quinta-feira, 14 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10031: Cartas do meu avô (8): Lisboa, o primeiro emprego, o primeiro carro em segunda mão, a vida de trabalhador-estudante, o casamento... (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. [, Foto à esquerda, em Catió].

As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem os netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*) 


B. SEXTA CARTA > O Primeiro Emprego e Casamento


O tempo ia decorrendo. Não tinha passado um mês sequer, quando se deu o desligar absoluto da vida militar. Fui receber o último soldo ao posto da GNR da vila.

A partir daí passei a viver do pecúlio que tinha conseguido. Não era muito, pois que tive de custear as mensalidades do internato do meu irmão, num colégio do Porto,  e um tanto para o sustento da tia que tomava conta da casa e do meu irmão, seu afilhado.

Além disso ela tomou a decisão de comprar uma tira de terreno, contíguo ao da casa, para ampliar um pouco mais o quintal e afastar a proximidade do vizinho.

Daí que a necessidade de procurar emprego se pusesse prementemente.

I – O Primeiro Emprego

Teria de descer de novo até Lisboa, onde as oportunidades seriam maiores. E, onde havia de ficar? Lembrei-me de que o irmão dum furriel do 1º pelotão era padre e geria um lar de rapazes estudantes, em Lisboa, ali ao pé da Feira Popular.

Pus-me em contacto com ele. Por seu intermédio, foi-me logo franqueada a entrada para esse lar. Com cama e mesa. Um pouco puxado.

Depois, foi uma luta feroz contra o tempo. Havia que conseguir emprego a todo o custo. Bati à porta de todas as companhias de seguros. Bancos. Emissora Nacional… Sei lá mais quê.

Foi então que encontrei o meu camarada de companhia,  o Arlindo. Estava já empregado numa empresa de motorizadas. Ele sabia que a Caixa Geral de Depósitos estava a admitir pessoal e seria fácil conseguir. O vencimento não seria muito. Mas, fosse o que fosse, daria para subsistir. Até melhores dias.

E assim foi. Entrei menos de dois meses depois.  Respirei fundo.
- Vai ganhar 2.028 escudos por mês. Temos um bom apoio social e quem merece durante o ano, tem uma partilha de lucros ao fim do ano. Pode chegar a três vencimentos. Muito razoável. – adiantou o chefe de secretaria do pessoal, o Sr. Santos, quando me fui apresentar.
- Para começar, não está mal…- respondi, com ar satisfeito.
- Então, Sr. Gomes, tome esta guia e vá apresentar-se ao director dos serviços de Estatística e Actuariais, fica ali na rua do Alecrim. E muitas felicidades.
- Muito obrigado, Sr. Santos. – nunca mais esqueci o seu nome nem o seu ar de bonomia acolhedora, espelhados num rosto redondo e vermelhusco.

Essa de Serviço de Estatística e… outra coisa que nem percebi bem, é que não me caiu muito bem. Nunca tive tendências para números ou contabilidades. Estava a entrar num banco. Tudo era provável. Paciência. Não há volta a dar-lhe…- ia eu a pensar enquanto procurava a tal rua no Calhariz.
- É aquela ali… a última porta larga do lado esquerdo - explicou-me o porteiro à saída.

Mal sabia eu que estava a entrar para, talvez, a única Direcção de Serviços onde seria possível frequentar um curso superior. Tinha um chefe, licenciado, o que era raro na Caixa desse tempo, e que, talvez, por também ter tirado o curso a trabalhar, não levantava dificuldades, desde que se merecesse…

O mundo da informática estava a nascer naqueles anos sessenta. A Caixa Geral de Depósitos era das poucas instituições que possuía o último grito de computadores- um IBM 1401. [, Imagem à esquerda, cortesia de Washington University > A history of IT at UW]-

Um aparelho enorme [, um main frame,] que ocupava um espaço enorme numa sala especialmente condicionada para ele. Onde só os especialistas podiam entrar. Era um espaço hermético, quase sagrado, naqueles serviços.

Pressentia-se, quase a medo, que o futuro de tudo passaria pelo informático. Ainda não se ministravam esses conhecimentos nas escolas públicas. Era a própria instituição que desenvolvia internamente esses estudos e os fomentava em acções de formação.

