terça-feira, 4 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8854: In Memoriam (93): Homenagem do povo de Vale de Espinho aos seus filhos que perderam a vida na Guerra do Ultramar (José Corceiro)


1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos , Canjadude, 1969/71), com data de 2 de Outubro de 2011:

Caros amigos, Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães.
Deixo ao vosso critério publicar, ou não, o texto que envio, assim como as respectivas fotos, que junto em anexo.

Um Abraço
José Corceiro


Homenagem do povo de Vale de Espinho aos filhos que perderam a vida na Guerra do Ultramar

Estimados amigos
Estive no passado mês de Agosto, em Vale de Espinho, Sabugal, minha Terra Natal. A minha sensibilidade enterneceu-se num estranho miscigenado, de satisfação, sofrimento, orgulho e saudade, ao deparar e ser surpreendido, com um singelo memorial erigido pelo povo de Vale de Espinho, a homenagear os dois combatentes, mancebos Valespinhenses, que tombaram e derramaram o seu sangue, em terras de África, onde perderam a vida na Guerra do Ultramar. Foram eles: Francisco Vaz Silva e José Martins Cobrado.

Foto 1 - Memorial, erigido pelo povo, de Vale de Espinho, a homenagear os dois combatentes Valespinhenses que tombaram na Guerra do Ultramar.

O monumento é simples, mas transmite o resumo duma mensagem carregada de respeito e estima. É um memorial constituído por um pedestal de granito, pedra hirta, consistente e nobre, da zona, no qual foram cravadas três lápides de mármore preto, a simbolizar a saudade e o luto, lápides onde foram gravadas letras em baixo relevo, banhadas a ouro, exprimindo o carinho e o reconhecimento dum povo. Foi colocado num espaço público ajardinado, à entrada do Largo das Eiras, em frente do Centro Social Paroquial, da aldeia, junto ao café do “Freu”. Os meus dois conterrâneos, que tombaram em combate, tinham praticamente a minha idade e deixaram-nos no auge da sua mocidade, no ano de 1969.

Fiquei agradado e muito agradecido, ao Sr. Presidente da Junta da Freguesia, de Vale de Espinho, José Faixa, por ter tido a humanidade e a lembrança de honrar e recordar os dois jovens, filhos da povoação, que tão novos perderam a vida a lutar, numa guerra injusta, no solo do Ultramar. Guerra indevida, para mim, porque os nossos estadistas e governantes não souberam interpretar e respeitar o sopro dos ventos, que há muito se faziam sentir, através de sinais e acontecimentos explícitos, que exigiam mudanças históricas, mas não foram devidamente ajuizados para evitar que a guerra se desencadeasse…

Eu escrevi, no dia 1 de Junho, de 1969, em Bissau, nos meus apontamentos diários onde anotei, quando tinha somente dois dias de Guiné, mais ou menos o seguinte: “...Sou por natureza bucólico, encanta-me o campo, a paisagem a floresta, e admirou-me o percurso que medeia entre o DGA e Bissau, de aspecto árido e tórrido, a contrastar com o arvoredo frondoso e acolhedor da bolanha, onde umas mulheres lavavam a roupa…. Foi muito agradável ver as lavadeiras, algumas completamente nuas e sem ruborescerem perante os “mirones” presentes. De entre elas, sobressaiu uma, mais atrevida e desinibida, que ao ver o nosso olhar maroto carregado de intenção maliciosa e aveludado de desejo concupiscente, dirigiu-se a um dos meus amigos em termos críticos e desafiantes, gesticulando e prenunciando palavras provocadoras...

Para o meu íntimo, estes momentos a que venho assistindo, já são reveladores do fosso cultural existente entre nativos e metropolitanos. Começam-me a aliciar a idiossincrasia e a genuidade do povo guinéu, despido de formalismos e preconceitos; para mim este modo de vida, é pureza, conduta simples e natural, é como um ode da natureza a louvar a criação do homem… Assim se inicia mais um despertar em mim! Por um lado a intuição, por outro o raciocínio, começo a ficar sobressaltado e a entender que aqui há outra cultura, outra forma de ser e estar na vida, eles, os nativos, estão no seu habitat. Temos o dever de os respeitar, pois nós estamos desintegrados, eu sou invasor!...”

O primeiro mancebo da minha terra, Vale de Espinho, que tombou em combate, no Ultramar, Francisco Vaz Silva, era meu tio, irmão da minha querida e saudosa mãe. Além de tio, foi amigo e companheiro de infância, nas nossas brincadeiras de meninice, pois éramos praticamente da mesma idade e frequentámos a mesma turma escolar.

Foto 2 - Sepultura, no cemitério de Vale de Espinho, onde jazem os restos mortais de Francisco Vaz Silva.

Recorte com a notícia que saiu na imprensa regional, quando se realizou o funeral do meu tio.

