Guiné > S/d > Documento das NT, em português e em crioulo, incentivando os guerrilheiros do PAIGC e a população sob o seu controlo a apresentarem-se às autoridades portuguesas.
© José Teixeira (2006)
Textod o Mário Dias (ex-sargento comando, Brá, 1963/66)
Caro Luis Graça, caros camardas de tertúlia:
A propósito dos comentários de nosso amigo J. Mussá Biai sobre a forma correcta de escrever o crioulo (criôlo?) é bom que nos vá elucidando. Por mim, que falo razoavelmente bem o criôlo, também se depara a dificuldade de o escrever porque esse dialecto só recentemente tem sido passado à fase de escrita. Pelo menos, que eu saiba, no tempo chamado colonial não existia qualquer gramátia nem textos escritos, com excepção de pequenas frases que alguns estudiosos e pesquisadores transcreviam, cada um o fazendo segundo uma transcrição fonética das palavras tal como elas soavam aos ouvidos. Apenas havia uma tímida tentativa em Cabo Verde, por parte de alguns intelectuais e escritores, de escrever poemas e outros textos -e alguns foram publicados- mas que tinham um forte oposição do regime de então que não admitia o criôlo como língua.
O Mussa Biai que desculpe as nossas deficiências e nos vá elucidando. E aproveito para lhe pedir que me informe onde posso adquirir uma gramática ou compêndio actualizado que me esclarece sobre esta matéria. Sei que recentemente foi publicado um dicionário de português-criolo de Cabo Verde (versão da ilha de Santiago). Iniciativa de louvar, mas que não adianta muito a quem pretende o criôlo (crioulo?) da Guiné, tão diferentes são.
Eu saí da Guiné em 1966. Desde essa altura, muita água correu pelo Pidjiguiti e, sendo as línguas, todas elas, dinâmicas e por isso sujeitas a constantes alterações não só na sua pronúncia como até na semântica, pergunto-lhe se a palavra djila que diz se deve escrever guila deixou de se pronunciar gila passando a guila com o "g" na sua função de consoante gutural.
Também o significado desta palavra era, no meu tempo, tal como diz o José Teixeira, simultaneamente comerciante ambulante e contrabandista, no sentido de que comerciavam produtos que traziam sobretudo do Senegal e passavam a fronteira sem controlo alfandegário. Não havia qualquer espécie de menosprezo nesse julgamente pelo contrário: todos aproveitavamos e apreciavamos os serviços que prestavam.
Recordo-me que, em Farim, todos aguardavamos com alguma ansiedade os djilas que vinham de Kolda e até de Ziguinchor com os seus fornecimentos de artigos franceses (eu era habitual cliente da água de colónia Soir de Paris. Para lá, na volta, levavam tabaco em folha, meadas de algodão e sobretudo nozes de cola produzidas na região de Cacine. Essa actividade era de tal forma importante, que deu origem à expressão djilandade, usada para caracterizar uma acção menos séria.
Como já me alonguei muito, voltarei em breve a este tema que tanto me fascina . Mas antes de terminar atrevo-me a saudar o José Mussa Biai em mandinga, mesmo correndo o risco de não escrever correctamente mas apenas como a frase me soava e soa: Kaera sita?
Um abraço, meus amigos.
Mário Dias
Mais conversas sobre o crioulo
Continuando a divagar sobre o crioulo (criôlo), que tanto me encanta, começo por dizer que não lhe resisto sempre que para tal tenho ocasião. É frequente nas minhas deslocações a Lisboa, ao tomar o barco no Barreiro, ouvir guineenses a falar criôlo. Tenho que meter conversa. É uma surpresa para eles e também motivo de alegria para ambas as partes. E já tem acontecido, durante os nossos diálogos, serem referidas pessoas conhecidas dos participantes na cavaqueira.
O crioulo é uma língua, ou dialecto (deixo a definição para os filólogos) com uma enorme riqueza de expressões idiomáticas que, apenas quem as entenda em toda a sua plenitude e envolvência, consegue captar o seu verdadeiro significado e alcance. Isso só se consegue dominando bem a língua e, sobretudo, conhecendo os hábitos, usos, costumes e filosofia de vida dos naturais da Guiné.
Como exemplo, vou contar uma caso que se passou e que ilustra bem o quanto uma expressão dita em crioulo tem um impacto e uma graça que se perde dita em português.
Aconteceu em Bissau. Na altura, eu trabalhava na NOSOCO, cujo edifício serviu durante a guerra como sede e armazém da Manutenção Militar. Um dos meus colegas, o senhor Martins, respeitável guineense, de veneranda carapinha branca, encarregado do armazém daquela companhia, teve a infelicidade de perder um familiar. Morava no chamado Bissau Velho, próximo da fortaleza da Amura. Eu e mais alguns colegas deslocámo-nos a sua casa a fim de lhe prestarmos a nossa solidariedade. Num dos compartimentos estava a urna do defunto rodeada de muitos familiares e amigos carpindo o infausto acontecimento.
