Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 5 de dezembro de 2008
Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)
Duas das ilustrações de Ofélia Marques que enriquecem o livro de Fernanda de Castro (1900-1994), Mariazinha em África (Lisboa: Ed. Empresa Literária Fulminense, 1925).
Imagens: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados
Fernanda de Castro e a Guiné
por Beja Santos
Leopoldo Amado, nosso confrade, chamou a atenção num importante ensaio intitulado “A literatura Colonial Guineense” (Revista ICALP, vol. 20 e 21, Julho - Outubro de 1990) (*) para o legado de Fernanda de Castro na literatura colonial que se afirmou na primeira metade do séc. XX.
Em 1870, a presença portuguesa na Guiné aparecia moralizada pela sentença arbitral do Presidente Ulisses Grant, considerando-se a data como marco histórico para a autonomização da Guiné face a Cabo Verde. Iniciava-se um período de relativa prosperidade, com a intensificação de trocas comerciais, Bolama enche-se de uma classe administrativa e comerciantes, os negociantes estrangeiros cirandam entre Bissau e Bolama, entre Bolama e Buba, entre Bissau e Cacheu. Aparecem publicações, uma pequena elite manifesta-se como gente “civilizada face” aos “indígenas”.
É dentro deste processo de colonização, aculturação e pacificação que desponta a literatura local. Leopoldo Amado destaca o papel de Fernanda de Castro que viveu na sua juventude em Bolama e que escreveu um best seller que encantou várias gerações: “Mariazinha em África” que surgiu em 1925, a que se seguiram outras obras que tem a Guiné como palco: “O Veneno do Sol” (1928), “Aventuras de Mariazinha em África” (1929); “Exílio” (1952) e “África Raiz” (1966) (**).
Fernanda de Castro é a mulher de António Ferro [1895-1956], é uma escritora modernista, terá tido uma infância feliz na Guiné, todos estes livros acabam por ser memórias e confidências desse tempo. Leopoldo Amado destaca Fernanda de Castro nas sucessivas edições de “Mariazinha em África” foi adoçando a visão colonialista do negro, aliviando cargas de preconceitos, se bem que mantendo o entusiasmo dos seus relatos que seguramente apaixonaram leitores de várias idades sobre um exótico praticamente desconhecido ou ignorado.
“Mariazinha em África” é apresentado como um romance infantil. Estou a seguir uma edição da Ática, 1959, com ilustrações belíssimas de uma grande artista do modernismo, Ofélia Marques, uma ilustradora que se impôs no panorama nacional ao lado do seu marido, Bernardo Marques [1898-1962], este dotado de um risco de grande talento, um visionário do desenho, um mestre de aguarela.
Mariazinha, a mãe e o irmão mais novo vão se encontrar com o pai, capitão do porto de Bolama, é uma fascinante viagem de barco, passaram ao largo da Madeira, avistaram as Canárias, Mariazinha viu os peixes voadores, estiveram em São Vicente e partiram para Bissau e daqui para Bolama. É uma criança que se fascina com aquele admirável mundo novo, onde há tubarões, crocodilos, quando Mariazinha chega a Bolama tem à sua espera um lindo quarto pintado de azul, uma cama de metal amarelo, uma secretária com um tinteiro, livros de aventuras, um dicionário Larousse ilustrado.
O pai apresenta os criados que falam numa língua incompreensível, uma algaraviada: Lanhano é o criado de mesa, tem uma risca muito bem feita na carapinha, Adolfo que não percebe nada e que diz sempre si, sinhô, o jardineiro Undôko que tem uma dentuça feroz mas que não é capaz de fazer mal a uma mosca, há o príncipe Mamadi que veio aprender português lá em casa e entreter o Afonso e por último o cozinheiro Vicente que ás vezes faz belos petiscos.
A Guiné de Fernanda de Castro é um pouco à imagem das ilustrações de Ofélia Marques: é um mundo tirado da Europa, onde os indígenas estão abertos, regra geral, a aceitar uma civilização superior. Há florestas, passeios de canoa, festas de bajudas, Mariazinha conhece Ana Maria a filha do governador, falam de jagudis, experimentam o tornado, assistem a uma caçada no Oio, saciam a fome e a cede com cocos, vêm gazelas, ouvem falar de onças.
A vida das meninas é apresentada através de descobertas muito curiosas: a criação de um autêntico jardim zoológico, a chegada de um navio que exige a preparação rápida de uma refeição, é sempre a cultura ocidental – europeia a sobrepor-se à África inculta. Viajam até Buba, levam um gramofone que é oferecido ao príncipe Mamadi. Mariazinha pergunta e os outros respondem: fala-se dos Bijagós, há um pretendente que quer casar com Mariazinha, o pretinho Mamadi adoece cheio de febres, chegou a hora de regressar a Portugal, o pai adquiriu uma bela colecção de armas mandingas, o Vicente vai também, no cais todos os negros se despedem cheios de tristeza dos brancos que vão regressar a Portugal. Percebe-se o fascínio por esta trama, Mariazinha transmite a todos e a tudo uma alegria sincera, deslumbra-se com o exótico, transmite essa África exótica ao leitor, assim se veicula a mensagem colonizadora.
Quero só lembrar a todos que as obras completas de Fernanda de Castro foram editadas pelo Círculo de Leitores, em 2007. Quem quer conhecer os seus romances guineenses tem esta oportunidade.
A seguir a Fernanda de Castro veio o caso mais sério da literatura colonial guineense, Fausto Duarte, um mestiço que introduziu a temática da aculturação numa época em que a Guiné conhecia mudanças com o consulado de Sarmento Rodrigues que trouxe consigo Avelino Teixeira da Mota que irá ter um papel cultural incontornável.
A obra-prima de Fausto Duarte é “Auá”, um romance de 1934 que merece ser relembrado. Iremos aqui falar de “Auá”, é o grande romance guineense da guerra colonial (***).
___________
Notas de L.G.:
(*) Disponível em formato pdf, 18 pp., no sítio do Instituto Camões:
Amado, L. - A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP [Instituto de Cultura e Língua Portuguesa], 20-21 (Julho-Outubro de 1990): 160-178.
(**) Vd. poste de 7 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2248: Blogpoesia (6): África Raiz, de Fernanda de Castro
(**) Recensão bibliográfica, por Beja Santos, a inserir brevemente no nosso blogue.
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