quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3560: História da CCAÇ 2679 (8): Três apontamentos (José Manuel Dinis)


1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 30 de Novembro de 2008:

Carlos, ou Virginio, camaradas,
Aqui vai mais um molhinho de estórias, coisa pouca, mas de boa vontade. Faltam-me retratos e outras narrativas, para tornar mais abrangente esta história. Parece-me que a inércia vai tolhendo a minha malta.
Ainda assim, antes a inércia, que o reumático.

Para o pessoal da Tabanca Grande, aquele abraço.


O Banana

Para além de mim, vêem-se, de joelhos, o Nuno, Trms; o Gonçalves e o Abreu. Esta fotografia reporta-se a outra acção, estranha à relatada.

Algures na região do Corubal, caminhávamos em patrulha, à procura do IN, ou dos seus sinais, na realidade, sem vontade para qualquer encontro, mas deambulávamos na mata, porque era a nossa sina.
Sob o calor intenso, contornávamos árvores, pisávamos terrenos onde, com facilidade, era possível colocar e dissimular minas. De facto, sob a mata densa, o solo apresentava-se atapetado de folhas, e as irregularidades eram constituídas por novos arbustos e pela proliferação de ramos rasteiros, ou raízes afloradas, que que poderiam provocar tropeções e dificultavam a progressão.

Do ponto de vista do IN, algumas destas margens que patrulhávamos frequentemente, demarcadas, dariam bons campos de minas contra a nossa presença. Aliás, de sentido contrário, algum tempo antes, um furriel do BART fora vítima de si próprio e da inexperiência e ficara sem um pé, não longe dali, porque instalara um campo de minas no início da comissão, tendo feito o registo na embalagem de um maço de tabaco. Antes do regresso mandaram-no levantar os engenhos, com as dificuldades naturais de os identificar com segurança, face às alterações da natureza em quase dois anos e à dissimulação a que ele procedera na instalação.

O que deveria ter ficado assinalado em carta, muito bem referenciado, era uma área a evitar pelas NT. Assim desprotegido, movido pelo respeito a uma ordem, o desgraçado foi vítima de mais um acidente, mas poderia ter sido pior, pois o grupo que o acompanhava andou num campo de minas.

Mas não, nunca nos aconteceria cair nessas armadilhas traiçoeiras, o que não evitava, de quando em vez, de pensar no assunto.
O passeio pedestre, todavia, não iria acabar sem qualquer percalço. Um militar foi acometido, tudo o indicava, de um paludismo galopante. Totalmente desfalecido, não aguentava prosseguir pelo seu pé. Improvisou-se, então, uma maca: cortaram-se dois ramos, que atados a um pano de tenda, permitiram carregá-lo. Porém, as dificuldades do terreno, quando era necessário agachar-mo-nos para passar na densidade das ramagens, o calor a desgastar quem o carregava e a dificuldade de agir bem caso de encontro com o IN, aconselhavam a pedir a evacuação, enquanto o enfermeiro, via rádio, trocava impressões com o médico.

Que não, não seria possível a evacuação por indisponibilidade de héli, mas após diligências óbvias, referiram que devíamos procurar um local com visibilidade, uma clareira, estender a tela reflectora e transmitir a posição, que uma Dornier sobrevoaria o local e deixaria cair uma injecção.

Assim foi, numa clareira estendeu-se a tela , ficaram o doente, o enfermeiro, o Trms, o alferes do BART e eu, enquanto o pessoal dos dois pelotões montava segurança a coberto da mata. Algum tempo depois, roncando no ar, aproximou-se a aeronave. A bordo, vinham, o Drácula, o Major de Operações, o médico e o Leite, que comandava a Companhia. Sobrevoou-nos e baixou na nossa direcção, tendo lançado um saco de juta com o medicamento.

Depois voou sobre as árvores, elevou-se em volta larga, para voltar a picar sobre nós, a saciar a curiosidade a bordo. Quando desenhava a terceira manobra de aproximação ao solo, já tínhamos criticado a insistência anterior como susceptível de suscitar a curiosidade do IN, no caso de se encontrar ali perto, pelo que podíamos vir a ser surpreendidos, situação agravada pela dificuldade do grupo na deslocação. Inspirado por essas conjecturas, pedi o banana que servia de contacto com o piloto e transmiti, em obediência ao impulso, que mandaria abater o avião, se não se retirassem imediatamente do local.

Bem dito e bem feito. Rumaram a Piche.

