sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3567: Humor de caserna (7): O Pastilhas e a bajuda (Gabriel Gonçalves, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector de Contuboel > Aquartelamento de Contuboel > Junho de 1969 > CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71) > Os 1ºs Cabos Cripto Gabriel da Silva Gonçalves (à esquerda) e José António Damas Murta (à direita), junto ao abrigo de transmissões. Em Junho e Julho de 1969, foi administrada aos futuros soldados (guineenses) da CCAÇ 12 a instrução de especialidade bem como a IAO (LG).

Fotos: © Gabriel Gonçalves (2008). Direitos reservados


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Natal de 1969 > Sargentos e furriéis da CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 (1969/71) (quase todos) e da CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) (dois). O Fur Enf Martins, mais afectuosamente conhecido como o Bolha d'Água, está na segunda fila, de pé, assinalado com um círculo a vermelho (**).

Legenda: (i) Da esquerda para a direita, na 1ª fila: o Jaime Soares Santos (Fur Mil SAM, vulgo vagomestre); o António Eugénio da Silva Levezinho (Fur Mil At Inf); o António M. M. Branquinho (Fur Mil At Inf); o Humberto Simões dos Reis (Fur Mil Op Esp); o Joaquim A. M. Fernandes, Fur Mil At Inf; (ii) da esquerda para a direita, 2ª fila, de pé: 2º Sargento Inf José Martins Rosado Piça; o Fur Mil Armas Pesadas Inf Luís Manuel da Graça Henriques; um 2º sargento, de cujo nome não me lembro (CCS do BCAÇ 2852); o 1º Sargento Cav Fernando Aires Fragata; o Fur Mil Enfermeiro João Carreiro Martins; e um outro 1º sargento de cujo nome também já não me lembro, da CCS do BCAÇ 2852... Os restantes pertenciam à CCAÇ 12 (na altura ainda, CCAÇ 2590) (LG)


Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


1. Mensagem do Gabriel Goncalves, ex-1.º Cabo Cripto da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71, enviada em 28 de Novembro de 2008

A estória do Bolha d'Água, ou Furriel Pastilhas, como nós lhe chamávamos, aqui vai (***):

Lembro-me muito bem do Furriel Pastilhas, a última vez que o vi foi num encontro que se realizou na herdade do Vacas de Carvalho [, em Montemor-O-Novo], já lá vão uns anitos e tenho realmente uma estória dele, bastante divertida, daquelas que só se poderiam passar na Guiné, então lá vai:

Uma ocasião passava eu à porta da enfermaria, ouvi uma algazarra do caraças; era o Pastilhas, de seringa na mão direita e de algodão embebido em desinfectante na outra, a gritar para uma bajuda:
- Tira o pano, tira o pano...- e a bajuda gritava:
- Nega, nega!!!...

Como ela não tirava o pano para levar a injecção, o bom do Pastilhas com a mão esquerda desinfectou o pano no sítio certo e zás... espetou a agulha, dando-lhe assim a injecção.

Aproveito a oportunidade para enviar uma foto, tirada em Contuboel, poucos dias após a nossa chegada, onde estou eu e o Murta, os criptos da CCAÇ 2590, à porta do abrigo das transmissões.

Um abraço

GG

2. Comentário de L.G.:

Obrigado, Arcanjo São Gabriel, por te lembrares desta história (divertida) passada com o querido Fur Mil Enf Martins, o nosso querido Pastilhas (talvez mais conhecido por Bolha d'Água e a quem fazíamos mil e uma patifarias) (**)... Ele foi um extraordinário enfermeiro ao serviço da população de Bambadinca. Se queres que te diga, ele é que merecia uma estátua. Ainda hije recordo as filas de dezenas e dezenas de civis (homens, mulheres e crianças, incluindo gente do PAIGC de Nhabijões, Mero, Santa Helena, Madina...), a aguardar mezinho à prota da tabancado Pastilha... Em contrapartida, nunca o conseguimos demover a dar um passeio connosco à Ponta do Inglês.... Não sei até se ele alguma vez saiu do arame farpado a não ser para voltar a casa.... Na enfermaria ele era, com os civis ou militares, competentíssimo e dedicado.

Volltei a vê-lo mais tarde, no início dos anos 90. Foi meu aluno, num curso de especialização em administração de serviços de enfermagem, na antiga Escola Superior de Enfermagem de Maria Fernanda Resende (hoje integrada na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa). Reformou-se como Enfermeiro-Chefe no Hospital Curry Cabral. Falei com ele há tempos: é o pai, justamente orgulhoso, de dois médicos... Gostaria de voltar a vê-lo e de abraçá-lo. LG.

