quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7608: Contraponto (Alberto Branquinho) (21): Ensinar/Aprender a ler


1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 11 de Janeiro de 2011:

Caro Carlos Vinhal
Junto mais um texto para a série Contraponto, que, como se vê, não sendo "fora de série", tem o n.º 21.

Abraço
Alberto Branquinho




CONTRAPONTO (21)

ENSINAR/APRENDER A LER

Catió

O alferes conversava com um soldado milícia fula à porta da casa onde estavam instalados o capitão e os quatro alferes. A casa ficava próxima do cavalo de frisa que cortava o caminho que levava a Príame.
O soldado era um dos dois ou três preferidos do João Bácar Jaló. Era um homem magro, temerário debaixo de fogo, condecorado.

O alferes pediu ao soldado que contasse até vinte em fula e ele começou imediatamente com a lenga-lenga da contagem.

- Espera aí.

O alferes retirou uma agenda pequena do bolso da camisa e uma esferográfica.

- Diz lá outra vez, mas devagar.

O soldado começou e o alferes já escrevia. O soldado acelerou de novo.

- Pára! Diz lá – um, dois, três… Devagar.

E ia escrevendo.
Daí resultaram notas manuscritas, passando os sons a grafia corrente.

Acabada a cantilena da contagem e acabado o escrito, o alferes começou a ler. Ainda ia a meio de contar de um a vinte (em fonia fula) e já o soldado olhava o alferes, dando gritos de espanto: -Hi! Hi! Hi! Hi!

Chegado aos vinte, o soldado milícia afastou-se três ou quatro passos, olhando espantado o alferes, ao mesmo tempo que, no meio de gargalhadas, ia dizendo:

- Quê?! Alfero têm manga di cabeça dirêta!!!

Arrancou a agenda das mãos do alferes e, depois de observar as letras, tomou um aspecto sério e perguntou:

- Noss’alfero, bô ensina mim a ler? A mim faz essame, pass’á cabo e ganha manga di patacão. Suma Paulo.

Ficou combinado. Quando não houvesse saídas ou operações – todas as manhãs ali, no alpendre da casa.

Começou com o ensino das vogais. O alferes escreveu-as várias vezes no papel – a, e, i, o, u.

- Este é o “a”. Diz lá “a”. Então?

O soldado não entendia aquela “história” de ter que dizer “a”, depois”e”…, mas lá ia repetindo.

O alferes passou aos ditongos, tentando estimular o aluno.

- O “a” com o “i” – “a…i! - “ai”. Ora, diz lá: “a…com “i”-“ai”, “ai”.

Depois de olhar o alferes, meio desconfiado, lá veio o “ai”.

- Porreiro. Para escrever “ai”, junta-se o “a” com o”i”; “ai”. Diz lá: “ai”. Ele olhava o alferes, com ar relutante, parecendo estar a pensar: - Está a gozar comigo.

- E juntando o “a” ao “u”? Lê-se “a…u”, “au”. Diz lá “a…u”, “au”.

O alferes ia escrevendo as vogais e juntando os ditongos “ai” e “au”, ao mesmo tempo que os lia: “ai”, “au”, “ai”, “au”…

O soldado milícia olhava para o papel e depois para o alferes, com ar desconfiado e incrédulo.

- Diz lá.

- Quê, noss’alfero?

- “a…u” – “au”.

Olhava o alferes nos olhos, interrogativo.

- “ai”, “au” – pronunciava o alferes, apontando as letras com a esferográfica.

E ele, embora renitente:

- “ai”… “au”.

Levou como trabalho de casa escrever cinco vezes as vogais por baixo daquelas que o alferes escreveu no papel. No dia seguinte voltou com o trabalho feito. As cinco vogais estavam relativamente bem desenhadas.

O alferes continuou com o som das vogais, a escrita das vogais, a construção dos ditongos – ai, au, ei, ou…, mas o soldado milícia não dava mostras de satisfação.

Levou como trabalho de casa copiar cinco vezes os ditongos, por baixo dos que o alferes escrevera.

No terceiro dia apareceu sem… a folha dos ditongos.

- Noss’alfero… A mim cá pude… a mim cá tem

E afastou-se coçando o alto da cabeça, com a mão por debaixo do quico.

O relacionamento entre os dois nunca mais foi o mesmo. O soldado milícia passou a evitar o alferes.

Nunca mais conversaram como conversavam antes. A culpa foi daquelas brincadêra di minino com… vogais e ditongos.

Alberto Branquinho
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7409: Contraponto (Alberto Branquinho) (20): A granada de morteiro que veio jantar

4 comentários:

Anónimo disse...