O pessoal que ali trabalhava saíra dos quadros gerais do pessoal interno da Caixa. Por selecção em testes psicotécnicos muito rigorosos e exigentes. Auferiam um escalão de vencimentos superiores aos trabalhadores comuns. Por isso, aquela direcção era muito cobiçada.

Eu entrei,  não para esse quadro especial, mas sim para o corpo de trabalhadores que se dedicava ao residual de tarefas actuariais que ali restaram depois da sua assunção da informática, na mecanização de todos os serviços internos.

Por uma questão de melhoria do vencimento, ainda tentei o ingresso nesse quadro, sabendo bem que aquela matéria me era adversa. Felizmente não consegui. Assim, pude ir avançando no curso de direito a que me abalançara, decididamente.  O tal director de serviço abriu-me todas as possibilidades de o frequentar, sem compensação de horas.

Entretanto, porém, estava já em plena fase de namoro com a ex-madrinha de guerra. A enamoração em que nos envolvemos levou-me a dissipar essas facilidades excepcionais.

Também não me sentia bem integrado no ambiente académico, formado por aquela população de rapaziada novata, saída dos liceus. Eu queria chegar depressa ao fim. Por isso, preferi adoptar o regime de estudante ex-militar. Podia preparar os exames por mim próprio e apresentar-me a exame. Quando entendesse.

A A.T. estava já a acabar o seu curso e iria trabalhar. Caímos ambos num regime de vida em que não tinha a necessária concentração para um bom rendimento. Víamo-nos a toda a hora.

No segundo ano do curso, veio o primeiro chumbo numa cadeira fundamental - Teoria Geral do Direito. Quase esgotei as possibilidades de continuar. Só mudando para Coimbra. A partir daí começaram a chover chumbos em catadupa. Fui subindo a passo de caracol. Com um esforço gigantesco.

II – O Casamento

Entretanto, por outro lado, o decorrer do namoro começou a trazer ao de cima as primeiras dificuldades. Éramos dois indivíduos com uma textura pessoal muito diferente.

O ambiente social em que crescêramos era muito diferente. Eu, fui nascido e criado no norte, - onde impera uma mentalidade muito distante da mentalidade alfacinha – era filho de família pobre e, muito cedo, fiquei sem os progenitores vivos, estudei, dos 12 aos 20 anos, nos seminários. Ela era uma quase filha única dum casal burguês, crescida em Lisboa, em berço de veludo, nunca sentira dificuldades, só as do curso de biologia, em que fora das melhores alunas.

As brigas verbais surgiram e tornaram-se cada vez mais constantes. A ponto de a Mãe dela ter apelidado o café onde costumava encontrar-nos, ali no Jardim da Parada, como o “café das brigas”. Encontrava-nos sempre a discutir.

Muito dificilmente estávamos de acordo. O desenlace esteve decidido, por várias vezes, com muita convulsão pelo meio. Repetiu-se muito daquela mesma fase do Cachil… lá atrás. 
O convívio insistente, porém, que não deixava respirar, não ajudava nada a que fosse tomada uma decisão serena e objectiva.  Era propício a que se avançasse com a cabeça debaixo da areia. Da parte dela, havia uma grande pressa de avançarmos para o casamento.

Quando alcançou o seu primeiro emprego, com a ajuda do padrinho - uma alta figura do governo,  logo a seguir ao terminar do curso – com o bom vencimento que iria auferir, estavam criadas as condições financeiras para que fosse possível o casamento.

A facilidade com que se conseguia uma casa por aluguer, facilitava muito as coisas. A soma dos nossos dois vencimentos chegava, à vontade, para começar.

De novo, sem dar conta, dei por mim, já com a data de casamento, marcada. Seria em Janeiro de 1968, se o processo do registo civil, entretanto iniciado, não revelasse impedimentos.

E, dessa vez, foi de vez. Tivemos um casamento de alto nível. Com fraque e cerimónia. Uma boda de alto nível, servida no “Espelho d’Água”,  frente aos Jerónimos.

Recordo um episódio estranho que aconteceu, no dia do casamento. Horas antes, vinha eu de cortar o cabelo no meu barbeiro habitual, um corte muito bem cuidado para o efeito que era, quando ia a passar diante da igreja onde se iria realizar o casamento, fui abordado, por mera casualidade, penso, por um indivíduo desconhecido. Ainda ia para casa vestir-me de cerimónia.

