel Resende, na época, era apenas o fotógrafo privativo da Tabanca da Linha... A morte do "régulo" Jorge Rosales (em 2019) e do seu "secretário" José Manuel Matos Dinis (em 2021)  foi um duro golpe para os os "mangníficos"...

O Manuel Resende tem sido, desde então, um digno sucessor!... E no próximo dia 29 de maio volta a chamar-nos a capítulo!...Ele está esperançado que o segundo e último piso do Restaurante Caravela d'Ouro, em Algés, se encha (lotação: 80/100 lugares). À data de hoje, já somos 59 os inscritos. (*). 

Aproveitamos para "matar saudades" dos dois régulos anteriores, republicando os versinhos natalícios que  fizemos à Tabanca Grande em 2014.


Fotos (e legenda): © Manuel Resende (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Bluís Graça & Camaradas da Guiné]


Homenagem à Magnífica Tabanca da Linha


É uma espécie em extinção,
Mas já foi raça danada,
Sem saúde nem patacão,
Quer apenas ser lembrada.

É malta, não é gentinha,
È feita de sangue, carne e osso,
São a Tabanca da Linha,
Uns pró fino, outros pró grosso.

Calcorreando montes e vales,
Pois é régulo e comandante,
A malta segue o Rosales
E mais o seu ajudante.

Dois rapazes dos Estoris,
Que vieram ao mundo p’ra sofrer,
O mais reguila é o Dinis,
E o mais pisco p’ra comer.

Dois cavaleiros andantes,
Qual Quixote e Sancho Pança,
Andaram sempre a penantes.
Na Guiné espetaram lança.

De Bissau a Buruntuma.
De Porto Gole a Bissá,
Perderam-se os dois na bruma,
Mas têm tabanca cá.

É uma tabanca real,
De pura e nobre linhagem,
Onde Guiné e Portugal
Fazem sua mestiçagem.

Em nome da Tabanca Grande,
Saúdo os Reais Tabanqueiros
Que, sem que ninguém lhes mande,
São bravos e leais companheiros.

Almoço-convívio de Natal
Oitavos, estrada do Guincho, Cascais,

Luís Graça
20/11/2014




Já são 59 os inscritos para o próximo convívio, dia 29, 5ª feira. (*). Fica aqui o lembrete: prazo de inscrição até ao final de 2ª feira, dia 26. Inscrições: 
Manuel Resende | Tel - 919458210
Mail - magnificatabancadalinha2@gmail.com
 

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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 7 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26243: Lembrete (51): Apresentação do livro "Encruzilhadas no Império", de Paulo Cordeiro Salgado, dia 9 de Dezembro de 2024, pelas 18 horas, na UNICEPE, Praça de Carlos Alberto, 128 - Porto

Guiné 61/74 - P26821: S(C)em Comentários (67): P*rra, dou agora conta, 50 e tal anos depois, que nunca me sentei no rancho geral, para partilhar uma refeição com os meus cabos, que eram metropolitanos, e que tinham uma barriga igual à minha... Em Bambadinca, existia o "apartheid", nobreza, clero e povo, devidamente segregados, em termos sociais e espaciais (Luís Graça)


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BCART 6520/72 (1972/74) > s/d > Os camaradas (etimologicammente, os que dormem na mesma "câmara", quarto, camarata, no mesmo "buraco", que dormem, comem, vivem e... morrem juntos), sempre presentes no dia a dia da guerra, vão substituindo a família, os vizinhos, os colegas de escola, os amigos, etc. que ficaram lá longe, na terra... São também companheiros, porque comem o mesmo mão à mesma mesa (do latim, cum + panis, o que partilha o pão connosco).


Foto (e legenda): © Armando Oliveira (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Comentário de Luís Graça ao poste P26816 (*):


Há uma coisa que muitos oficiais e sargentos do QP, bem como milicianos (alferes e furriéis) não compreendem (ou pura e simplesmente já esqueceram): as nossas praças (sobretudo o pessoal metropolitano) tiveram que se "desenrascar"... em matéria de comes & bebes.

Comiam "mal e porcamente" (e eu creio que a metáfora do porco não é insulto para ninguém!|)... No mato, nos quartéis do mato (não falo de Bissau)... Mesmo quando "a comida era igual para todos" (nos aquartelamentos das unidades de quadrícula: 1 capitão, 4 alferes, 16 sargentos e furriéis, e o resto cabos e soldados, uns 130/140), as praças comiam sempre pior...

Já não falo nos destacamentos, guarnecidos por 1 Grupo de Combate...onde nem cozinheiro havia, e o reabastecimento (genéros alimentícios, munições, etc.) era sempre um "bico de obra"...

Ninguém é capaz de admitir hoje que "passou fome" na guerra, na Guiné, até por que o "tuga" era sempre capaz de se "desenrascar"...

 Fome ?... Talvez, pontualmente, no mato, em operações... Mesmo "intragáveis", as rações de combate que nos fornecia o exército português,  ainda tinham uma ou outra coisa aceitável para enganar o estômago, sem provocar uma sede do caraças... (Depressa aprendi a prescindir delas, ou de grande parte do seu recheio!)

Mas as nossas operações podiam durar 24 h, 48, 72 h, no máximo... No regresso ao quartel, havia sempre uma sopa quente, com muita água, pouco azeite e poucos legumes, mas ainda assim quente. E havia, graças a Deus e aos bons irãs, e à Intendência (a quem tiro o quico!),  cerveja, muita cerveja, mesmo que que fosse "choca". E coca-cola, e uísque... E até barris de vinho ou "ãgua de Lisboa"!...

O José Claudino da Silva, cantineiro, em Fulacunda, logo em finais de 1972, requisitava, 12 mil cervejas por mês, com medo do "apagão da Intendência", estamos a menos de dois anos do fim da guerra, num quartel isolado, no mato, a 3ª CART / BART 6520/72, que além dos seus 150 homens metropolitanos, tinha mais um Pel Art (em que as praças eram africanas) e um Pel Mil (também de pessoal africano).

De resto, muitos dos nossos militares, sobretudo oriundos das zonas rurais, do interior do país, de Trás-os-Montes ao Alentejo, foram habituados, desde pequeninos, à "frugalidade": 

  • quem é que bebia leite ?
  • quem é que comia queijo ?
  • quem é que sabia o que era um iorgurte ?
  • quem já tinha provado fiambre ?
  • quem comia peixe fresco ?
  • e carne (sem ser da salgadeira) ?
  • e bacalhau (sem ser no Natal e na Quaresma) ?
  • quem bebia cerveja ?
  • e leite com chocolate ?
  • e sumol ?
  • e café ?...
  • (Para não falar da "coca-cola", uma "americanice" que não entrava no Portugal do Estado Novo).

Porra, e ninguém se revoltava !... Comia-se "sopas de cavalo cansado"... E a malta aguentuou 13 anos!... Fala-se em sangue, suor e lágrimas, mas ninguém acrescenta a merda, a fome, a sede!...13 nos anos com a canga em cima, a G3, as cartucheiras, as granadas de mão, as granadas de morteiro (ou de bazuca) às costas, mais os 2 cantis de água... Mais os feridos e os mortos em padiola!...

Eu fiz alguns milhares de quilómetros a penantes, na Guiné, com os meus/nossos "pretos" da CCAÇ 12, entre junho de 1969 e março de 1971...Sei do que falo... Mas chegava a Bambadinca, dois ou três dias depois, com 2, 3 ou 4 quilos a menos, tomava um duche reparador... e não me podia queixar da messe de sargentos..
.

Nunca me faltou o uísque com água de Perrier e duas pedras de gelo!... Nem o gin tónico com limão ou lima!... Não bebia cerveja nem "água de Lisboa", a não ser às refeições...

Mas, porra, dou agora conta, 50 e tal anos depois, que nunca me sentei no rancho geral, para partilhar uma refeição com os meus cabos, que eram metropolitanos, e que tinham uma barriga igual à minha... Em Bambidina, existia o "apartheid", nobreza, clero e povo, devidamente segregados, em termos sociais e espaciais (**)...

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(**) Último poste da série > 16 de maio de 2025 >  Guiné 61/74 - P26807: S(C)em Comentários (66): Eletrificação - As primeiras redes de energia elétrica na Guiné nas décadas de 1930 a 1950 (Manfred Stoppok)

Guiné 61/74 - P26820: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (12): O meu acidente

CCAV 2483 / BCAV 2867 - CAVALEIROS DE NOVA SINTRA
GUINÉ, 1969/70


VIVÊNCIAS EM NOVA SINTRA

POR ANÍBAL JOSÉ DA SILVA


41 - O MEU ACIDENTE

04 de Agosto de 1969

A primeira vez que fui de férias à metrópole foi a 23/06/69, na companhia do inseparável furriel Lima. Iniciei a viagem de regresso à Guiné nos últimos dias de julho.

Chegados a Bissau fomos ao Hospital Militar visitar o nosso capitão, que dias antes tinha pisado uma mina e ficado sem a perna esquerda. Mal sabia eu que passados quatro dias também lá daria entrada.

Na Repartição de Transportes em Bissau, conseguimos transporte fluvial até o Enxudé e daqui até Tite, sede do batalhão, fomos de unimog. De Tite para Nova Sintra só havia duas hipóteses de transporte, aéreo ou a pé. O Lima teve a sorte de ir de helicóptero pois era de Transmissões e a sua presença era necessária, porque estava em curso a formação de uma operação. Em Tite também em trânsito, encontrei seis soldados da companhia que regressavam após consulta externa no Hospital Militar. No regresso a Tite o helicóptero trouxe as G3 e fardamento de nós sete. Na noite de dois de agosto Tite foi flagelado.