Isto de ensinar a ler e a escrever, tem que se lhe diga. Abro um parêntesis para aproveitar de homenagear o meu velhinho professor primário, professor Pinto e, na sua pessoa, todos os outros que, com mais ou menos sabedoria, souberam transmitir aos seus alunos a velha “arte” de comunicar. Dizia eu que a coisa tem que se lhe diga, acontece que no meu pelotão tinha um analfabeto, se calha havia outros, não me recordo mas penso que não. Pois bem o Cunha, que era de Silva Escura, Maia, já falecido, chegou a sonhar em mudar o seu estatuto, queria aprender a ler e a escrever tarefa que me propus a ajudar. Para o efeito, sem horário pois as operações e os serviços não o permitiam, quando possível, ele iria até à messe e eu o ajudaria. Seria “canja”, … pensava eu. Assim começaram as aulas, sem livro de apoio, apenas papel e esferográfica, sem rede, tudo de improviso. Inicialmente com muita paciência, lá se avançava um passo, recuando dois ou três … ao fim de poucos dias, corri-o da messe atirando-lhe com as botas e algo mais que encontrei à mão. O mal não estava no Cunha, estava no “professor”. Não me recordo quem assumiu a nobre tarefa de o ajudar, recordo-me, isso sim, que um belo dia, em São Salvador do Congo, norte de Angola, o Cunha regressou ao aquartelamento com o exame de 3ª classe feito. Ainda umas notas sobre este militar, ele era agricultor, na altura muito orgulhoso da sua profissão, dizia mesmo que não queria ser outra coisa na vida. Sei que acabou por ter um emprego público mas continuava com uma pequena leira que ia cultivando com a ajuda dos familiares.
Um abraço,
António Brandão Ccaç 2336

Luís Graça disse...

Alberto, a tua história, deliciosa e didáctica (não é professor quem quer, contrariamente ao dito popular "Quem não sabe fazer mais nada, vai para professor"...), trouxe-me à memória um episódio da minha própria aprendizagem da língua materna, na 1ª classe (ou ainda antes de ingressar na 1ª classe), segundo o velho método do João de Deus...

Andava eu também a "ajuntar" as letrinhas, Tê e um É > TÉ, Rê e um A> RA, naquela lengualenga repetitiva e monótona que desespera qualquer um, da criança ao adulto... E o o meu pai, sapateiro, e felizmente ainda vivo, ajudava-me nos trabalhos de casa, às vezes na oficina, no meio dos três ou quatro empregados que ele tinha, sentado numa das tripeças....

- Então diz lá, Tê e É, TE... Rê e A RA...

Resposta pronta cá do rapaz:
- Chão...

Devo ter levado com o pai da lixa, porque aprendi depressa...

Anónimo disse...

Caro Alberto Branquinho

Isto de ensinar, aprender e memória, dá pano para mangas…

Eu tive da primeira à terceira classe, o mesmo professor, que por acaso era amicíssimo do meu pai, pois eram da mesma idade, os pais eram vizinhos porta com porta, amigos desde crianças, e havia muita amizade entre as respectivas famílias.
Quando com sete anos entrei para a 1ª classe, recordo como se fosse ontem, o meu pai a dizer ao amigo: – Trata-me cá do rapaz como se fosse teu filho e se não se portar bem, tu saberás o que fazer, que eu não preciso de explicação.

Na área da aprendizagem estava tudo a correr maravilhosamente bem!

Já ia na lição da página 17, cada aluno ia em sua lição diferente, conforme assimilava o conteúdo e progredia na aprendizagem, e a lição, onde eu ia, começava assim: - Meu menino. Meu amor. Amo amei amou nota nata animei animou Mário e Tito Eia! Ânimo! Ânimo!
Mas eu ao pronunciar a palavra – Eia – dizia – IA – e a asneira repetia duas ou três vezes.

O professor, exigente para comigo, não esteve com meias medidas e aplicou-me três castigos:
Uma reguada em cada mão com a menina dos cinco olhinhos; colocou-me umas orelhas de burro; e o mais aflitivo, para mim, sentenciou que tinha que começar a progredir, em termos de lição, a partir da página nº 7, que começava assim: - Eu ia, ia ia. E eu. Ai eu ou ui aia aio eia! Eia! Eia! Eia!
Isto porque eu não tinha assimilado a palavra – EIA – que devia ter aprendido na página 7.
Assim passei para a cauda do pelotão dos mais atrasados, quando até ao momento era o mais adiantado.

Até hoje, lembro o episódio como se tivesse acontecido ontem!

Um abraço

José Corceiro

Hélder Valério disse...

Caro camarigo ABranquinho

Acabaste de provar que isso de ensinar não é 'para todos'.
Afinal os professores não são aquela 'cambada' que se quis fazer pintar aquando das suas movimentações.
Por outro lado também é bom compreender que não há 'receitas universais', daquelas que dão para tudo e para todos em todas as circunstâncias, coisa que muitas vezes as pessoas se esquecem e procuram 'importar' soluções para aplicar em contextos diferentes daqueles donde se importam.

Abraço
Hélder S.