Não sei sob que pretexto. Não era um andrajoso. Tinha um certo porte. Mais velho do que eu. Tive a intuição nítida de que me iria falar do casamento. Ele parecia adivinhar o novelo de dúvidas que me toldavam a cabeça. Não percebi nem nunca perceberei, como é que ele tomou conhecimento de que eu iria casar-me nessa manhã.

Num tom algo secreto e profético, advertiu-me, quase ao ouvido,… que eu visse muito bem o que iria fazer, onde me ia meter... Fingi desprezo pelo que ouvi, mas no fundo, fiquei embasbacado. Procurei não ligar.

Volta e meia, no futuro, as suas palavras, com muita verosimilhança, me acudiram à memória. Ainda hoje estou para entender o que se passou.

Também no dia anterior, me acontecera algo de estranho. Eu tinha acabado de comprar um carro em 2ª mão. Um Ami 6 [, imagem à direita, cortesia de Fórum Citröen]. Com ele eu fiz a mudança das minhas coisas do quarto alugado, onde vivia, para o apartamento que alugámos na alta de Algés.

Deslocava-me na minha última carga para o apartamento, subindo um troço de rua bastante íngreme e entrecruzado de ruas. Não conhecia ainda muito bem o carro. Era ao fim da tarde.

Eis que do meu lado direito vem uma motorizada com um fulano das obras. Gerou-se ali uma hesitação, de parte a parte. Eu não parei para ele passar, devido à inclinação do piso e porque sentira que o travão de mão não estava nas melhores condições.

Avancei e ele embateu-me no guarda-lamas da frente, do lado direito. Travei o carro com a primeira velocidade engatada para compensar o travão de mão. Sai do carro. Ele avançou para mim furioso. Em jeito de me vir espancar.

Deu tempo para me lembrar de que iria casar no dia seguinte. Por isso, procurei acalmá-lo como pude. Não queria mesmo nada aparecer todo esmurrado à cerimónia.

Fui-o entretendo. Sabia que o meu primo Carlos estava para chegar. Vinha instalar-me, creio que o esquentador.
- Ai, se o Carlos viesse agora!... pensei.

E, por milagre, ele apareceu mesmo, pouco depois, na sua carrinha Renault 4, toda branca. Respirei de alívio. O Carlos era também um peso pesado. Habituado ao duro. Ainda por cima, vinha com um ajudante, ainda mais pesado.

Já éramos três. O Carlos parou a carrinha. Deve ter-se apercebido logo de que havia problema, as coisas estavam complicadas. Apressados, vêm ter comigo e perguntam-me se estou a precisar de ajuda.
- Por acaso, até preciso. – respondi.

O sujeito olhou-nos a todos. Fez os seus cálculos e arrefeceu. Pouco depois, mas ainda a vociferar, pegou na bicicleta e desapareceu.
- Que alívio!...

Respirei fundo. Desta vez, deu mesmo certo.

No dia seguinte, depois do casamento e da boda, quando deixamos toda a gente ainda no festim, para seguirmos para a lua de mel, como costumam fazer os noivos, a A.T. perguntou pelo carro:
- Então e o carro?

Contei-lhe tudo o que se tinha passado. Desatamos a rir à gargalhada.
- Agora, apetece rir, mas ontem, as coisas estiveram muito feias. Ia ser bonito. Se ele me começasse a chegar, eu não me ficava. Estaria aqui com a cara toda esmurrada.
- Não faz mal. Vamos de comboio - adiantou.
- Até calha bem. A minha experiência de condução é pouca e o carro também não oferece muita confiança... e daqui até Viana do Castelo [,foto acima, Pousada de Viana do Castelo, Monte de Santa Luzia, cortesia de Spendia]...
- Óptimo. As coisas não acontecem por acaso - acrescentou -. A prenda dos meus padrinhos dá para tudo. Os bilhetes não custam assim tanto. E uma viagem de comboio até é romântico...
- Tens razão.

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Nota do editor;

(*) Último poste da série > 8 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10012: Cartas do meu avô (7): Quinta carta: O primeiro encontro com... ela, e o meu regresso a casa, em Pedra Maria (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

1 comentário:

Anónimo disse...

Olá Editores! Muito obrigado pelo enriquecimento editorial deste texto...maravilha de fotos...tal e qual. Até parece que andaram por lá...(pelo casamento)