Desconhecendo os cantos à casa, não sabia onde me proteger, até que o furriel Rui Ferreira, puxou-me por um braço e corremos até à retrete do quarto dos furriéis. Lá havia alguma proteção com sacos de terra empilhados acima das nossas cabeças. Na tarde de dois de agosto foi-nos transmitido aquilo que já se esperava. Fazer o trajeto a pé integrados num grupo de combate da CCAÇ 2314, que ia fazer reforço a Nova Sintra, devido à operação que estava a ser preparada.

Saímos de Tite por volta das duas horas da madrugada do dia 04/08/69, acompanhados por quinze carregadores que também iam participar na operação. Chovia torrencialmente.

Passado o arame farpado entramos na mata. Estava muito escuro e dada a intensidade da chuva, mal conseguíamos ver quem ia à nossa frente. Atravessamos uma bolanha com água acima da cintura e os pés enterravam-se no lodo. A marcha era lenta. Finalmente amanheceu, a chuva parou e o sol apareceu, começando a secar o camuflado. Os sete da minha companhia seguiam na retaguarda. O soldado Ventinhas, que tinha ido a Bissau despedir-se do irmão, que tinha terminado a sua comissão, seguia à minha frente. O trilho era apertado ladeado por capim muito alto e verdejante. O cenário era bonito, só que daí a momentos BRUUMMM, um grande estrondo.

Eram sete da manhã. O Ventinhas provavelmente saiu fora do trilho, pois este fazia uma espécie de cotovelo e pisou uma mina antipessoal reforçada com trotil, que o desmembrou, provocando-lhe a morte. Com eu seguia atrás dele a dois metros de distancia, com a explosão a minha cabeça ficou cheia de terra, que entrou na boca, tapou o nariz e sobretudo os olhos. Imediatamente deixei de ver e com dores horríveis nos olhos, zumbidos agudos e tosse ao procurar expelir a terra da boca. Levantei-me e sem ver caí no buraco aberto pela explosão. A G3 voou das mãos e deve ter ido parar ao meio do capim. Na frente da coluna, embora ouvindo perfeitamente o rebentamento, não se aperceberam do que tinha acontecido. O furriel que comandava a coluna, veio atrás ver o que se passava e só então se apercebeu que tinha sido uma mina.

Aos berros chamou pelo cabo enfermeiro, que não teve muito a fazer. O Ventinhas estava moribundo e faleceu algum tempo depois. Segundo me disseram mais tarde, foi embrulhado num ponche de borracha e transportado no regaço de alguém para o quartel de Nova Sintra. Eu não tinha ferimentos visíveis e os que tinha ele não podia ajudar. Foi pedida imediata evacuação, só que as comunicações via rádio com Tite não funcionaram. Resolveram fazermos o resto do percurso, mais ou menos três quilómetros, a pé. Eu fui amparado aos ombros do cabo enfermeiro Henriques e do Arouca. Próximo do quartel estava a sair uma coluna que ia para S. João. Passamos por entre eles e segundo me disseram mais tarde, ninguém sabia quem era o ferido, tal a camada de terra agarrada à cabeça. Pelos vistos só o Tomás, miúdo de dez anos, orfão da guerra, disse que era eu atendendo à forma de caminhar. Já no quartel ouvia a pergunta, quem é? Quem é?

A comunicação com Tite continuava a não ser conseguida. O amigo Lima agarrado ao rádio berrava “india cinco sierra, zulu nove mike, chama“. À data eram os códigos dos postos de transmissões de Tite e de Nova Sinta. Durante o tempo da comissão estes códigos mudavam com frequência, mas estes ficarão para sempre gravados na minha memória e não haverá alzeimer que os retire. Enquanto não era possível efetuar a evacuação, despiram-me e puseram-me debaixo do chuveiro. Termia como varas verdes, de frio não seria porque estava calor, era talvez do estado de choque. A minha farda de passeio e sapatos tinham ficado em Tite. Alguém trouxe uma camisa, calças e calçado. Lembro que as calças eram muito apertadas. Entretanto a evacuação foi conseguida. Levaram-me de jeep para a pista, bem como os restos mortais do Ventinhas. Na avioneta veio uma enfermeira paraquedista, que segundo disseram era loira, talvez numa tentativa de me animar e que meses mais tarde conheci, quando voltou a Nova Sintra numa outra evacuação.

Chegado à base de Bissalanca segui de ambulância para o Hospital Militar. Fui colocado não sei onde deitado na maca. Não sabia se estava no chão ou em cima de qualquer coisa. Com a mão direita de fora da maca, tocava no que me rodeava e conclui que estaria no chão pois sentia uma superfície fria e lisa.

As pessoas passavam por mim mas não ligavam nenhuma. As dores nos olhos e o rubor na cara era escaldante. Comecei por insultar quem por mim passava, chamando-lhes filhos desta e daquela, até que alguém, creio que era um sargento pois chamaram-lhe assim, veio ter comigo e perguntou a outros o que é que aquele homem estava ali a fazer. Responderam que estava à espera do oftalmologista. Era uma segunda-feira e o médico devia ter ido passar o fim de semana à ilha dos Bijagós. Mas o sargento ordenou que eu fosse de imediato ao RX para a eventualidade de ter algum estilhaço no corpo, o que felizmente não se veio a confirmar. O médico chegou e mandou-me para a sala de observações, onde permaneci três dias.

Foi iniciado o tratamento prescrito, que consistia na lavagem dos olhos várias vezes ao dia e mesmo durante a noite, mais umas injeções não sei para quê. Ao fim da tarde desse dia, ouvi passos que vinham na minha direção. Abeiraram-se da cama e uma voz perguntou: “Rapaz de onde és e o que te aconteceu?”. Reconheci logo a voz do General Spínola e resumidamente respondi. O acompanhante habitual do general era o Capitão Almeida Bruno, que me perguntou se eu sabia com quem estava a falar. Respondi que era o General Spínola e ele o Capitão Almeida Bruno. No dia seguinte voltaram a visitar a sala de observações, tomando conhecimento dos que chegaram nesse dia. Era do conhecimento geral, que desde sempre, os dois ao fim da tarde iam ao hospital quase todos os dias. De madrugada entrou alguém na sala a gemer e a berrar. Era uma parturiente que horas mais tarde deu à luz uma bebé.

O barbeiro do hospital, de dois em dois dias, ia-me fazer a barba e eventualmente aparar o cabelo. Para ir ao refeitório, nos primeiros dias, era acompanhado pelo cabo enfermeiro, que me ensinou a fazer o percurso sozinho. Saía da porta da enfermaria, dava quatro passos em frente atravessando o corredor e tocava na parede, virava à esquerda e caminhava uns tantos passos ao longo da parede até ao início da escada, depois à direita, descia seis degraus, contornava o patamar e descia mais seis degraus até à entrada do refeitório. Quando entrava diziam, lá vem o ceguinho, quem é que lhe vai dar a sopa na boca e cortar o bife? Obviamente que meter a sopa na boca era exagero, era uma brincadeira, mas o restante sim, precisava de ajuda. No trajeto inverso contava os mesmos degraus e dava os mesmos passos. Na cama não podia estar de barriga para cima, porque a deslocação de ar provocado pelas enormes pás das ventoinhas colocadas no teto, ao bater nas pálpebras agravava as dores.

Outro problema, o correio. Não podia ler nem escrever, mas consegui uma boa solução para o resolver. O furriel Oliveira Miranda do 4.º Pelotão, andava na consulta externa do hospital, em tratamento da fratura de dois dedos sofrida aquando do rebentamento da mina de 24/07/69. Ia ao SPM (Serviço Postal Militar) levantar o seu correio e trazia o meu. Lia as minhas cartas e ajudava-me a responder. Colocava a minha mão direita que agarrava a esferográfica sobre a primeira linha do papel de carta e vagarosamente começava a escrever. Ao chegar ao fim de cada linha ele dizia, devagar pois vais ter de mudar de linha. Os meus pais não sabiam o que tinha acontecido. Escrevi dizendo que estava em Bissau a tratar de assuntos da companhia. Estava esperançado em voltar a ver, a curto prazo, adiando sempre contar a verdade. Só que o meu pai soube de uma forma abrupta, que mais adiante vou referir.

Às terças e quintas feiras recebíamos a visita das senhoras do Movimento Nacional Feminino e da Cruz Vermelha, respetivamente. Conversavam connosco dando-nos apoio moral, mostravam-se disponíveis para resolver alguma dificuldade e tomavam nota do que nos fazia falta, para eventualmente a satisfazer. Na expetativa de a breve prazo voltar a ver, pedi um estojo de barba. Na semana seguinte fui contemplado com o dito estojo, que me foi entregue por uma senhora e pelo conhecido artista Marco Paulo. Nestas entregas normalmente faziam-se acompanhar de figuras públicas, artistas, cantores, futebolistas e outros.

Ao iniciar a quarta semana de internamento, comecei a sentir melhoras, a manter os olhos abertos durante instantes e dores residuais. Numa ida à casa de banho, ao passar junto dos espelhos, parei diante de um e consegui ver a cara, muito desfocada mas vi. Era sinal que estava no bom caminho e chorei de contente. Nessa semana melhorei substancialmente e como tive conhecimento de que as coisas em Nova Sintra, não estavam a correr da melhor maneira, incluindo a gestão do depósito de géneros, de que era o principal responsável e fui pedir alta ao médico. Ela ficou surpreso e disse: “Oh homem você é maluco, quer ir outra vez para aquele buraco?” À minha insistência ele acedeu, prescrevendo as gotas que devia continuar a aplicar e uns óculos escuros. Tive alta e saí do hospital.

