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Ambos pertenceram ao 2.º GComb da CCAÇ 2381, Os Maiorais (Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
Tudo servia para carne para canhão
por José Belo (1)
Era cedo. Uma daquelas manhãs geladas, húmidas, cinzentas, dos invernos de Abrantes.
O Pelotão ia formando na parada para mais um dia de instrução enquanto se aguardava o embarque para a Guiné.
Um dos Furriéis dirigiu-se para mim, acompanhado por um Soldado.
-Meu Aspirante, este é o Salvaterra! Apresentou-se ontem. Faz parte da Companhia e foi colocado no 2.º Pelotão!
Olhei-o pasmado. À minha frente estava o que aparentava ser uma figura de comédia. Uma caricatura barata de Soldado. Desde o quico, às botas, do cinturão à G-3, tudo nele estava mal vestido, mal assentado. Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca.
Tentei, com a ajuda do Furriel, melhorar, dentro do possível, todo o caos que era o fardamento do Soldado. Foi o nosso primeiro contacto!
A partir daí, o Soldado Salvaterra tornou-se no involuntário palhaço do Pelotão. Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços e, muito menos, com o movimento das pernas.
Na ordem unida tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis. Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía, desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada!
OS ANOS SESSENTA! O período em que nas escolas, jornais, televisão e rádio, nos
bombardeavam com o Portugal do Minho a Timor. Dos terroristas fanáticos, que pretendiam destruir a civilização Cristã - Ocidental em Africa, subvertendo os bons nativos resultantes de séculos de Portugalidade - missionária!
O período em que Camões foi apropriado para ser usado, e abusado, como bandeira da... Lusitaneidade! Não o Luís Vaz, exilado, empobrecido - vivendo de amigos - nos extremos do Império. O que nem dinheiro tinha para a viagem de regresso! Mas antes o Luís de Camões! Sacro! Divinizado de espada em punho...e Lusíadas debaixo do braço!
Era o período em que Os Descobrimentos e os descobridores quase se tornavam conversa de pequeno-almoço em família. Tanto se falava, a nível educacional e governamental, no Infante D. Henrique que não sobrava tempo para lembrar que o mesmo tinha introduzido a lucrativa escravatura negra na Europa de então, tornando-se um dos mais ricos do Reino.
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Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.
No Portugal dos anos sessenta quem seriam os Excelentíssimos Membros da Junta Médica que apurou o Soldado Salvaterra para todo o serviço Militar? Quem seriam os Excelentíssimos responsáveis militares que, depois de O VEREM, acabaram por o mobilizar como Atirador de Infantaria para a Guiné? Com essas Excelências, de certo modo, as contas ficaram provisoriamente assentes aquando dos primeiros tempos de Abril-74.
Mas comigo próprio? O Aspirante comandante do pelotão em que o Soldado Português - Salvaterra era o MÁRTIR, o palhaço, o momento constante de irritação? O jovem conduzido, ou melhor, imbuído, a repetir...gestas de antanho? Não era a nossa geração que se apropriava da História; era a História que se apropriava de nós!
Mais do que o remorso e a vergonha, é a pergunta: - Como foi possível que o Aspirante, militarão, ingénuo e estúpido, não tenha então reagido? Não tenha sequer exigido da parte dos superiores a atenção para o caso do pobre doente que era o Soldado Salvaterra?
Hoje, olhando-me ao espelho da memória, o que mais me assusta, é que ENTÃO ... nem sequer me dei ao trabalho de nisso pensar!
SOLDADO DE PORTUGAL - SALVATERRA BERNARDES - PRESENTE!
(O Maioral do 2.º Pelotão da CCAÇ 2381 – Salvaterra Bernardes - já faleceu.)
José Belo
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Nota de CV:
(1) Vd. postas anteriores desta série:
6 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1818: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (1): Hino à Guiné que nós conhecemos
26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 – P1883: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70 (2): Periquitos, no Rio Cacheu, sem munições
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