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. últimpo poste do Gabriel Gonçalves > 30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3545: Memória dos lugares (14): Bambadinca, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, 1969/71 (Gabriel Gonçalves)

(**) Vd. poste de 13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1366: A galeria dos meus heróis (6): Por este rio acima, com o Bolha d'Água, o Furriel Enfermeiro Martins (Luís Graça)


(...) "Pobre Bolha d’Água, pobre Pastilhas!... A alcunha, as alcunhas, ficaram-lhe para sempre coladas à pele. Hoje, reconstituindo os acontecimentos em retrospectiva, penso que ele foi o meu primeiro herói, ou melhor, o meu primeiro anti-herói: nunca o vi a pegar uma arma, duvido até que fosse capaz de pôr a G-3 em posição de tiro; nunca alinhou connosco em operações, mesmo nas grandes operações; recordo-o sempre de bata branca, na palhota que servia de enfermaria, no posto médico de Bambadinca, e onde todos os dias uma interminável fila de mulheres, crianças e velhos aguardava a sua consulta de enfermagem...

"Como enfermeiro, era um tipo competente, despachado, lesto, e a quem de resto recorríamos, com frequência, para picar as nossas bolhas de água nos pés, curar os nossos esquentamentos, com umas valentes doses de penicilina, ou aliviar os febrões do nosso paludismo.. Ele foi o mais útil de todos nós, soube cuidar de nós e da população local...

"Em contrapartida, gostávamos de lhe pregar partidas, algumas de mau gosto e até perigosas: recordo-me de um dia - às tantas da noite, no regresso de uma emboscada - o termos acordado, com uma pistola Walther apontada à cabeça; ou de o termos obrigado, com a cumplicidade do comandante da CCAÇ 12, já na parte final da comissão, a vestir no camuflado, a pegar na G-3 e a pôr ao ombro a mochila dos primeiros socorros... Simulámos uma ida ao mato, soprando-lhe ao ouvido um temível nome como Ponta Varela, Poindão ou Ponta do Inglês... Dissemos-lhe que ele não nunca poderia voltar connosco a Lisboa, virgem, sem o baptismo de fogo...

"Cinquenta metros depois de termos passado a porta de armas a caminho do objectivo, o Martins teve um colapso, um ataque de pânico, vomitou por cima e por baixo, acabou por ser ele a pregar-nos um grande susto... Levámo-lhe de urgência ao posto médico... No dia seguinte lá estava ele a servir as suas pastilhas aos doentes africanos, de Bambadinca, Bambadincazinha e tabancas dos arredores... Era aí que ele se sentia gente, e sobretudo enfermeiro a tempo inteiro... Um homem absolutamente deslocado na tropa e na guerra...

"Voltei a encontrá-lo, muitos anos mais tarde - vinte anos depois - , numa situação algo insólita: era enfermeiro chefe no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, e estava a agora a frequentar um curso de administração de serviços de enfermagem, na Escola Superior de Enfermagem Maria Resende. Os nossos papéis agora eram outros: ele, aluno; eu, professor...

"Sei que ele hoje está reformado... Voltei a encontrá-lo mais tarde e lembro-me de ele me ter falado, com muito orgulho, com um brilhozinho nos olhos, do seu filho, agora médico... Perdi-lhe depois o rasto, mas confesso que gostaria de voltar a encontrá-lo, em Lisboa, ou aqui na nossa tertúlia, para lhe dizer que ele agora faz parte da minha de galeria de heróis e também para lhe pedir desculpa de algumas das nossas brincadeiras mais estúpidas que o terão magoado...

"A guerra é cruel, e torna os homens estúpidos e cruéis. E o homem - primata social, territorial e predador - tem, além disso, a particularidade comportamental de ser o único animal do mundo que mata ou humilha as suas presas por mero prazer, usando a violência gratuitamente, sem necessidade...

"O Martins teve o azar de ter sido marcado, desde muito cedo, como alguém que parecia transmitir medo, fraqueza, vulnerabilidade, insegurança - sinais a que qualquer predador está atento, quando observa uma potencial presa. O Martins era um verdadeiro animal acossado nos primeiras semanas ou meses de Bambadinca: ainda antes do lusco-fusco era frequente vê-lo a rondar os abrigos como se estivessemos na iminência de um ataque... Ora no tempo dele, no nosso tempo, nunca houve felizmente uma ataque directo ao aquartelamento de Bambadinca..

"Por outro lado, ele cometera em Contuboel (onde estivemos um mês e meio, no início da comissão) um erro tático ao relacionar-se, de maneira preferencial, com o grupinho do 1º Sargento Fragata, com quem de resto tinha mais afinidades... Os milicianos, sobretudo os operacionais, marcaram-no e às vezes faziam-lhe a vida negra...

"Meu caro Martins: neste Natal desejo-te longa vida e muita saúde, contrariando o provérbio popular que garante Muita saúde, pouca vida, que Deus não dá tudo... Se leres esta mensagem, contacta-me por favor... Há uma conversa que começámos no Niassa e que ficou por terminar" (...).



(***) Vd. último poste desta série > 18 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3476: Humor de caserna (6): Paiama, Paunca, Natal de 1970: o lapso do Caco Baldé (Rogério Ferreira)

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