Fui ao Serviço de Transportes solicitar transporte aéreo, porque a pé nunca mais, nem que tivesse de alugar uma avioneta civil. Estava ansioso por voltar a Nova Sintra, acrescido do facto de não ter dinheiro para umas cervejas. Tive a sorte de encontrar o furriel Barriga Vieira, que acabara de chegar de férias e que me emprestou algum.

A primeira coisa que fiz ao chegar ao quartel foi consultar as ordens de serviço, para verificar como estava referido o acidente. Estava só no que dizia ao falecido Ventinhas e quanto a mim nada. Exigi ao alferes Carriço, que na altura comandava a companhia e ao primeiro sargento que o meu caso também fosse registado em ordem de serviço, o que foi feito. Esse documento foi anexo ao processo clínico do hospital e depois organizado um processo por ferimentos em combate.

Trabalhei bastante para repor a escrita em dia mas consegui.

Quanto ao modo como o meu pai teve conhecimento do sucedido foi assim. O Quim Marques, meu conterrâneo e amigo, estava destacado em Farim e tinha vindo passar férias a metrópole. Ele não sabia o que me tinha acontecido. No regresso à Guiné, o meu pai e a família dele, foram a Pedras Rubras despedir-se. No aeroporto o Quim, que era do Serviço de Material, encontrou o furriel do mesmo serviço da CCS do meu batalhão, que se conheciam por terem feito juntos a especialidade. O Quim na melhor das intenções, apresentou-o ao meu pai e disse, este meu amigo pertence ao batalhão do Aníbal. Na ânsia de informações a meu respeito, o meu pai perguntou-lhe, então conhece o Aníbal? Sabe como ele está? E não é que o camelo responde dizendo: “O seu filho está cego“!.. Quando ele veio de férias era a informação que havia em Tite. Não sei como o meu pai resistiu ao choque, pois era muito medricas e sofria do coração.

Dias antes tinha ido a minha casa o alferes Martinho, mostrando-se disponível para me levar alguma encomenda, tendo dito que eu estava em Bissau a tratar de assuntos da companhia e que estava bem. Mentiu a meu pedido. O meu pai chegado a casa vindo de Pedras Rubras, voltou ao Porto para ir tirar satisfações com o alferes. Quando chegou junto dele disse, o senhor alferes mentiu-me, pois acabo de saber que o meu filho está cego. O alferes ficou desarmado e disse: “Sim é verdade mas não é bem assim, menti a pedido do Aníbal e por uma boa causa. De facto ele foi vítima de um acidente grave, mas provavelmente na data de hoje já estará de regresso a Nova Sintra“, o que era verdade. Efetivamente já estava no mato, mais ou menos recuperado, mas ainda em tratamento ambulatório.

Então escrevi à família contando a ocorrência.

Na primeira vez que o amigo Oliveira Miranda me foi visitar ao hospital, eu ainda tinha marcas na cara provocadas pela projeção de areias e terra e disse que eu parecia um goraz de pinta.

De realçar, pela negativa, que o 1.º Comandante do Batalhão e os dois 2.ºs nunca me foram visitar ao hospital e o 1.º ia com frequência a Bissau pois tinha lá família.

Hospital Militar 241 - Bissau
Uma das enfermarias
Heliporto onde todos os dias chegavam feridos

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 13 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26796: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (11): Uma jóia de criança; A Tombó; Abutres e pelicanos e As larvas de asa branca

Guiné 61/74 - P26819: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte II: De Lisboa a Bissau, no T/T Uíge



Foto: o paquete Uíge no qual viajei/viajámos para  Bissau.


1.  O Carlos Filipe Gonçalves, de alcunha Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde. 

Foi fur mil amanuense, na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74... 

É membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, sentando-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 790. Tem cerca de 2 dezenas de referências no nosso blogue.

É uma figura conhecida do na sua terra: r
adialista, jornalista, historiógrafo musical, e escritor, vive na Praia, capital de Cabo Verde. 

É também amigo do nosso camarada Manuel Amante da Rosa, e seu contemporâneo no QG/CTIG. 

Já aqui publicámos cinco postes com a sua versão dos acontecimentos do 25 de Abril de 1974, em Bissau (*). São excertos de um livro de memórias que ele tem em preparação, ainda sem  título (definitivo). E que quer continuar a partilhar connosco.

Abrimos, entretanto, uma nova série, de modo a abarcar o início da sua comissão no CTIG, em 1973. Na Metrópole, durante a recruta, a especialidade e a mobilização em rendição individual para o CTIG,  passou por Tavira, Vendas Novas,  Leiria e Lisboa.   

A fonte que utilizamos é a página do Facebook da Tabanca Grande.(***)





Cabo Verde > Ilha de São  Vicente > Mindelo > 9/11/2012 > 11h11 >  Baía do Porto Grande e Monte Cara, ao fundo.

Foto (e legenda): © João Graça (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) (**)



Parte IIA: Despedida e Partida para a Guiné



Noite sim, noite sim, na pândega, fui vivendo aqueles dias de «férias». Finalmente, a viagem para Bissau ficou marcada para domingo, 25 de fevereiro de 1973, no paquete Uíge. 

Era um envio especial de «efectivos» para «rendição individual» de militares que já tinham ultrapassado muitos meses após o final da comissão no ultramar! Não puderam regressar a tempo à metrópole, porque havia falta de gente para os substituir! 

Bem, quando a rapaziada do Campo de Ourique soube que eu partia no próximo domingo, disseram logo: “Temos que fazer uma despedida em grande!” Teria de ser na sexta-feira, pois, no sábado eu devia de dormir nos Adidos e, como se sabe, no quartel depois da meia-noite ninguém entra, ninguém sai; eu não queria correr o risco de um atraso no embarque, que seria mal interpretado e seria punido!isciplina militar é para se cumprir! 

Reunidos no Café Gigante, no meio da conversa fiada, Dani me perguntou: “Então? Como vai ser a despedida?” O Zé Rui argumentou: “Eh pá, vais para a Guiné!! Olha, que aquilo está mau! Proponho o novo cabaré que abriu aí pelos lados da Avenida Liberdade… a noite termina com striptease!” 

Na minha cabeça surgiu logo o pensamento: posso não voltar! Aceitei então a proposta. (…) (#)

(...) Chegou a hora da despedida, a malta, vai me dando fortes abraços, acompanhados de conversas ocas, sem significado para mim. Dizia um: “O tempo passa depressa! Já, já, cá estarás connosco a parodiar!” Gritava outro: “Não vai ser nada, pá! Aguenta-te, OK!” Ou então: “Ficamos à tua espera! Logo, logo, estarás de regresso!” 

Cada um foi para o seu lado, pois, naquele dia, o popó do John estava avariado, aliás nem me despedi dele porque não nos acompanhou! E não voltei a vê-lo depois. Apanhei um táxi… cheguei ao QG…. 

De repente senti-me só e envolvido num absoluto silêncio, a minha cabeça andava à roda, a mente vazia… adormeci.

Sábado, foi arrumar a mala e ultimar os preparativos para a viagem, dormi no Quartel de Adidos, em Belém. Domingo logo cedo, nem houve tempo para o pequeno-almoço, foi logo formatura e «chamada» da malta que ia embarcar.

 Entregaram a “guia de marcha” e os papéis da promoção a furriel miliciano, foram logo avisando: “Só colocam as divisas quando já estiverem no barco!” Dada a ordem “Está no ir”, subimos nos camiões com a bagagem, formou-se depois um comboio, lá fomos rumo ao cais de Alcântara. 

Quando lá chegámos, fiquei espantado com o povo que lá estava: centenas de pessoas, entre familiares, amigos, namoradas, esposas, algumas com bebés ao colo! Gente e mais gente para despedir dos cerca de 600 militares que iam partir para a Guiné. O ambiente estava pesado, choros, abraços, beijos de uma mãe ou namorada em lágrimas, olhos vermelhos que os lenços limpam constantemente… 

No meio daquela confusão, ouço chamar: “Kalu! Kalu!” Reconheci logo, a minha tia e o meu primo! Prometeram que iam ao cais e não faltaram! Fiquei sensibilizado, senti-me querido, amparado pelo apoio da família. Eu estava emocionado, a conversa foi pouca, ficamos ali parados… 

A tia Orlanda tinha providenciado a abertura de uma conta num banco, para eu depositar e amealhar o vencimento que a partir de agora ia dispor. Ela alertou: “Guarda bem estes papéis de referência da conta, para poderes fazer as transferências!” 

Eu acenava que sim, havia então uma pausa…. Minha tia repisava: “Quando voltares terás um dinheirinho para comprar um carro, mas, pensa em estudar, o estudo é o mais importante!” Estas palavras, nada significavam para mim, porque, dois anos de comissão na Guiné, eram uma eternidade e ainda nem tinham começado!

Dada a ordem para o embarque, eu não quis esperar muito, decidido, abracei a minha tia e o meu primo, despedimo-nos, apanhei a bagagem… dirigi-me às escadas do barco. O paquete Uíge era um barco grande, sobretudo muito alto… ao subir as escadas, notei, centenas de serpentinas lançadas ao vento, balançavam e faziam um som estridente… 

Quando cheguei ao barco, fui logo arrumar a bagagem no camarote e voltei para a amurada. Daqui de cima, via lá em baixo aquela gente toda aos prantos, há um murmúrio constante, os que estão no barco seguram serpentinas que estão nas mãos de alguém em terra. Se a fita de papel se partia, os meus colegas logo gritavam, chamavam o familiar e lançavam outra serpentina… 

Fiquei emocionado com este espectáculo, lágrimas afloraram nos meus olhos. Tirei os óculos, limpei as lentes. Aumentava cada vez mais o número destas longas e compridas tirinhas de papel de várias cores. 