O meu tio, juntamente com outros amigos, como era frequente na época, 1965, com apenas 18 anos, foi “a salto” para terras de França, à procura de melhor qualidade de vida e porque não dizê-lo, também para se alhear da Guerra do Ultramar… Estava profissionalmente bem integrado na sociedade do país que o acolheu, onde era estimado e valorizado, quer no trabalho que executava, quer nas relações inter-sociais com os amigos de convivência, e tinha sempre presente os meus avós, para os quais enviava com regularidade dinheiro. Mas um grito interior agitava-lhe as entranhas, e ouvia a voz bradante do chamamento da Pátria amada, que clamava pelos seus ditosos filhos e, com 21 anos, regressou voluntariamente à terra que o viu nascer, carregado de animosidade e cheio de esperança, desejava calar o grito que lhe invadia a alma e o impulsionava de regresso às origens… O bramido das Raízes!…

Foto 3 - Da esquerda para a direita: (eu) José Corceiro, Filipe Neto, José Manuel Pedro e meu tio Francisco Vaz Silva. Quando a foto foi tirada, tínhamos de idade 13, 14 anos.

Na companhia do meu e seu grande amigo, também emigrado, José Manuel Pedro, regressaram os dois ao seu País Natal e apresentaram-se de seguida no Regimento Militar, da área de residência, para se disponibilizarem a cumprir o dever de cidadania e serem integrados no serviço militar, para servir a Pátria. Tiraram a recruta, no Batalhão de Caçadores 6, em Castelo Branco, finda a qual foram logo mobilizados, pelo RC 4, para Angola, integrados na CCav 2431/BCav 2854 colocado em Zala. Após curta estadia em Angola, ainda com 21 anos de idade, o dia 4 de Fevereiro, de 1969, tombava em combate, Francisco Vaz Silva, na presença do seu grande e inseparável amigo, José Manuel Pedro.

O funeral do meu tio realizou-se, em Vale de Espinho, o dia 23 de Junho, de 1969, passados quatro meses e meio após a sua morte, já eu tinha sido mobilizado para o Ultramar e estava na Guiné.

Foto 4 - O nome do meu tio, na Venera Nacional, entre a extensa lista dos Combatentes que tombaram na Guerra do Ultramar, cujas placas estão junto do Monumento Nacional aos Combatentes do Ultramar, em Lisboa.

Foto 5 - Monumento Nacional aos Combatentes do Ultramar, em Lisboa.

O José Manuel Pedro, após o regresso do Ultramar, iniciou o namoro com uma prima minha e acabaram por contrair matrimónio. Constituíram e organizaram bem a vida, com sucesso e desafogo e dessa união, nasceram duas filhas. Mas a vida às vezes é madrasta, e reserva-nos traiçoeiras surpresas e tragédias. O casal, meu amigo e parente, ofereceu há cerca de dez ou onze anos um carro e um apartamento à filha mais velha, que vivia em Viseu, onde trabalhava e estava a tirar o mestrado. Na passagem do ano, quando se dirigia sozinha para uma festa de amigos, a filha perdeu a vida num acidente, em Viseu, ao volante do carro que conduzia.

Mas a tragédia e o sofrimento não terminaram por aqui e, passado pouco mais de meio ano, após se ter dado o acidente que vitimou a filha querida, eis quando também é roubada a vida à outra amada e já única filha, com 16 ou 17 anos de idade! Ficaram estes pais, num desespero arrepiante, de causar dó e piedade, mergulhados numa vida vazia, a abarrotar de dor, angustia, desmotivação, saudade, recordações de tantos sonhos idealizados e não concretizados! Foi tudo num ápice, e afundaram-se vidas até então bem estruturadas, deixando o casal num turbilhão de incertezas existenciais, em que a vida se transformou num vácuo desabitado, em que o pendor da balança do infortúnio ficou a pesar só, num só sentido… em declive, com o peso do luto doloroso e insuportável, no prato da desesperança!

Um abraço e boa saúde para todos
José Corceiro
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 28 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8832: Filhos do vento (6): Os que ficaram por Canjadude (José Corceiro)

Vd. último poste da série de 8 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8750: In Memoriam (92): Homenagem às Grandes Mulheres, as nossas Enfermeiras Pára-quedistas que nos deixaram (Rosa Serra, ex-Enf.ª Pára-quedista / António Almeida, Fur Mil em Angola / Teresa Almeida, Liga dos Combatentes)

2 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Um abraço amigo.
Que o respeito pela memória dos que cedo partiram perdurem.
Ab e Ob. T.

José Marcelino Martins disse...

Não são necessários grandes obras arquitectónicas para colocar as placas com os nomes dos que tombaram.

Por pequenas obras, se vêm os Grandes Povos.

Que a História os não esqueça!