1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2019:
Queridos amigos,
Era compreensível que os acontecimentos da Ilha do Como merecessem amplo destaque na gesta do bardo. Espero que quem ali combateu naquele terrível penar aqui venha exprimir outros pontos de vista, narrar outros episódios, clarificar situações que ficaram no olvido. A história da Unidade do BCAV 490 é parcimoniosa, como se disse, faz-se referência a um anexo, que não encontrei e se algum dos confrades o possuir bom seria que aqui se referenciasse outros episódios que não couberam na poesia nem nos testemunhos. A imaginação de quem acompanha o bardo saltitou para as belezas da natureza, sempre irresistíveis, a despeito das aflições e sofrimento vivido. Repare-se na descrição que Alpoim Calvão faz de uma missa ao ar livre e o maravilhamento do céu e das águas, a par da comoção dos mortos e da emoção dos vivos.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (24)
Beja Santos
“Temos muita companhia
já com pouco pessoal:
coxos, doentes e feridos
vão indo para o hospital.
Há muito tempo passado
e sempre a mesma labuta.
Há quase dois meses que se luta
e ainda há muito malvado
que tem que ser acabado
o bando que cá existia
é uma patifaria,
que dá cabo da rapaziada,
mas isso não lhes vale nada,
temos muita companhia.
Em duas ocasiões
no meio dos terroristas
morreram dois paraquedistas
deram gritos de aflições.
Fizeram muitas operações
dentro daquele matagal,
mas quase sempre se deram mal
devido a tantos bandidos.
Por isso, os pelotões reduzidos
já com menos pessoal.
Um dia Cauane atacaram
foi atingido Joaquim Augusto,
apanhando um grande susto
quando as granadas rebentaram.
No sacristão também acertaram,
dando grandes gemidos.
Com as mãos e dedos perdidos
Quítalo e o sapador doutra vez,
e em pouco mais de um mês
coxos, doentes e feridos.
Dois paraquedistas se perdiam
longe de S. Nicolau,
o caso esteve bem mau
porque entre os bandidos se viam.
Indicados por um avião saíam
sem perderem o moral.
Será isso o principal
no soldado cheio de heroicidade.
E os feridos com gravidade
vão indo para o hospital”.
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O tom pungente que o bardo usa, vamos encontrá-lo em obras do tempo e posteriores. Contemporâneo, temos os relatos de Armor Pires Mota e Alpoim Calvão. Naquele Sul, de 1963 em diante, andaram Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Luís Rosa, José Brás, António Loja, Idálio Reis, entre outros. O sul de Mejo, Guilege, Gadamael, Cacoca, Sangonhá, Gandembel, Cacine, Catió. Páginas de fraternidade, de lástima pelas perdas, de revolta pela construção de aquartelamentos feitos com tanto de sangue, suor e lágrimas e depois abandonados. E mesmo nessa apoteose de sofrimento ou mágoa há a extraordinário revelação do feitiço africano, a descoberta de uma natureza viva.
E aqui lembro Leonel Olhero e o seu livro “Ultrajes na Guerra Colonial – Reminiscências de furriel de cavalaria”.
Primeiro, uma trovoada tropical:
“Uma trovoada, com carácter primitivo e sagrado, apavorou-nos. Receoso, o Sol estremeceu de inquietação e correu a esconder-se. Numa embriaguez de luzes, relâmpagos cintilaram em ziguezagues de fogo, bateram nas trevas e apanharam relâmpagos em resposta. De alto a baixo, raios riscaram rasgando fundo os céus. Irrequietos, os trovões estalaram implacáveis vibrando de tronco em tronco e em cada folha, assustando aves e ribombando pelos caminhos do céu imenso num estampido ensurdecedor, enquanto que o vento, carregado dos cheiros da terra e do odor da selva, bradou com fúria e em rajadas hirtas e tudo impeliu numa maluca confusão”.
Agora o Furriel de Cavalaria embarca num Sintex, vai a Bula buscar salários, assombra-se com a travessia do rio:
“Para lá das desviadas margens, num sussurro, naquele rio largo como uma promessa via-se água que penetrava na brumosa mata de onde, desafiando nos céus altas fasquias, se erguiam crescidas e seculares árvores. Por causa das investidas da nossa artilharia, com olhos cansados de procurar, vi cepos definhados com galhos despidos e rasgados. Braços vegetais abertos que nos desejariam abraçar e onde poisavam centenas de colónias de coloridos periquitos (…) Na tona da água, bandos de periquitos de rabo de junco rasavam, chispavam à nossa passagem e rabiscavam hieróglifos (…) Inumeráveis abutres repugnantes e agoirentos que poisavam nos poleiros altos da sossegada e densa ramagem, alteavam-se impassíveis, estremecendo penosamente as enormes e aborrecidas asas. Alguns, mais tímidos, alavam para o escuro daquele tão intemporal bosque e ali ficavam à espera, de olhos tristes e adiados”.