Finalmente, ouve-se um grosso apito, são retiradas as escadas, o barco ainda apita várias vezes, enquanto afasta-se do cais… Os militares a bordo desenrolam cada vez mais e mais, as serpentinas, aumenta o ruído… prá, prá, prá, daquele conjunto enorme de tiras de papel ao vento… que ligam os que estão a bordo, àqueles que estão em terra… até que… pouco a pouco, uma a uma, as fitas de papel começam a partir-se e ficam soltas ao sabor do vento…

Lá no cais, os familiares a acenam com lenços brancos… à medida que o barco se afasta, as pessoas ficam cada vez mais pequenas; começa-se então a sentir os primeiros balanços do barco. Iniciamos a viagem a caminho da Guiné!

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Nota do autor:

(#) Não posso publicar o livro integralmente são apenas extractos… Por isso, apenas posso dizer agora, que depois de muitas peripécias e flashes da vida nocturna lisboeta… e ocorrências insólitas nesse cabaré… Foi uma noite de luxo, com Whisky, etc. e tal…. Até que…. saídos do tal cabaré...


Parte IIB:   De Lisboa a Bissau, no T/T Uíge
 


No tombadilho do barco sopra um vento frio, Lisboa vai ficando para trás, não há muita conversa entre nós, imperam a tristeza e a saudade. Os meus companheiros de viagem começam a retirar-se do convés. Eu também vou para o camarote, encontro três colegas, vejo-os a retirar as divisas de cabo miliciano e colocar sobre os ombros as divisas de furriel. Fiz a mesma coisa, concretiza-se assim a tão ansiada promoção.

Sinto-me outra pessoa. Para trás ficaram meses de uma vida difícil e até de humilhações quando da instrução (recruta e especialidade). Escondido vestia-me à civil, pois, isso era vedado aos praças e instruendos como eu; a comida melhorou com a promoção a cabo miliciano, mas continuava a não ter qualquer salário; durante mais de seis meses, o pré (salário do soldado) era menos de uma dezena de escudos; depois da promoção a cabo miliciano, passara a 90 escudos! Uma miséria! (***)

Logo dependia da mesada que a minha mãe me enviava. Com esse dinheirinho, que recebia em carta registada, pagava as despesas, lavagem da roupa, as comezainas em Tavira e Vendas Novas (onde tinha feito a recruta) ou em Leiria (onde tinha feito a especialidade) e as paródias com a malta estudante em Campo de Ourique. 

Nessa fase inicial da tropa para além do frio (chegara Portugal em janeiro de 1972) o problema foi a minha adaptação ao rancho: café pão com marmelada ou margarina ao pequeno-almoço; sopa e alguns pratos preestabelecidos ao almoço como por exemplo, feijoada com chispe ou massa com carne; ao jantar, pescadinha de rabo na boca com batatas cozidas, um prato invariável! Sempre que podia, ia comer umas bifanas por aí, num restaurante ou tasca. (…)

Ao meio-dia sou acordado pelo toque de corneta para refeição. Levantei-me a correr, felizmente não tinha despido a farda, saio do camarote e vejo que o barco é um quartel flutuante! No convés estavam os «praças» a fazer a formatura para o almoço! Os furriéis, depressa descartaram a responsabilidade e delegaram nos cabos a tarefa de fazer a chamada, etc. e tal. 

Os «praças» foram para um refeitório onde nunca cheguei a ir. Nós, os graduados, fomos almoçar num salão de luxo destinado a sargentos e oficiais. Boa comida, bom vinho, boa sobremesa… e o melhor de tudo: garçons a servir! Portanto, nada a reclamar. Depois da bica, fomos dormir.

Às 16 horas, sou de novo acordado pelo toque de refeição da corneta. Bolas, devem ter-se enganado, o jantar é com certeza às 7 ou 8 horas, o que se passa? Mas, ordens são ordens, levantei-me da cama e saí. No corredor, ouço dizer que é hora do lanche! Fomos, ao salão, encontramos mesa posta: bolos, bolachas, sumos, chá e café… garçons a servir! Nada mau! Voltamos a comer!

(…) O tempo foi passando, às 7 horas soou a corneta, toque para o jantar. Repete-se o cenário: boa comida, bom vinho, garçons a servir. Pouco se falava à mesa, as amizades irão desenvolver-se ao longo dos próximos cinco dias da viagem, depois de se travar conhecimento e obter a confiança dos colegas.

Depois do jantar, fez-se a leitura da “Ordem do Dia”. Recorde-se, estamos num quartel flutuante, tudo se passa como em qualquer quartel. Soube então que haveria projecção de filme no convés e que durante a viagem não haveria toques de recolher e nem de alvorada, apenas os toques à refeição. 

E lá fomos ver um filme projectado num ecrã dependurado num dos mastros do navio; os oficiais e sargentos ficavam na amurada da meia nau, os soldados no convés. Logo no início, desenhos animados da Disney, depois o filme…. 

Enquanto passavam as imagens, olhava de vez em quando para o céu estrelado! Sentia então aquela saudade da minha Ilha de S. Vicente e dos meus familiares… A malta interrompia os meus pensamentos com alguma conversa, fumava-se, o tempo ia passando…

Estava assim estabelecida a rotina da viagem, a que se juntou nos dias seguintes, uma jogatina de cartas e de dados, pelos «praças» no convés. Dezenas de grupos de quatro a seis soldados apostavam e jogavam, ouviam-se risadas, gritos quando alguém ganhava, discussões quando havia desconfianças de enganações… Os oficiais e sargentos apenas observam, para não dar confiança e atrevimento aos subordinados, mas, alguns, à socapa também apostavam.

No terceiro dia de viagem comecei a sentir o calor tropical, imaginei que estaríamos a aproximar do mar de Cabo Verde. Comecei então a tomar banhos de sol, ia só de calções para o convés, estendia-me, imaginava estar numa das praias do meu distante S. Vicente… Os outros imitaram-me, logo, todo o mundo também estava de calções e sem camisa a tomar banhos de Sol! 

Antes do almoço, voltava ao camarote e tomava um longo um banho de chuveiro para refrescar. Que remédio! Com o mar ali à nossa volta, mas impensável um banho de mar…. Relembrava então o hábito de nadar na água sempre tépida e depois ficar estendido ao sol na praia da Matiota em S. Vicente, a minha ilha… (…)
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Nota do Autor – Como devem compreender, são extratos que estou a publicar… Devo, pois,  explicar, neste ponto, em flash back descrevo várias peripécias, na recruta e especialidade e como consegui ir para a junta de saúde e obter uma reclassificação para Serviços Auxiliares, o que me livrou da especialidade “Atirador/Operador Cine”, ou seja, envio para o mato no caso de mobilização! 

Também descrevo situações que tive com a Pide em Mindelo, etc., num jogo surdo e mudo, por causa de uma carta que recebi de um amigo, em Comissão no Ultramar, na qual ele dizia estar apreensivo pois ia para uma operação no mato e logo ele temia pela vida! 

Imaginem, a carta tinha sido violada…. Felizmente, não me valeu nem prisão nem convocação à sede, como aconteceu com muitas outras pessoas, por ninharias. 

(Revisão / fixação de texto: LG)



T/T Quanza > BCaç 617 >  A caminho da Guiné > c. 8-15 janeiro de 1964 > Tela para projeção de filmes  ao ar livre...


Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd. o último poste a série > 3 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26760: No 25 de Abril eu estava em... (40): Bissau, em comissão de serviço na Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG (Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense, natural do Mindelo, vive hoje na Praia, Cabo Verde) - Parte V


(**) Para se ter uma ideia da depreciação do valor da moeda de então (o escudo português), ao longo do período da guerra do ultramar /guerra colonial (1961/75):  90$00 valiam (a preços de hoje) 47 € (em 1960)...

  • 45 € (1963), 
  • 39 € (1966), 
  • 32 € (1969),
  • 25 € (1972), 
  • 22 € (1973), 
  • 18 € (1974), 
  • 15 € (1975). 

Fonte: Pordata > Simulares > Simulador de Inflação.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26818: Convívios (1029): Rescaldo do XL Encontro Nacional dos Ex-Oficiais, Sargentos e Praças do BENG 447 (Brá/Guiné), levado a efeito no passado dia 17 de Maio e 2025 na Tornada - Caldas da Rainha (João Rodrigues Lobo)

1. Mensagem do nosso camarada João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, CMDT do Pelotão de Transportes Especiais / BENG 447 (Bissau, Brá, 1968/71) com data de 17 de Maio de 2025:

Boa tarde,
Realizou-se hoje um magnífico almoço com 199 ex-camaradas e algumas famílias. Grande convívio com alguns reencontros e, algumas ausências, pelas quais guardámos um minuto de silêncio. Obrigado aos organizadores Lima e Araújo.

Anexo umas fotos.

João Rodrigues Lobo


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Nota do editor

Último post da série de 17 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26810: Convívios (1028): Rescaldo do 53.º Convívio do pessoal da CCAÇ 414, levado a efeito no passado dia 27 de Abril de 2025, em Fafe (Manuel Barros Castro, ex-Fur Mil Enfermeiro)

Guiné 61/74 - P26817: Notas de leitura (1798): "Pára-quedistas em Combate 1961-1975", por Nuno Mira Vaz; Fronteira do Caos Editores, 2019 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Importa exaltar o meritório de trabalho do Coronel Nuno Mira Vaz, dá-nos um amplo enquadramento do desempenho dos paraquedistas nos três teatros de operações, no caso que mais nos toca, a Guiné, oferece-nos uma visão do que mais relevante esta tropa de elite ali praticou, entre 1963 e 1974. O autor deve ser leitor atento do nosso blogue, nele foi colher diferentes testemunhos daqueles momentos cruciais, como o de Gandembel, o nosso confrade Idálio Reis invoca o papel determinante que eles tiveram, designadamente nos ataques do PAIGC em dezembro de 1968; tropa que andou nos trilhos mais difíceis, no Morés e no Sul, esteve nos palcos de Guidage e de Gadamael, nos terríveis meses de maio e junho de 1973; e convém não esquecer que o BCP 12 infligiu ao PAIGC duros golpes no decurso da Operação Grande Empresa, na reocupação do Cantanhez. Um livro para ler e guardar.

