sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21302: Notas de leitura (1300): “Castelos a Bombordo, Etnografias de Patrimónios Africanos e Memórias Portuguesas”, coordenação de Maria Cardeira da Silva; edição do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, 2013 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
Trata-se de um projeto de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, revisitar rotas que ligam historicamente Portugal a alguns países árabes e islâmicos (Marrocos, Mauritânia), alargando-se depois a outros países africanos (Senegal, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique) investido na análise de memórias, nostalgias e outros recursos patrimoniais.
Creio que para muitos haverá surpresa sobre o que se pode entender como a memória de presença portuguesa nesta região que hoje pertence ao Senegal, foi presença influente e depois diluiu-se, permitindo a intrusão francesa sobretudo a partir dos anos 1830, nesta tão fértil região de comércio.
Muita gente de Ziguinchor sentiu-se atraiçoada pelas negociações luso-francesas, foi um taco a taco diplomático em que Portugal teve a ilusão que ao entregar esta parcela de território ia receber vastas compensações, tudo fantasia.

Um abraço do
Mário


No Casamansa, à procura de memórias portuguesas

Beja Santos

“Castelos a Bombordo, Etnografias de Patrimónios Africanos e Memórias Portuguesas”, coordenação de Maria Cardeira da Silva, edição do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, 2013 é uma publicação associado a um projeto financiado pela Fundação para Ciência e Tecnologia, projeto que visa analisar reconfigurações étnicas e novas figurações identitárias em territórios pisados pelos portugueses e onde confluíram povos africanos das mais diferentes proveniências. É um projeto aliciante onde se fala de Marrocos, até de Marrocos no Brasil, de Portugal nos confins sarianos, do Casamansa, da ilha de Moçambique e até do primeiro cruzeiro de férias de colónias a bordo do paquete Moçambique, em 1935. Francisco Leitão é o autor do texto intitulado Existências e Utilizações Contemporâneas da Casamansa Portuguesa.

O autor começa por nos recordar que desde meados do século XV e início do século XVI, Portugal estabeleceu uma presença comercial na costa ocidental africana, assente no comércio de escravos, baseada na fundação de feitorias. Os portugueses chegaram a Casamansa principalmente interessados no ouro, no marfim e nos escravos. A partir de meados do século XVI, percorriam a área compreendida entre o rio Cacheu e a Gâmbia na senda destes comércios. Em troca dos escravos, nesta época, os portugueses traziam ferro, vinhos, algodão, cavalos, contaria da Índia, entre outros. O manuscrito de Valentim Fernandes não deixa dúvidas quanto ao facto de, 50 anos depois da sua descoberta, o rio Casamansa ser já frequentemente utilizado para o comércio pelos portugueses. Tudo se irá alterar com a evolução do comércio de escravos, com a descoberta e exploração da América que se irá expressar num dos mais famosos sistemas de comércio triangular (Lisboa – Santiago – Bissau ou Cacheu – Maranhão – Lisboa), que veio contribuir para o papel fulcral de Cabo Verde na influência portuguesa na região da Senegâmbia.

Desenvolve-se uma comunidade de lançados em Ziguinchor, em 1621 a povoação tinha 15 casas de comerciantes portugueses, uma igreja, um padre e muitos cristãos locais. Nos anos seguintes, a vila tornar-se-á no principal entreposto de troca no rio entre luso-africanos e bainuncos. Mais tarde, Ziguinchor será classificada como presídio dependente da capitania de Cacheu. Recorde-se que o objetivo destes presídios era proteger a rota vertical de escravos que ligava regiões do interior da atual Gâmbia a Cacheu e Bissau.

Mais observa o autor que a maioria dos dados atualmente disponíveis sobre a história do Casamansa e Ziguinchor saltam de 1645 diretamente para 1846 ou mesmo 1886, quando Ziguinchor é cedida a França. No período intermédio existe pouca ou nenhuma documentação. Sabe-se, no entanto, que gentes de Cabo Verde tinham grande influência sobre a costa Norte-Ocidental africana mas não se sabe como esta presença se coordenava com a presença portuguesa europeia. Em 1623, um holandês em Cacheu dividiu ali o comércio em dois tipos: aquele que era realizado com a metrópole e o que era feito com os que viviam na ilha de Santiago. No século XVII, Cacheu era muito visitada por embarcações provenientes, não só de Cabo Verde, mas também de Sevilha e de Portugal.

Em toda a literatura não existem praticamente referências a Casamansa e Ziguinchor, ou porque não há registos históricos ou porque não foram suficientemente investigados. Paradoxalmente, Casamansa é repetidamente referida como uma zona de influência portuguesa. Também não se ignora que os séculos XVII e XVIII foram um período de enfraquecimento da presença portuguesa. Seja como for, por volta de 1760, cresceu o ascendente luso-africano sobre Ziguinchor e o controlo português-europeu, aos poucos os luso-africanos foram substituindo os portugueses em lugares representativos. Mas no início do século XIX, encontramos Ziguinchor administrativamente órfã, nas mãos de uma burguesia portuguesa de origem cabo-verdiana e com ligações à Guiné. É um tempo em que o cargo de capitão passava de pai para filho, uma espécie de domínio dinástico que diz bem do abandono a que estava votada esta remota extensão do império português. Economicamente, a vila vivia de um comércio de pouca envergadura e à margem dos fluxos internacionais de troca.

