Queridos amigos,
O livro da Margarida Calafate Ribeiro é de leitura obrigatória para quem alinhe a questão de identidade nacional com a evolução do conceito de Império e as suas implicações políticas sociais, económicas e socioculturais, daí transferindo a reflexão para tudo quanto aconteceu com as atitudes das gerações dos combatentes em África.
Um abraço do
Mário
Uma história de regressos:
Império, guerra colonial e pós colonialismo
Beja Santos
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“Uma História de Regressos” é um importante ensaio baseado na tese de doutoramento de Margarida Calafate Ribeiro (Edições Afrontamento, 2004). Temos aqui uma leitura da relação simbólica de Portugal com o Império Africano, a partir de uma análise detalhada de textos literários e políticos dos séculos XIX e XX, explorando os conceitos de identidade, a nostalgia pelo Império e o longo epitáfio por uma nação imperial na literatura escrita no período do Estado Novo e a ruptura e transformação da ideia de Império nas narrativas portuguesas da guerra colonial.
A identidade imperial africana emerge do Portugal esvaziado pela perda do Brasil. É um país que vai mergulhar na guerra civil e numa monarquia constitucional que desperta para um projecto centrado na abertura de condições de um novo Brasil em África. A investigadora documenta todo este projecto de alteração de rota citando alguns dos mais importantes escritores do século XIX. Depois do brasileiro enriquecido, temos em A Ilustre Casa de Ramires o exemplo acabado do novo projecto colonial, a aventura africana reacende as tentações da prosperidade, vai resolver a decadência portuguesa, como escreve Eça de Queirós: “A África é como essas quintarolas, meio a monte, que a gente herda de uma tia velha, numa terra muito bruta, muito distante, onde não se conhece ninguém, onde não se encontra sequer um estanco (…) Boa para vender.”. O Portugal Pós-Ultimato também se movimenta nesse projecto de recuperação da decadência, surge uma literatura de conquista, exploração e colonização com títulos sugestivos, por exemplo: Sertões de África, de Alfredo Sarmento, A Campanha de África Contada por um Sargento, de Caetano Alberto, Epopeia Maldita: O Drama da Guerra de África, de António de Cértima, Tropa d’África: Jornal de Campanha de um voluntário no Niassa, de Carlos Selvagem, Nova Largada: Romance de África, de Augusto Casimiro. Estamos a falar de títulos publicados entre 1880 e 1930. Fernando Pessoa não iludiu a decadência do Império e reinventa-o no domínio poético, dizendo coisas como estas: “As colónias portuguesas são uma tradição inútil. Nós não temos o direito de ter colónias. Na nossa mão, elas não nos servem, não servem aos outros, e pesam sobre nós, alimentando uma tradição funesta que foi bela enquanto foi glória inútil, porque foi glória; mas tendo deixado de ser glória, ficou sendo inutilidade apenas”. Competiu ao Estado Novo relevar a noção imperial no projecto da identidade nacionalista. “A quarta potência colonial do mundo” assentava que nem uma luva ao modelo de Salazar. Mas visto de fora, homens como o embaixador alemão Oswald von Honyningen-Huene, que chegou até aos tempos de Hitler, falava desta metrópole “pequena, pobre, atrasada e quase incapaz de se defender” mas com um Império “espalhado por três partes do mundo”. O diplomata observava que este anacronismo colonial só era possível graças à aliança com a Grã-Bretanha. Bem interessante (mas este não é o espaço adequado” seria a referência ao que foi a Exposição do Mundo Português e a literatura contemporânea. E de repente, surge uma geração a questionar a aventura desaguada do Tejo para África: a “Poesia 61” (Fiama Hasse Pais Brandão, Luísa Neto Jorge, Maria Teresa Horta, Casimiro de Brito e Gastão Cruz). Em linguagem codificada, outros vultos como Mário Cesariny ou Alexandre O’Neill ironizavam a mítica glória das caravelas. A década de 60 gera dois fenómenos literários: os que da Europa questionam a aventura imperial e os que de África põem em causa a irredutibilidade do Império, afrontando-o ou anotomizando. Os do lado de lá do mar chamam-se Fernando Assis Pacheco, Manuel Alegre, Álvaro Guerra, João Bação Leal ou Modesto Navarro. É desta literatura que nasce o poema mais importante na língua portuguesa referente à guerra colonial, Nambuangongo, meu Amor, que assim começa:
Em Nambuangongo tu não viste nada
não viste nada nesse dia longo longo
a cabela cortada
e a flor bombardeada
não tu não viste nada em Nambuangongo.
Margarida Calafate Ribeiro passa em revista esta literatura escrita por combatentes e, com o 25 de Abril, questiona o que restou do mar e da aventura imperial, quais os termos da crise de identidade e aprecia, com grande comentação algumas dessas obras mais importantes, a saber: Os Cus de Judas, de António Lobo Antunes, Autópsia de um Mar de Ruínas, de João de Melo, Jornada de África, de Manuel Alegre e A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge. Deixa um registo expressivo da literatura da guerra colonial, chamando a atenção para as obras de Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Álamo Oliveira e José Brás, na fila mais representativa. Não deixa de chamar a atenção para a especificidade dos teatros de operações que acarretam vibrações próprias na visão simbólica de Portugal. E não deixa de ser igualmente curioso observar que nem a adesão de Portugal às Comunidades Europeias reduziu os testemunhos. Pelo contrário, parece que o envelhecimento desses combatentes lhes trouxe uma maior disponibilidade para referirem as suas experiências no violento crepúsculo imperial português. Recorde-se que Margarida Calafate Ribeiro é também co-organizadora do livro Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário Português Contemporâneo (Campo das Letras, 2003).
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 7 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7567: Notas de leitura (185): Guiné-Bissau, Aspectos da Vida de um Povo, de Eva Kipp (Mário Beja Santos)
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