Um abraço do
Mário



Paraquedistas em combate na Guiné (2)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Pára-quedistas em Combate 1961-1975", por Nuno Mira Vaz, Fronteira do Caos Editores, 2019, abarca o histórico da participação dos paraquedistas nos teatros de Angola, Guiné e Moçambique, e não esquece a extremosa e indispensável intervenção das enfermeiras no decurso da guerra. Houve um grupo de trabalho que desafiou o autor a coligir a obra destinada a guardar a memória desta tropa de elite.

No texto anterior, procedeu-se a uma síntese dos acontecimentos ocorridos em Angola em 1961, partiram a 16 de março com destino à Base Aérea n.º 9, em Luanda, era o primeiro contingente, o autor dá nota do desempenho da força paraquedista, refere as operações com salto em paraquedas, onde foi possível praticar tais iniciativas, não deixando de mencionar aquela que foi a mais emblemática e temerária mas que não se concretizou, e que tinha a ver com a reunião em Cap Skirring onde decorreu uma reunião entre o General Spínola e o Presidente Senghor. Como necessário, o leitor acompanha a atividade operacional dos paraquedistas em Angola.

Reportando-nos à Guiné, deu-se a visão da intervenção dos paraquedistas desde 1963 até à sua presença em Gandembel, em dezembro de 1968. O autor cita algumas expressões que o nosso confrade Idálio Reis, presença marcante em Gandembel, deixa no blogue:
“Os paraquedistas eram, inquestionavelmente, a tropa de elite melhor preparada para este tipo de guerra de guerrilhas, na busca perseverante ao agressor (…) a sua ação foi de uma extraordinária valia, revelou-se fundamental para o futuro dos homens da minha Companhia, muito em especial no aspeto anímico, e inclusive conseguiu também criar um clima de muito maior segurança para as demais tropas fixas e imóveis que estavam de algum modo envolvidas com Gandembel (…) Indubitavelmente, foi capaz de incutir uma outra serenidade a estes desalentados homens, renovar estados de espírito abalados, sobrepujar contrariedades inúmeras, remoçar réstias de esperança, que se revelaram cruciais no aumento da autoestima. E esta extraordinária proeza, este feito inigualável, ninguém lhe consegue dar a devida dimensão, tão-só o peso e o testemunho da gratidão dos que a sentiram.”

Estamos agora na era de Spínola, a reformulação da atividade operacional também atingiu as forças paraquedistas: foram criados Comandos Operacionais, Comandos de Agrupamentos de Operacionais e Comandos Operacionais Temporários. Deu-se seguimento ao projeto “Por Uma Guiné Melhor”, as populações das zonas mais disputadas eram transferidas para aldeamentos em locais estrategicamente escolhidos. Um coronel paraquedista foi escolhido para comandar o Comando de Agrupamento Operacional n.º 1, em Teixeira Pinto, em 1969, os paraquedistas alcançaram resultados assinaláveis. Eles também estiveram presentes na Operação Titão, a 24 de abril de 1969, na região do Morés, houve guerrilheiros capturados, bem como muito material de guerra. Em 13 de junho de 1969, eles irão intervir na Operação Orfeu, assalto à base de Choquemone, nos resultados, um número assinalável de material capturável.

A Operação Jove, executada nos dias 17 e 18 de novembro de 1969, no corredor de Guileje, deu como resultado a captura do capitão cubano Pedro Rodriguez Peralta. Irão realizar-se outras operações no corredor de Guileje. Em território bem distante, na região de Pirada, estamos em julho de 1970, decorrerá a Operação Elefante Roxo, o PAIGC tinha lançado um violento ataque ao aquartelamento, com fogos de canhão sem recuo, lança-granadas foguete, metralhadoras e armas ligeiras, procurava-se infiltrar elementos na povoação, a guerrilha tentou assaltar as instalações da DGS, uma secção de paraquedistas impediu que o assalto se concretizasse, contra-atacando e perseguindo os guerrilheiros.

Em janeiro de 1972, os paraquedistas voltam ao Morés em vários agrupamentos, batem o terreno, capturam material e provocam baixas à guerrilha. Por essa altura, o Comando-Chefe decidiu realizar entre a fronteira com a Guiné-Conacri e Salancaur Jate, perto do corredor de Guileje, a Operação Muralha Quimérica, entrou-se em acampamentos e apreendeu-se material. As forças paraquedistas tiveram um papel determinante na reocupação do Cantanhez, este local, severamente fustigado em 1968, dava sinais de que o PAIGC voltara a ocupá-lo. A Operação Grande Empresa envolveu forças de intervenção, entre elas três Companhias de Caçadores Paraquedistas, forças de quadrícula, várias companhias de caçadores e um pelotão de artilharia, forças de apoio, a Marinha e Força Aérea. Os páras participaram na implantação de aquartelamentos em Cadique, Caboxanque, Cafal Balanta, etc. Observa o autor que em maio de 1973, apesar de todos os progressos alcançados ninguém podia afirmar que se vivia em paz no Cantanhez. Todo este esforço se acabou por diluir com as ofensivas do PAIGC na região de Guileje e Gadamael e no norte, em Guidage, nesta altura a guerrilha já operava com os mísseis terra-ar Strela.

Mais uma vez os paraquedistas vão intervir em pontos convulsivos. Depois da retirada de Guileje, em 22 de maio, o PAIGC cerca Gadamael, vêm os paraquedistas, chegam a 3 de junho, desembarcam debaixo de uma concentração de artilharia e morteiros, os paraquedistas vão encontrar Gadamael em estado de grande devastação, o PAIGC pressiona, uma companhia de paraquedistas patrulha. Em 23 de junho, vários grupos de combate de paraquedistas saem de Gadamael e vão rumo a Cacoca, é a Operação Cobra Ondulante, vão desarticular um “quartel” do PAIGC. Os combates a norte foram igualmente ferozes, o PAIGC preparou o cerco de Guidage com um efetivo de 650 homens, provoca o inferno, quase que destrói o aquartelamento, faz repelir as colunas de reabastecimento. Os paraquedistas irão apoiar a Operação Ametista Real, a missão é estabelecer e garantir a segurança de um corredor por onde se fará a recolha do Batalhão de Comandos Africanos, na sequência do assalto a Cumbamori, e partem depois para Guidage, pelo caminho serão emboscados, a resposta é rápida, a guerrilha provoca baixas aos paraquedistas. A 30 de maio, uma companhia de paraquedistas, os destacamentos de Fuzileiros e o remanescente do Batalhão de Comandos Africanos deslocam-se para Binta, a companhia de paraquedistas saíra 17 dias antes para apoiar a Operação Ametista Real, trazia vestida a mesma roupa e menos quatro dos seus homens.

O autor chama a atenção que o empenhamento operacional no Cantanhez tinha exigido aos paraquedistas um esforço enorme. Os homens regressaram a Bissalanca mais magros, fisicamente cansados pelas consecutivas ações de combate e psicologicamente afetados pelos bombardeamentos suportados em noites insones. Mas voltaram às operações em junho. A última ação de combate com expressão relevante ocorreu em 30 de janeiro de 1974, na região de Bissum, os paraquedistas procederam a uma batida, encontraram uma canoa com armas, capturaram elementos do PAIGC e abateram outro. Em 10 de abril de 1968 foi concedida a medalha de Cruz de Guerra de 1.ª Classe ao Batalhão de Caçadores de Paraquedistas n.º 12, o diploma legal destaca as reais qualidades desta tropa de elite: “O Batalhão tem-se destacado, através dos seus oficiais, sargentos e praças, que formam um grupo equilibrado e homogéneo, exemplo da tropa de intervenção como uma verdadeira unidade de elite, contribuindo, de maneira decisiva para a viragem da situação no sul da província, honrando, assim, as Forças Paraquedistas e tendo a sua atuação na província considerada brilhante e altamente honrosa, resultando prestígio para a Força Aérea e admiração e reconhecimento das outras Forças Armadas.”

Cumpre dizer que o autor dedica um amplo capítulo à presença dos paraquedistas em Moçambique e um tocante capítulo às enfermeiras de camuflado.

Uma importante investigação que traz luz à performance dos paraquedistas nos três teatros da guerra colonial.

Coronel de Cavalaria Paraquedista Nuno Mira Vaz
Fez uma comissão em Angola, duas comissões na Guiné e uma em Moçambique. Condecorado com a Cruz de Guerra, de 1.ª classe
Testemunho de paraquedista recolhido do jornal Correio da Manhã, não consta o nome, fez comissão na Guiné de 1966 a 1968 no 1.º pelotão da Companhia de Caçadores Paraquedistas 122:

“Faltavam oito dias para regressarmos a Lisboa com a nossa missão cumprida. Entre nós já ninguém pensava na guerra, os dias eram contados a cada instante. Mas o inesperado aconteceu. O nosso Comandante Coronel Sigfredo Ventura da Costa Campos mandou formar a companhia de caçadores paraquedistas 122 e disse o que passo a citar: "Meus senhores, nós vamos embora daqui a oito dias, mas os camaradas que nos veem substitui, vão precisar de um mês para ficarem 100% operacionais. O problema é que os rapazes de Tite estão constantemente a ser atacados. Eu sei onde estão as armas pesadas com que eles os flagelam... Vocês querem ir lá buscá-las?" - E aqueles 120 rapazes responderam em uníssono, "Queremos!".