Dirigi-me a ele com as palavras usuais destas ocasiões. Como o vi bastante abatido e ansioso perguntei-lhe como se estava a sentir. Resposta pronta em crioulo que me arrancou uma escandalosa gargalhada que de imediato tentei reprimir, dadas as circunstâncias:
- Casa inchi kum. Nim kau de tira pide ká tem.- Creio que compreendem o significado que é:
- A casa está tão cheia, que nem existe um sítio onde se possa dar um peido.- Esta frase, dita em português, perde todo o impacto que o crioulo lhe dá. É como um poema traduzido para outra língua: esvazia-se grande parte do sentir que o poeta lhe deu.
A tentativa dos ex-militares que serviram na Guiné de usarem o crioulo, só demonstra o quanto foi e é grande a nossa vontade de entender aquele povo. Aliás, isso faz parte da característica dos portugueses que sempre souberem mesclar-se e tenta compreender os povos que foram conhecendo por esse mundo fora.
Essa vontade de comunicar na língua que as populações usavam maioritariamente, ou seja, o crioulo, é disso prova e o prazer que se espelha nas frases que vão partilhando com os restantes tertulianos, mesmo ao fim de todos estes mais de 30 anos (para alguns muito mais), é enternecedora.
Acontece, porém, que a grafia e o próprio significado que pretendem atribuir às palavras não é o mais correcto. Quanto à grafia, nada vou acrescentar pois, também eu, a esse respeito, sou um ignorante. As regras ortográficas, quanto julgo saber, só agora estão a ser objecto de estudo e implementação. Trabalho árduo deverá ser!
No que se refere à semântica, tanto de palavras como de expressões idiomáticas, aí já posso meter a colherada. Constatei ao longo dos anos que os nossos militares foram adulterando o crioulo não só quanto à correcta pronúncia como, até, alterando o real significado das palavras. Muitas vezes acontecia que eram os velhinhos, para alardear a sua sabedoria perante os maçaricos ou periquitos que os iniciavam no conhecimento da língua. O resultado foi que, sendo muitos desses ensinamentos errados, assim permaneceram e se divulgaram criando-se uma variante de crioulo que poderemos chamar crioulo de caserna. Para quem o utiliza, está correcto atendendo a que sabem exactamente o que pretendem dizer; mas, para outros, fora dos meandros desta variante soa estranhamente. Aqui está um tema interessante para estudo dos filólogos. Alguns exemplos:
(i) O José Teixeira, o Pastilhas da CCAÇ 2381, no seu diário que não perco e tanto me encanta - e, por que não confessar?, me comove (parabéns Teixeira, um especial abraço para ti) - usa frequentemente a expressão manga de chocolate. Julgo que ele pretende dizer manga de sakalata que significa muita confusão, muitos sarilhos ou dificuldades. A expressão sakalata é muito utilizada quando se pretende indicar que existe confusão, problemas ou discussão conflituosa. Dessa palavra deriva sakalatado que se aplica a uma coisa esquisita ou insólita.
(ii) Mais exemplos da adulteração do criôlo de caserna: a palavra máfè. E aqui abro um parentesis para dizer que tanto ouvi pronunciar máfe, tónica em má e sílaba fé aberta, como mafé com a tónica em fé. E porquê? Porque a pronúncia das palavras, tal como acontece em Portugal, varia de região para região. Por exemplo, tchora (chorar) se dita por um manjaco soa com um “x” bem carregado; se for um papel, ouviremos “sora”. Regressando a máfe, que já vi no blogue traduzida como peixe, refere-se a qualquer acompanhamento do arroz (quando cozido toma o nome de bianda). É, comparativamente, aquilo que em Portugal chamamos conduto ou presigo. Claro que, por contingência, a maior parte das vezes o máfé era peixe, sobretudo peixe seco a que chamam kasseké. Quando o arroz cozinhado não tem máfé, diz-se rôz kuntango ou simplesmente kuntango.
(iii) Também é frequente a expressão partir mantenha com o sentido de cumprimentar. Começarei por esclarecer que no crioulo não existe o “r” final no infinito dos verbos. Deve dizer-se parte (dar ou oferecer). Parti´m (dá - me). Partíbu (dou-te). A confusão deve-se, suponho, à tentativa de adaptar a maneira como se fala o português ao crioulo. Claro que não funciona porque, enquanto nós dizemos dar os bons dias (daí o partir, dar) em criou não se utiliza o dar cumprimentos, mas sim falar. Desta forma, o correcto será, fala mantenha.
(iv) palavra que surge com frequência com significado errado é djubi, atribuído a menino ou rapaz. Menino diz-se minino e por vezes, de uma forma mais carinhosa, mininozinho ou rapazinho. Djubi, significa olha, vê e é também utilizado como forma de chamamento substituindo o nome da pessoa chamada. Passa-se o mesmo em português quando pretendendo chamar alguém dizemos: - Olha.
Peço desculpa por esta grande seca. A intenção é boa mas acabo por ser quezilento. Reconheço.
Chega. Tenho de ir ao baú desencantar algumas fotos em que está o Domingos Ramos para enviar brevemente com a pequena história da minha vivência com o que foi um dos primeiros e dos mais importantes chefes da guerrilha do PAIGC.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P443: As dificuldades e os encantos do crioulo (Mário Dias)
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