domingo, 5 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2029: Da Suécia com saudade (3) (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (3): O Soldado Salvaterra ou mais uma peça de carne para canhão

Mais um trabalho do camarada ex-Alf José Belo (que vive na Suécia desde 1976), como sempre encaminhado até nós pelo nosso companheiro Zé Teixeira.
Ambos pertenceram ao 2.º GComb da CCAÇ 2381, Os Maiorais (Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

Tudo servia para carne para canhão
por José Belo (1)

Era cedo. Uma daquelas manhãs geladas, húmidas, cinzentas, dos invernos de Abrantes.
O Pelotão ia formando na parada para mais um dia de instrução enquanto se aguardava o embarque para a Guiné.

Um dos Furriéis dirigiu-se para mim, acompanhado por um Soldado.
-Meu Aspirante, este é o Salvaterra! Apresentou-se ontem. Faz parte da Companhia e foi colocado no 2.º Pelotão!

Olhei-o pasmado. À minha frente estava o que aparentava ser uma figura de comédia. Uma caricatura barata de Soldado. Desde o quico, às botas, do cinturão à G-3, tudo nele estava mal vestido, mal assentado. Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca.

Tentei, com a ajuda do Furriel, melhorar, dentro do possível, todo o caos que era o fardamento do Soldado. Foi o nosso primeiro contacto!

A partir daí, o Soldado Salvaterra tornou-se no involuntário palhaço do Pelotão. Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços e, muito menos, com o movimento das pernas.

Na ordem unida tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis. Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía, desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada!

OS ANOS SESSENTA! O período em que nas escolas, jornais, televisão e rádio, nos
bombardeavam com o Portugal do Minho a Timor. Dos terroristas fanáticos, que pretendiam destruir a civilização Cristã - Ocidental em Africa, subvertendo os bons nativos resultantes de séculos de Portugalidade - missionária!

O período em que Camões foi apropriado para ser usado, e abusado, como bandeira da... Lusitaneidade! Não o Luís Vaz, exilado, empobrecido - vivendo de amigos - nos extremos do Império. O que nem dinheiro tinha para a viagem de regresso! Mas antes o Luís de Camões! Sacro! Divinizado de espada em punho...e Lusíadas debaixo do braço!

Era o período em que Os Descobrimentos e os descobridores quase se tornavam conversa de pequeno-almoço em família. Tanto se falava, a nível educacional e governamental, no Infante D. Henrique que não sobrava tempo para lembrar que o mesmo tinha introduzido a lucrativa escravatura negra na Europa de então, tornando-se um dos mais ricos do Reino.

Gravura do Livro da Terceira Classe, Ed. Domingos Barreira, 4ª Ed., 1958, por onde todos estudámos e aprendemos a amar a Pátria. Era, no entanto, um manual profundamente ideológico... servindo o propósito de um Estado, sem legitimidade democrática, de educar o povo, do berço à tumba.... (LG)

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

No Portugal dos anos sessenta quem seriam os Excelentíssimos Membros da Junta Médica que apurou o Soldado Salvaterra para todo o serviço Militar? Quem seriam os Excelentíssimos responsáveis militares que, depois de O VEREM, acabaram por o mobilizar como Atirador de Infantaria para a Guiné? Com essas Excelências, de certo modo, as contas ficaram provisoriamente assentes aquando dos primeiros tempos de Abril-74.

Mas comigo próprio? O Aspirante comandante do pelotão em que o Soldado Português - Salvaterra era o MÁRTIR, o palhaço, o momento constante de irritação? O jovem conduzido, ou melhor, imbuído, a repetir...gestas de antanho? Não era a nossa geração que se apropriava da História; era a História que se apropriava de nós!

Mais do que o remorso e a vergonha, é a pergunta: - Como foi possível que o Aspirante, militarão, ingénuo e estúpido, não tenha então reagido? Não tenha sequer exigido da parte dos superiores a atenção para o caso do pobre doente que era o Soldado Salvaterra?

Hoje, olhando-me ao espelho da memória, o que mais me assusta, é que ENTÃO ... nem sequer me dei ao trabalho de nisso pensar!

SOLDADO DE PORTUGAL - SALVATERRA BERNARDES - PRESENTE!

(O Maioral do 2.º Pelotão da CCAÇ 2381 – Salvaterra Bernardes - já faleceu.)

José Belo
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Nota de CV:

(1) Vd. postas anteriores desta série:

6 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1818: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (1): Hino à Guiné que nós conhecemos

26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 – P1883: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70 (2): Periquitos, no Rio Cacheu, sem munições

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