Fomos de novo cumprir com o nosso dever e trouxemos os canhões sem recuo, os morteiros 82 e armas ligeiras; e para além de algumas baixas infligidas, ainda trouxemos ferido o irmão do chefe do grupo que ali atuava. E assim aliviámos os nossos irmãos, pelo menos por algum tempo. No final fomos condecorados com a medalha de Cruz de guerra de primeira classe coletiva. Mas se me perguntassem se faltou alguma coisa... Bem, diria que faltou alguém com bom senso dizer: Obrigado, Pá! A Pátria está-te agradecida!”

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Notas do editor:
Post anterior de 12 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26793: Notas de leitura (1796): "Pára-quedistas em Combate 1961-1975", por Nuno Mira Vaz; Fronteira do Caos Editores, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 16 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26806: Notas de leitura (1797): "As Raças Humanas", de Louis Figuier, editado em Lisboa em 1881, no tempo em que se acreditava nas raças superiores e inferiores… (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26816: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (40): Quem não arrisca, não petisca

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá  O Rio Geba... Estreito (do Xime para montante),  c. 1970, no tempo seco... O rio era navegável de Bissau até Bafatá!... Mas normalmente, as embarcações (civis, os " barcos- turras") iam até Bambadinca... As LDG ficavam pelo Xime, mas chegavam a Bambadinca, pelo menos até a 1968... Dois pontos vulneráveis do percurso eram a Ponta Varela (na margem esquerda do Rio, entre a Foz do Corubal/Ponta do Inglês e o Xime), e o Mato Cão (entre o Xime e Bambadinca, no troço serpenteante do Geba Estreito).

Guiné > Zona leste > Região de  Bafatá > Bambadinca >  Tasca do Zé Maria > Um dos nossos poucos luxos no mato... Os famosos lagostins do Rio Geba Estreito... Da direita para a esquerda, três camaradas da CCAÇ 12 (1969/71) : o Humberto Reis, o Tony Levezinho e o José António G. Rodrigues (já falecido).  A foto terá sido tirada por mim (LG).

Fotos do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil op esp (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Fotos: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Contos com mural ao fundo >  Quem não arrisca,  não petisca

por Luís Graça

No teu tempo de Guiné era raro comer-se peixe nas messes e ranchos da tropa. A não ser em conservas (cavala, atum, sardinha...). A indústria conserveira sempre se deu bem com as guerras. Depois da indústria de guerra, claro...

Peixe fresco ?!... Nem vê-lo. Peixe ?!...  Só se fosse alguma pescada congelada, chegada na véspera ou no próprio dia, vinda de Bissau, na avioneta, a DO-27.

 A maldita pescada marmota rançosa! ... A saber a fénico.

Sim, de vez em quando, recordavas tu, os "caixeiros" (como tu chamavas aos "intendentes", os homens da Intendência) lembravam-se dos desgraçados que passavam fome no mato, mandavam-lhes algumas caixas de "frescos" (ovos, legumes, fruta, congelados...). Nunca ou  raramente carne, a não ser frango de aviário. E muito menos peixe, com tanto mar e rio ali à volta de Bissau!...(E se havia peixe naqueles grandes rios ou braços de mar, do Cacheu ao Cacine, do rio Corubal ao rio Grande de Buba, sem esquecer o ubérrimo estuário do Geba, o rio Mansoa, e até o rio Undunduma, cujo destacamento era vital para a defesa da estrada Xime-Bambadinca!).

 Porca miséria!

Nunca ninguém se revoltava. Isso é que era surpreendente. Era mais fácil haver um levantamento de rancho num quartel da metrópole do que algures no mato, na Guiné. 

O soldado português aceitava estóica e resignadamente, não a "fome" (o que podia ser mal interpretado pela hierarquia militar, como um ato de indisciplina ou insubordinação e, para mais,  em tempo de guerra,  passível até de ser um crime de lesa-pátria) mas a pobreza franciscana das ementas dos vagomestres, tão coitados e pobres como nós.

− Fome, camarada ?!

− Sim, vais-me dizer que não!?

Nunca passaste fome, não senhor. Fome propriamente dita, não, graças a Deus. No rancho, havia sempre pão e vinho sobre a mesa... E mais a sopa e algum conduto, como na casa pobrezinha mas honrada dos teus pais.  

Nunca passaste fome, não, senhor,  desde que  houvesse pão e vinho e latas de conserva, salpicão  ou chouriços enviados de casa pelo correio,o SPM, o Serviço Postal Militar. Vinho ? De preferência,  cerveja... Mesmo que gastasses o "patacão" todo do mês em  "bazucas", a garrafa de cerveja de 0,6l.

Na mesma avioneta vinha o correio, que era tão ou mais sagrado que "o pão nosso de cada dia". Claro, que não faltassem a farinha e o fermento para o padeiro fazer o milagre da multiplicação do "casqueiro"...

 Não sei o que seria de nós sem casqueiro nem correio!

O pão e as notícias, molhadas e  quentes, da longínqua terra natal (estamos a falar de 4 mil km de distância, cinco dias de viagem de barco, 3 horas e tal de avião), ajudavam a suportar melhor o pesadelo daqueles dias e noites sem fim.

− Pesadelo ?!...

− Podes crer!... Prisão, desterro, sem culpa formada. 

 Culpa ?!... Só se fosse por seres filho de pais portugueses...

Ao fim daqueles meses todos em que se reforçaram os laços de camaradagem,  havia já um certo espírito de corpo que te impedia de seres do "contra"...

− Do contra ?! 

− Pior: dissolvente!... Mais do que subversivo...

O pide de Bafatá adorava o termo. Subversivo era o turra, dissolvente era  a tropa que o não combatia e aniquilava, que acampava no mato, que não acreditava na vitória...  Deixava depois  no ar a insinuação de que o Spínola e a sua "entourage"  (o pide era filho de "imigras" e fluente em francês ) estavam a criar um clima "dissolvente" no seio das Forças Armadas e da população da província, suscetível de criar brechas na muralha da coesão do "todo nacional". Sobretudo com essa mania da "psico"...

 Qual psico, qual carapuça! ... Então um tipo,  investido de autoridade, um cipaio, um chefe de posto, um administrador de circunscrição, um agente da Polícia Internacional e Defesa do Estado, como eu, já não podia dar um tabefe num preto, "turra",  sem que o gajo ou um primo dele  não fosse logo a correr a Bissau fazer queixinhas ao Caco Baldé ?!...

Pois claro, "para uma Guiné melhor"!... Que para pior já bastava assim!... 

Encontraste-o ocasionalmente no café do Teófilo... Duas vezes ou três vezes,  se tanto...Não parecia ter sentido de humor... E, se o tivesse, nunca poderia ter sido pide...De qualquer modo, confessas, não lhe deste grande troco, e detestavas ver alguns dos teus amigos a "acamaradar" com ele...  Intrigava-te vê-lo ali, no café de um homem que se dizia ter sido desterrado no final dos 20 por atentar contra a segurança do Estado...

A primeira vez que o viste, tinha levado porrada num rusga noturna, lá no bairro da Rocha, em Bafatá...Mas ficaste sem saber por que é que um gajo (que ele disse que era "turra" ou "suspeito") lhe dera uma valente dentada no nariz ou numa orelha...

Mas voltando ao "casqueiro nosso de cada dia"..

− Os gajos do PAIGC − ironizava o "ranger" − podiam combater de barriga vazia (ou com um punhado de arroz cozido no bucho)... Mas não o Zé Soldado, o  "tuga", que antes de sair para o mato,  aí às três ou quatro da madrugada, já levava no bucho meio "casqueiro",  a sair, quente,  do forno,  com  marmelada,  e uma meia de leite (em pó) ou uma caneca de café de chicória.

E lançavas tu mais lenha para a fogueira:

− ...Marmelada que fazia uma sede do caraças!... Claro que, ao fim da manhã, já tinha despejado os dois cantis de água que levava à cintura... E num deles já tinha mijado... Era o cantil SOS...Mais valia, numa aflição, o próprio mijo com desinfetante do que a água preta da bolanha (sabe-se lá até se não estaria envenenada!)... 

O "ranger" era um dos teus companheiros de mesa. Acabaras de o conhecer, num dos almoços-convívios da Tabanca da Linha. Associava-se, assim, à conversa que tu e a malta à tua volta haviam  entabulado sobre o sempre presente e momentoso problema dos comes e bebes da tropa no TO da Guiné.

Não gostaste da maneira, um bocado desabrida e sobretudo despropositada,  como se referia à "tropa-macaca" que estaria mal preparada para "vencer e convencer" naquele difícil teatro de operações... Mas tinhas que lhe dar razão: aquela guerra deveria ter sido feita pela "elite da tropa,  rangers, comandos e parafusos" ( sic).

Este encontro deve ter ocorrido por volta de 2014, ainda o saudoso "régulo" Jorge Rosales era vivo... Confessou-te, o "ranger", que tinha sido um dos primeiros do curso de operações especiais em Lamego. Mas de nada lhe valera a alta classificação que tirara: acabou por ir  "parar com os cornos" (sic) à "maldita Guiné das bolanhas, dos mosquitos, do Cabral e da Maria Turra"...

Devia usar a mesma linguagem desbragada de há 40 e tal anos atrás. Tu e ele não se conheceram lá,   ele era "mais antigo, o que na tropa era um posto". Do tempo do Schulz.  Mas ambos, tu e ele,  tinham passado pelo Leste. 

O "ranger" era de uma companhia açoriana ou madeirense (não fixaste esse pormenor),  com alguns graduados continentais, como ele. E também eram pau para toda a obra, aqueles desgraçados dos ilhéus. Madeirenses e  açorianos sempre foram maltratados pelos senhores da guerra, que eram continentais...