Só depois fiquei a pensar nas possíveis consequências draculianas. Se me chamasse, teria oportunidade para me defender e justificar, expondo aquele raciocínio, que se me apresentava coerente. Mas se me desse a porrada sem querer saber de razões? Só me restava aguardar.

A boa notícia era quenão dormíamos no mato.
Regressámos ao aquartelamento sem sem outras surpresas. Fui para o banho, dirigi-me à messe para o jantar, onde não estava o Drácula, e ninguém me chamou ou fez qualquer observação a propósito do dia e da D.O.
No dia seguinte também não. Suponho que o piloto terá arranjado qualquer razão para regressar, sem me comprometer nem denunciar.

A Lepra

Em duas viaturas, saímos pela estrada de Nova Lamego, de onde nos dirigimos na direcção nordeste, penetrando numa mata onde nunca estivéramos, nem era conhecida por alguma actividade IN. Uma região de ninguém, onde nos deslocávamos com ajuda de um guia, através de uma picada quase imperceptivel, pela falta de uso, com os rastos das viaturas só avistáveis de quando em quando, cobertos de ervas e folhas caídas, ou dissimulados desde as últimas chuvas. O nosso destino era uma aldeia de leprosos.

Connosco seguiam dois enfermeiros com medicação para distribuir, ou para eventuais tratamentos. A nossa missão era conduzi-los ao local com protecção. Impressionava-me a ideia e formulava cenários tenebrosos e dantescos. Fazia um filme de perseguições, com os habitantes revoltados pelo isolamento e nós, em coridas desencontradas e tolhidos por medos, em tentativas de fugir ao contágio aterrador. Preveni o pessoal sobre a missão e o que poderíamos encontrar, mas que não haveria cuidados especiais, salvo, relativamente a pessoas com chagas. De qualquer maneira, a discrição e o afastamento poderiam ser bons conselheiros.

Entre os autóctones ter-se-ia estabelecido como norma, que os individuos afectados pela lepra, na falta de assistência adequada, deveriam instalar-se naquela aldeia para evitarem a transmissão da doença a terceiros. Parecia-me ser assim. Digamos, que se tratava de um ostracismo comummente aceite, um lugar de exílio em resultado da enfermidade.

Imaginei que aquelas pessoas pudessem manifestar alguma revolta, ansiedade ou curiosidade. A revolta pela condição e isolamento. Ansiedade, como sentimento natural que resulta da esperança na salvação, na aquisição da normalidade. E curiosidade, como resultado da nossa presença, já que os contactos com o exterior seriam naturalmente escassos.

Afinal, fiquei muito surpreendido. A aldeia tinha aspecto físico, normal de qualquer tabanca. Viviam em famílias, que não sei se teriam sido ali constituídas ou para ali deslocadas por força da afectação de alguém. O comportamento foi muito sereno, parecia até que, conhecedores da doença e da possível propagação, evitavam contactos com estranhos, embora não tenha sabido se o faziam com esse nível de consciência, mas evidenciavam desinteresse pela nossa presença. Inclusive, as poucas crianças.

Vi indivíduos com os dedos parcialmente desaparecidos nas mãos como nos pés, mas cicatrizados. Não vi chagas. Sentados, ora isolados, ora em pequenos grupos, nas sombras, olhavam-nos silenciosos. Denotavam um sentido de espera e indiferença.
Era, sobretudo, uma pequena comunidade, pricipalmente de velhos, de onde a alegria tradicional da miudagem andava arredia.

O Tereza

Alguns elementos do 2.º Pelotão - Foxtrot, de pé, da esquerda para a direita: Dinis, Abreu, Teresa e França. Em baixo: Lamarão (condutor), Rodrigues, Martins e Virgílio Sousa

O Manuel Fernando Ramos Tereza foi um bom soldado, cumpridor, com boas qualidades físicas e morais, de trabalho e humildade. Não foi um mobilizador - do Foxtrot, obviamente um elemento que espalhasse alegria e boa disposição, alguém com iniciativa, mas sempre correspondeu às solicitaçóes, contribuindo para o sucesso colectivo, discretamente e sem comprometer. No mato manteve sempre a atitude adequada, sem estrilhos, sem medos que tolhem, antes, com aquela atitude de confiança que também galvaniza.
Foi assim que cumpriu a comissão na Guiné, eficiente e solidário. Sem necessidade de se impor pela exuberância, impôs-se pela solidariedade e eficácia...
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3477: História da CCAÇ 2679 (7): Quotidianos (José Manuel Dinis)

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