Mas vamos descer até ao Como e ouvir o que escreveram os biógrafos de “Alpoim Calvão, Honra e Dever”:
“Uma operação tão longa como a Tridente, que decorria há já cerca de mês e meio, sempre com duros combates e em que os estacionamentos temporários eram desconfortáveis e penosos, tinha necessariamente um impacto negativo no estado físico e anímico do pessoal. Mas o esforço compensava. Era notório que a actividade inimiga esmorecia, a resistência era agora fugaz e em nada se comparava já à bravura dos combates travados no início da operação.
O dispositivo inimigo nas ilhas de Caiar, Como e Catunco estava praticamente desmantelado, o prestígio do PAIGC e dos seus chefes abalado, a sua confiança desaparecera, o respeito e temor pelas autoridades portuguesas era evidente.
Tinha entretanto o Tenente Calvão criado um núcleo de guias guinéus que com os seus camaradas metropolitanos partilhavam as mesmas canseiras e os mesmos perigos. Havia, no entanto, dois homens que o seguiam para todo o lado como sombras e aos quais Calvão ficou eternamente grato pela coragem, desinteresse de si próprios e dedicação que sempre revelaram: um do Bombarral, o José António; e outro um Manjaco do Pecixe, o ‘Touré’. Mais tarde, num jornal, Alpoim Calvão recordou um caso ocorrido durante aquela operação e que tão profundamente o marcou:
‘(…) Os sucessos da guerra tinham causado várias baixas na minha Unidade. Pedi ao Capelão Militar que acompanhava as forças em operação para rezar uma missa pela alma dos mortos. Numa manhã, na praia onde estava localizado o estacionamento, preparou-se a realização da cerimónia. Aliás, tudo o mais simplificado possível: o altar era um caixote que servira para transportar rações de combate e o templo, o ar livre, com o mais maravilhoso dos tectos: um céu azul, incomparável.
Mal barbeados, sujos, com as faces vincadas pelo cansaço e pela tensão da luta, os homens foram-se chegando e a missa começou. Juntaram-se-lhes, por serem católicos, alguns dos carregadores negros que acompanhavam as forças. O profundo silêncio era apenas alterado pela voz do celebrante e pelo barulho do mar, que, em pequeninas ondas, se enovelava na praia.
Uns de joelhos, outros em pé, os homens seguiam, ou melhor, viviam o santo sacrifício. Acabrunhados pela morte de alguns camaradas, sentiam a necessidade daquele diálogo com Deus e muitos deles, pela primeira vez, souberam o que era a Missa.
Eu estava de pé, um pouco apertado, duplamente comovido pela lembrança dos mortos e pela emoção dos vivos.
E num deslumbramento, numa autêntica revelação de ecumenismo, vi, sobre a minha direita, alguns guias muçulmanos que olhavam a cena com muita dignidade e compostura e procuravam participar nela, orando também ao mesmo Deus, pelo descanso das almas dos que tinham caído e pela vitória das armas portuguesas’.”
E os autores chegam ao termo do seu relato:
“Decorridos mais de dois meses sobre o início da Operação Tridente, concluiu-se que militarmente nada mais havia a fazer na zona, pelo que foi decidido o regresso de todas as forças em acção, ficando apenas montado um aquartelamento em Cachil, onde foi instalada uma Companhia do Exército com a missão de controlar as margens do rio Cobade, numa posição estratégica muito importante para o reabastecimento de Catió. Sendo de prever que dentro em breve aquele local voltaria a estar sujeito a uma intensificação dos ataques, tornou-se necessário manter ali uma LDP em permanência, de modo a garantir o regular abastecimento do aquartelamento de água, mantimentos e munições. Às 12h00 do dia 22 de março, o DFE8 embarca no ‘Bor’ rumo a Bissau, onde chega na manhã seguinte. Era o fim da Operação Tridente”.
(continua)
O bardo a caminho da Ilha do Como
O bardo e camaradas a caminho da Ilha do Como
O bardo faz leituras na Amura, inspira-se junto da velha peça de artilharia.
Página do jornal do BCAV 490, gentilmente cedida pelo confrade Carlos Silva, um investigador infatigável a quem devo muitas atenções.
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Notas do editor
Poste anterior de 13 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 16 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20150: Notas de leitura (1218): “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)
1 comentário:
Acompanho com muito interesse estes relatos e principalmente os da operação tridente porque participei activamente na operação e felizmente ainda faço parte dos vivos.
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