O "petisco", nessa quinta feira, ao almoço, nesse já longínquo ano de 2014,  era magnífico, um regalo para os olhos, o palato e até o olfato: um divinal arroz de marisco, com generosa presença de lavagante... E tudo, vinho e sobremesa incluídos, pela módica quantia de 15 euros... Estava-se ainda em tempo de crise, mas ela, como sempre,  não era para todos. Como acontece, afinal,  em todas as crises.  

Ainda te lembravas do  nome do restaurante (e casa de chá!), "Oitavos", ali na estrada do Guincho, com uma vista privilegiada sobre o Atlântico. Na altura, só abria para grupos e em ocasiões especiais. O "régulo" Rosales, antigo salesiano, "menino da Linha", tinha um bom capital de relações sociais... E lá descobria estes "retiros fora de portas"... Aliás, como ele amava a vida e prezava a camaradagem, o Rosales!

À boa maneira portuguesa, tu, o "ranger" e os demais convivas, à volta da mesa, continuaram a comer e a falar de comida. Na tropa, na Guiné. E da fome e da sede, mais do que da guerra propriamente dita. 

Infelizmente não havia no grupo nenhum antigo vagomestre que pudesse falar, com melhor conhecimento de causa, dos problemas de abastecimento e de alimentação durante a guerra. 

Mas vieram ao de cima algumas recordações, "umas boas, outras más", desse tempo e dos lugares de que tu e ele  ainda se lembravam.  

  Eh, pá, o peixe que havia era da bolanha!  − gritou alguém do outro lado da mesa. − A gente chamava-lhe o peixe nharro. E até nem era mau.

Lembravas-te, sim, de algum peixe que os teus soldados apanhavam (muitas vezes com granadas deso, ofensivas) e que eram parecidos com o bardo, de pele escamuda, verde-escura, e que achavas repulsivos, habituado à sardinha, ao chicharro, ao robalo do mar do Cerro, a sul das Berlengas.  

E, no início, confessas,  nem sabias distinguir bem onde começava e acabava uma bolanhas  (também nunca tinhas visto  um campo de arroz na tua terra, só searas de trigo!), tal o emaranhado de rios, rias, riachos, braços de mar, tarrafos, mangais, palmeirais,  trilhos, picadas...

Achavas que conhecias bem o rio Geba, Estreito, o Xaianga, entre o Xime e e Bafatá, em especial na zona de Bambadinca, onde havia um porto fluvial. Mas não conhecias. Patrulhaste as duas margens lodosas, e de contornos indefinidos. Montaste segurança à navegação fluvial e emboscadas aos "turras" na margem direita, perto do Mato Cão. Às horas mais desencontradas...que as marés eram quem regulava  o trânsito fluvial.

No tempo das chuvas, o Geba e os seus afluentes eram uma massa pastosa, barrenta,  outrora infestada de crocodilos (garantiam-te os teus soldados fulas, os mais velhos, o que em África queria dizer  mais sábios e respeitados).

Quando "cambavas" o rio, eles não se viam, os "alfaiates". Mas tu tinhas muito respeitinho  por  aquelas águas onde quem lá caísse, nunca mais voltava à superfície, jurava o barqueiro da canoa comprida  que levava dez homens armados, uma secção, de cada vez para a bolanha de Finete. Mas ai deles  se fossem apanhados pelo macaréu... 

O macaréu fazia-se anunciar ao longe,   pelo ruído, o tropel de uma manada de cavalos, e sobretudo pela forma, a de uma onda com o aspecto de rolo compressor... Era como um pequeno tsunami. 

Já no caso do "barco-turra",  que tinha "as quotas em dia pagas no cais do Pijiguiti ao Partido", sempre achaste  estranho que o "patrão" mandasse apitar três vezes no regresso a Bissau, em noite clara de luar e em plena maré cheia... Claro que era um sinal de código.  Mas às vezes o "barco- turra" lá calhava ser atacado, por engano ou não, na Ponta Varela ou no Mato Cão...  Dizia a voz do povo que, afinal,  "não tinha as quotas em dia"... Ou então era o comandante de bigrupo,  emboscado numa das margens, que estava bêbado....

Não eras, tens de reconhecer, um grande aventureiro, nunca darias á  Pátria um bom explorador  como o Serpa Pinto ou o Roberto Ivens. Muito menos um bom soldado como o Mouzinho de Albuquerque. E seguramente não querias ser um herói... Menos ainda um herói morto. Aquela guerra, a Guiné, a Casa Gouveia, o BNU, não, não valiam o teu cadáver.

− Devias ter passado por Penude... Uma escola de virtudes!... 

− Penude ?!...

− Centro de Operações Especiais, nos arredores de Lamego!...Mas aquilo era só para gajos de barba rija!...

Aparte as provocações do "ranger", também pensavas que sim, nem tu nem ninguém da "tropa-macaca" vinha bem preparado para aquele terreno, aquele clima, aquela guerra... E muito menos para passar fome e sede.

E foste buscar o exemplo de Nhabijões onde estiveste destacado quinze dias. Paradigmático. A população, sem ser abertamente hostil à nossa tropa, tinha  "parentes no mato".  E recebia-os em casa, como tu receberias o teu pai, a tua mãe, os teus irmãos, os teus tios e primos, se estivesses no lugar deles... Mesmo correndo riscos... 

Foi construído um grande reordenamento com 300 moranças,  cercada de arame farpado. Um dos maiores, senão o maior da Guiné. Com  escola, posto sanitário, lavadouros, fontanário, mercado, mesquita ... No Vietname, chamavam-lhe, em 1962,  "aldeias estratégicas"... Falharam. Na Spinolândia, foram um sucesso!... E um desaire para o PAIGC, tens de concordar.

Todavia, era  completamente impossível, técnica, humana e militarmente falando, controlar aqueles milhares de almas,  vigiar as saídas e as entradas da população que ia trabalhar na bolanhas, ou caçar ou pescar ou apanhar  lenha. 

Os idiotas do batalhão, lá nos mapas deles, puseram um pionés de cabeça  cor de rosa, querendo dizer que era "população (pop) sob duplo controlo"... O Zé Soldado não entendia patavina  daquela conversa do "mandjor":

− Quer-se então dizer que de dia a pop é nossa, e à noite é deles ?!...

O "tuga" podia ser básico mas não era estúpido:

− Olhavas para um balanta, e depois ?! Eram todos turras!...

− ... E tresandavam a vinho de palma ainda a fermentar no garrafão!... Só o cheiro dava logo volta às tripas de um gajo!− sentenciava o "ranger",  categórico.

− Não sejas tão primário,  para não dizer racista... Havia balantas entre as nossas tropas e alguns, coitados, pagaram bem caro, com a vida, a sua colaboração com os "tugas"!

− Pois é, apostaram no cavalo errado, a guerra é uma lotaria...

− Estás a ser cruel!...

− Além disso, andavas fardado e armado, como eu, éramos todos iguais, tropa do exército português... Quem vê fardas, não vê corações...

− ... exército colonial-fascista, ainda por cima!

− Fica sabendo que nunca ouvi isso da boca daquela gente... Só da sacana da "Maria Turra"!...De qualquer modo, nunca conheci esse tal reordenamento de Nhabijões 
− esclareceu o "ranger" (que, segundo te disse, tinha sido promotor imobiliário no Algarve, depois da tropa).

Tu, no escasso tempo em lá estiveste, em Nhabijões, nunca conseguiste ganhar a confiança daqueles balantas e alguns mandingas para poder observá-los, acompanhá-los no seu quotidiano, aprender alguns termos da sua língua...

−  Quais tempos livres ?! Estavas vinte e quatro  horas de serviço, sete dias por semana!.. Não havia folgas no destacamento...

E depois aquilo era um depósito de básicos,  "cacimbados", malucos, convalescentes,  "desenfiados", aleijados ou de gajos com porradas que ninguém queria ter nos seus pelotões. 

Era a escória  do batalhão que te mandavam de reforço ao teu grupo de combate,  já de si desfalcadíssimo. O alferes ia dormir em cama fofa em Bambadinca, tu aguentava os cavalos.  

 O que farias com aquela maltosa toda, que mal sabia manejar uma arma, em caso de ataque ?!

Era uma força  simbólica que estava ali a guardar a bandeira nacional! ... Guardar ?!...

O major, que temia  a ira do Spínola (e Nhabijões era uma das suas "meninas bonitas"), resumia a questão da soberania nacional à bandeira verde-rubra das quinas a flutuar por cima da cabeça dura dos balantas... E daqueles pobres diabos,  que defendiam o "fortim'" (como outrora defenderiam o "quadrado"...), à entrada do reordenamento, e que só pensavam no panelão que lhes traziam  nesse dia, para o almoço:

− Será esparguete com cavala... ou cavala com esparguete ?

 − De resto, podíamos ser todos apanhados a mão, essa é que é essa!... 

Dormiam nos postos de sentinela ou então desatavam aos berros às tantas da noite porque tinham visto turras no arame farpado... 

Não havia luz elétrica... E o vento fazia  tilintar as garrafas de cerveja atadas em cachos no arame farpado... Ou às vezes eram os animais selvagens ou até os próprios cães da população que pregavam cagaços ao pessoal... Por razões de segurança também não havia campos de minas nos reordenamentos. Por isso era fácil os "gajos" entrarem por ali adentro, sorrateiros, armados...

 − Os "gajos"...?!

 − Sim, quem havia de ser ?!... Os "turras"!

 Obviamente que isso nunca aconteceria,  um ataque direto ao destacamento  que, de resto, mais parecia um daqueles fortes dos filmes do faroeste,  feitos com troncos de árvores que as buldózeres haviam arrancado nas terraplanagens... Enfim, o PAIGC não estava interessado  em que a população sofresse retaliações por parte das NT nem muito menos alienar o  indispensável apoio dos "seus balantas"...