Em sentido inverso à remota presença portuguesa, os franceses entram em cena nos anos 30 do século XIX, compram terrenos no rio e em 1838 principiam os trabalhos para se instalarem definitivamente em Sédhiou (em português Sedjo). Recrudescem os conflitos na região, acirram-se as disputadas de soberania que implicaram repetidas trocas de bandeiras, multas, alguns encerramentos e represálias sobre as populações. Os franceses, a partir de Goré, começam a insistir na anexação de Ziguinchor, movidos pela sua localização geográfica associada a motivações comerciais. Isto passa-se ao tempo em que não estão delimitadas as fronteiras entre o Senegal e a Guiné Portuguesa. Com a Convenção Luso-Francesa de 12 de Maio de 1886, Portugal cede oficialmente Ziguinchor e a região do Casamansa, recebe em troca o rio Cacine e direitos de pesca na Terra Nova. Em 1901, a população mestiça, cabo-verdiana e bainunco-descendente, com conexões a Bissau e falante de crioulo é relocalizada num bairro novo, periférico. É aqui que vão ficar os sinais da presença portuguesa. Para o autor distinguem-se, com segurança, quatro vetores da influência portuguesa no Casamansa: a situação geográfica e a proximidade com a antiga Guiné Portuguesa, os permanentes intercâmbios com Cacheu; os lançados, juntamente com os explorados e os comerciantes, funcionaram como agentes de disseminação de uma cultura portuguesa proveniente da metrópole: a população cabo-verdiana manteve um contacto próximo e regular com o continente e provavelmente com o Casamansa; por fim, os fenómenos de reprodução e evolução local, caso da língua e religião. Escreve o autor: “Esta reprodução foi mais acentuada em Ziguinchor e, pelo que apurei no terreno, a Leste desta vila, na região das atuais aldeias de Sindone e Adeane”.

A presença colonial francesa procurou passar uma esponja sobre o passado português. Mas qual é a realidade que o estudioso observou? Ele escreve: “Hoje, em Ziguinchor, reside uma população espacialmente concentrada que mistura influências bainunco e cristã que continua a utilizar o crioulo como língua principal de comunicação. O crioulo é falado por uma grande parte da população idosa de algumas zonas de Casamansa e o fluxo constante de migrantes da Guiné-Bissau contribui permanentemente para o reativar (…) A presença portuguesa relaciona-se intimamente com a história da etnia bainunco. Os bainuncos são a população autóctone e foram, em tempos, a etnia dominante de Casamansa. Tornaram-se virtualmente extintos, já que foram absorvidos ou conquistados por outros grupos”.

A memória portuguesa paira sobre o fenómeno separatista na região. Ainda é comum o uso da alegação que Casamansa não é francesa (e, logo, senegalesa) mas sim portuguesa (e logo, independente ou ligada, de alguma forma, à Guiné-Bissau). Trata-se de um discurso que predomina em jovens intelectuais independentistas muçulmanos de etnia diola.

Para o auto onde a existência portuguesa é mais evidente é nos edifícios e também a referência, muito frequente, de que foram os portugueses que colonizaram a ilha de Carabane, uma aldeia histórica que simboliza, talvez mais que qualquer outra, a presença colonial francesa em Casamansa, já que foi capital desta sub-região administrativa da África ocidental francesa. Há uma outra via de ligação ao passado português, a qual possui uma conotação que não poderia ser mais negativa: Ziguinchor, nas palavras de quase todos os casamansenses, é um nome que tem origem no português “cheguei e chorei” – a reação emocional à função esclavagista da vila (Ziguinchor foi um presídio esclavagista português) – que, por corrupção fonética, teria formado o nome da cidade. Outra observação do autor é que há inúmeros lugares na região onde alguém pode passar por nós e nos cumprimentar com um “bom dia” foneticamente tão português como se estivéssemos em Alfama.

A finalizar o seu trabalho o autor discreteia sobre o papel da memória e como a história não destruiu certos mecanismos coletivos, plurais e individualizados. Casamansa revela-se uma sociedade de memória, as utilizações do passado português por ali pululam, e ninguém sabe qual o seu destino. E deixa-nos uma frase sibilina: o remexer e vasculhar positivista e historiográfico do passado é o privilégio de um presente que não se agita facilmente. Para meditar.


A capa e contracapa deste livro é um verdadeiro achado, trata-se do tabuleiro do jogo “Cruzeiro ao Mundo Português”, da Majora, um género de jogo da Glória com as parcelas do império, começando pela viagem até à Índia e acabando na Torre de Belém. A Guiné era simbolizada pela fortaleza de Cacheu.

Ziguinchor
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21289: Notas de leitura (1299): “Capitães do Fim… Uma radiografia estatística”, por António Inácio Correia Nogueira; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)

3 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Interessante este trabalho sobre uma zona da expansão que não se tem explorado e conhecido.
Parece-me que a Guiné vem "por arrastamento", mas, de qualquer modo, é uma abordagem científica e a considerar no nosso banco de dados.

Um Ab.
António J. P. Costa

António J. P. Costa disse...

PS: Vejam a semelhança entre Zinguichor actual(?) e o Bissau Velho do nosso tempo.
A foto não está datada, mas...
Um Ab.
António Costa

João Fernandes disse...

Trabalho muito interessante. Gostei. Obrigado.
Um abraço,
JS