− Nunca se atreveram, no meu tempo, a atacar ou flagelar o destacamento (que, de resto, era um alvo fácil)... Nem no dia de Natal nem no Ano Novo (estávamos de prevenção)...

Sim, é verdade, mas no dia 13 de janeiro de 1971, puseram-te duas valentes minas anticarro à saída do destacamento,  sabendo, pelas rotinas da malta,  que às 11h00, religiosamente,  iria lá passar o Unimog (o "burrinho") para  buscar a comida do almoço a Bambadinca!...

Dois presentes envenenados, um morto, uma porrada de feridos graves, duas viaturas destruídas, o piquete destroçado...

− Um ano e tal depois, o meu antigo  grupo de combate limpou o sebo ao Mário Mendes, um dos gajos que pôs as minas.

− Também era o nosso lema, "Cá se fazem, cá se pagam!" − arrematou o "ranger".

... A Guiné, vistas de cima, de avião, parecia um paraíso... Quando foste uma vez a Bissau, de avioneta,  ficaste deslumbrado, com todos aqueles braços de mar, rios, rias, canais, lalas, bolanhas, água, ouriques, florestas cerradas... Mas, não,  aquela não era a tua terra. Nem o verde dos teus pinhais, nem a areia branca das tuas praias.... E havia demasiadas armas espalhadas ao redor. E, seguramente, nenhuma delas estava em boas mãos.

Hoje tens pena de não podido circular livremente por Nhabijões e  e outras tabancas balantas em redor (como Mero, Santa Helena, Fá Balanta...) até à grande e bela bolanha de Samba Silate,  um símbolo trágico daquela guerra... Toda aquela população, que escapara ao cerco da tropa, acabará por fugir para o mato, nos anos de chumbo de 1963, diziam-te os teus soldados...

Do rio Geba, só te lembras de comer lagostins... Nunca te tinha passado pelo "estreito", o lagostim do rio, embora na tua terra houvesse bom marisco (lagosta, lavagante, santola, sapateira, navalheira,..., mesmo que a lagosta já fosse a 7$50, diretamente do pescador, no cais acostável de Paimogo ou do Porto das Barcas, e o tamboril se deitasse fora, por não ter valor comercial!)...

Era, em Bambadinca, na tasca do Zé Maria, um branco, comerciante, que cultivava algum mistério. O "alfero Cabral" gostava dele e dava-lhe corda. Passava sempre por lá para beber o último copo, e ganhar balanço  até Fá Mandinga...

Dizia-se que o Zé Maria "estava feito com os turras!"... Era a habitual suspeita dos militares em relação aos poucos comerciantes brancos que restavam no mato, e que precisavam, para sobreviver, tanto dos favores da tropa como do PAIGC.  

Nunca conseguiste ( nem sequer procurasse ) ganhar a confiança dele, mesmo sendo cliente da tasca, mistura de loja e bar com ar decadente, junto ao porto fluvial de Bambadinca. Claro que o tipo fazia-se pagar bem pelo petisco, 50 pesos o quilo o lagostim cozido (com muito piripiri), fora a cerveja. Nunca soubeste quem era a cozinheira ou o cozinheiro.  E muito menos quantos pesos pagava ele ao mariscador...

A população do mato  "cambava" o rio Geba, quase nas barbas da tropa,   e ia ao Zé Maria abastecer-se : tabaco, redes mosquiteiras, panos, petróleo, fósforos, sal, cachaça... 

Também vendia vacas, ao que parece... À tropa. 

Mais acima,  a meia encosta, perto do morro onde ficava o quartel e posto administrativo de Bambadinca (a escola, a capela, o depósito de água, a missão católica, etc.) havia a loja do Rendeiro que era, soubeste mais tarde, cinquenta anos depois, "informador da Pide". 

Tinha a cabeça a prémio, por traição ao PAIGC. Fizera-se passar, no início da guerra, em setembro de 1963, por simpatizante do partido de Amílcar Cabral... E escrevera uma carta ao "senhor engenheiro" a jurar fidelidade e lealdade... Afinal, era casado com uma guineense. E a sua terra era a dos seus filhos... Escolhas difíceis, quando se é apanhado por uma guerra.

 Quiseram-no levar a Conacri para o "beija-mão"... Acabou por fintá-los, em Dacar... E dar preciosas informações à tropa, no regresso, m Bissau... Nunca lhe perdoaram o embuste de se fazer passar por simpatizante do Partido, só para salvar a pele... Teve que trocar Porto Gole por Bambadinca, por razões de segurança... Tê-lo-iam fuzilado, sem apelo nem agravo, se o voltassem a agarrar...

Era casado com uma mandinga, a Auá,  e tinha um rancho de filhos.

Em suma, ambos jogavam com um pau de dois bicos, tanto o Zé Maria como o Rendeiro. Havia ainda um terceiro branco, ou cabo-verdiano, que pertencia à Casa Gouveia... Ia à missa, e irá escutar e anotar, mais tarde, as famigeradas homilías do capelão Puim... 

Aqueles homens estavam entalados, não tinham grande margem de manobra e sabiam que nunca teriam futuro com o fim da guerra...

Em todas as guerras, os comerciantes procuram tirar o melhor partido da situação-limite que é a guerra... Afinal, a tropa precisa de comer...

Não te lembras de ter comido peixe na casa do Rendeiro. A galinha ou o caldo de chabéu era, invariavelmnete, o melhor petisco  que ele podia oferecer a alguns dos seus convidados, os "milicianos" de Bambadinca...

Não sabes se alguma vez convidou o comando do Batalhão  de Bambadinca, o tenente-coronel e os dois majores, além dos capitães... É muito pouco ou nada provável. Sentia-se mais à vontade com "os senhores alferes e furriéis" da companhia africana, que a si próprios se intitulavam "nharros de 1ª classe" (sendo os seus soldados,  guineenses, de 2ª classe)... E era a companhia  que podia defender Bambadinca em caso de ataque. E salvar a sua casa e a sua família. Isto, se não andasse na "porrada", no mato.  

No intervalo, entre as frequentes saídas para o mato, os soldados viviam nas tabancas em redor, com as suas famílias, a de cima e a de baixo, a G3 e as cartucheiras e as granadas de mão sempre à mão de semear... Os graduados dormiam (às vezes) no quartel, sobranceiro á  grande bolanha de Bambadinca (em mandinga, a "cova do lagarto").

O Rendeiro tinha uma ampla morança, com telhado de chapa de zinco, logradouro e estaleiro de materiais, mesmo junto ao arame farpado. Não estava  livre de ser surpreendido à noite pelos "turras", em caso de ataque.  A mãe dos seus filhos (e também a belíssima cozinheira do caldo de chabéu) nunca te fora apresentada.  Nem a ti nem a ninguém.

Era um homem nervoso, seco de carnes, magro de cara e corpo, marcado pela malária, e "cafrealizado", que se enterrara naquelas terra palúdicas  muito jovem, com 17 anos, fugindo da miséria da sua terra, ali para as bandas da ria de Aveiro... Tinha uma camioneta a cair aos bocados que era alugada  de vez em quando à tropa  para fazer colunas logísticas a Mansambo, Xitole, Saltinho, Galomaro... Ele e os demais comerciantes da região viviam também destes "biscates" da tropa... Sempre entrava em casa mais algum patacão.

Dizem que terá tido "manga de problemas" a seguir ao 25 de Abril, e que inclusive teria estado  na iminência de ser linchado... Terá sido a tropa que o salvou... 

− Quem não arrisca, não petisca... − comentou o "ranger",  já no final da  conversa.

Como querendo dizer: a vida não é de quem a perde, é de quem  arrisca,  ou sabe arriscar, pondo-a em jogo... Como na lerpa. E "quem não arrisca, menino, não petisca"... 

Como o pobre armador da tua terra, que foi nove vezes à Mauritânia pescar goraz... Fez uma fortuna... Levava batatas para os sarauís da Frente Polisário. Havia um acordo tácito. Em troca, deixavam-no pescar mesmo junto à costa... Na 10ª viagem, quis encher o barco até ao teto, era "uma pescaria só para os camaradas da companha", "iam ficar todos ricos, com o melhor goraz do mundo". E depois, arrumava as botas e vendia o barco...

Arriscou, pela 10ª vez... Uma "roquetada" atingiu a casa das máquinas, houve uma morto (o motorista) e vários feridos... Teve de cortar as redes e zarpar com a máxima velocidade... Conseguiu chegar a Peniche, depois de socorrido no Algarve. Nunca mais foi pescador nem armador,  muito menos homem. Um dia contou-te a sua história, trágica... Estava bêbedo que nem um cacho... Uma ruina humana.

E tu lembravas-te, também,  de outros armadores, da tua terra, ribeirinha, fronteira ao Mar do Cerro, e que noutros mares, os do Norte de África,  trocaram o peixe pela droga... E desgraçaram-se. A eles, aos seus filhos, à sua comunidade. 

E lembravas-te, ainda, do sacana do  "Vermelhinha", que na Guiné esfolava os "incautos", no dia de "São Patacão", com  a lenga-lenga do "ganha esta, perda esta, ganha esta"...  E a malta ficava com os olhos em bico e sem... "patacão". Também esteve à beira de levar um enxerto de porrada, quando alguém descobriu que ele fazia batota com as cartas...

− Quem não arrisca, não petisca... − voltou  a dizer-te o "ranger", no último aceno de despedida, já à saída, à porta do restaurante.

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Nota do editor:

Úlltimo poste da série > 17 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26696: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (39): a Páscoa de antigamente