Foto do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil op esp (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
Foto (e legepnda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
O silêncio do rio Xaianga
por Luís Graça
− Não sou assim tão otimista e utópico como o vosso Amílcar Cabral... Aliás gostava de reconhecer esse "homem novo" guineense, que foi prometido nas Colinas do Boé − respondeste tu, com afabilidade e sem ironia, ao teu interlocutor, um antigo comissário político do PAIGC, da última geração dos "combatentes da liberdade da pátria".
O comissário político era, explicou-te ele, o padre ou o pastor, conduzindo um rebanho de crentes sobre o qual tem o poder de punir e perdoar. Retiveste essa metáfora sem, todavia, lhe pedir para exemplificar. Mas tencionavas mais tarde perguntar-lhe o que é que o comissário político fazia nas FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo).
Achaste piada ele ter-te dito, com candura, que agora era um "ex-tudo"...
− Ex-tudo ?...
− Sim, ex-combatente da liberdade da pátria, ex-comissário político, ex-militante do PAIGC, ex-católico, ex-marido...
Só não era ex-pai, porque continuava a amar muito os seus filhos, e não eram poucos, de várias relações...
E estavas tu ali, na terra dele, agora "libertada" (uma metáfora: livre das "velhas algemas do colonialismo", rapidamente substituídas por outras, de outros "ismos"...).
Estavas tu ali, não como um "antigo inimigo" nem como um "simples turista" ou "estúpido em férias" mas como... um "amigo" do "povo guineense"...Mesmo que amigo e povo fossem conceitos nem sempre fáceis de definir ou entender.
Aproveitavas também a ocasião para "fazer as pazes" com o passado. Antes de mais, contigo próprio, que foras "obrigado a comprar a guerra que te quiseram vender"... Como não eras livre, nem mercenário, não pudeste negociar nada, muito menos o preço.
Eras "amigo da Guiné, agora Guiné-Bissau", mas não confundias o "povo" com a sua "elite dirigente", que começou por ser, em 1974, os "novos senhores da guerra". Tinhas relutância, por exemplo, em apertar as mãos de alguns daqueles homens, novos e antigos senhores da guerra, como o 'Nino' Vieira, que regressava ao poder depois de uma sangrenta guerra civil (a de 1998/99) e de um exílio mais ou menos dourado. E alguns ainda mais sinistros como o Quemo Mané, o Mamadu Injai, o Inocêncio Cani e outros de "segunda linha", que já tinham ido parar aos quintos do "inferno dos combatentes"...
Acabarias por o conhecer pessoalmente, ao 'Nino' Vieira, uns dias depois, numa receção no "palácio presidencial"... Para todos os efeitos, era uma figura institucional, o presidente da república, eleito. Um ano depois, em 2009, era miseravelmente morto. E rapidamente esquecido.
Estranho país aquele onde facilmente se passava de herói a vilão. Nada, de resto, que tu não soubesses já, a começar pelo teu país, e a sua história recente.
Ainda tinhas dificuldade em definir o teu estatuto naquela terra a que chamavas "verde-rubra", não obstante a ambivalência das cores que eram também as cores da bandeira dos "tugas", lembrava-te o Tó Brandão, com quem começaste a simpatizar por ser um tipo "porreiro, bonacheirão". Falava-te do passado, sem azedume, embora às vezes com uma pontinha de ironia.
Não achaste a terra assim tão "verde-rubra" como há quarenta anos atrás. Nessa altura, quando desembarcaste de um velho cargueiro colonial, já era a época das chuvas. E o capim começava a crescer como os velhos campos de trigo da tua terra. Nunca gostaste da Guiné no tempo seco, tempo das queimadas e das grandes operações militares, tempo da sede e da insolação, tempo da desidratação e da exaustão, física e emocional...
Voltavas lá, quarenta anos depois, em março de 2008. Havia no ar uma aridez de deserto. O Saara ali tão longe e tão perto. Há terras que ficam na memória das nossas geografias emocionais, pelos cheiros, os sabores, as cores...
− A guerra já acabou para ti há muito − comentou o teu convidado, em tom de brincadeira.
Ele falava corretamente o português. E gabava-se de ter andado no liceu Honório Barreto, "ainda seu antepassado remoto pelo lado materno".
− E para ti, não, a guerra ainda não acabou ?! − interpelaste-o, mas respeitaste o seu silêncio algo embaraçoso.
Quem era esse teu cicerone, que se oferecera para mostrar as velhas ruas e casas de estilo colonial, poeirentas e esburacadas, de "Bissau Bedju", cujo traçado em linhas paralelas e perpendiculares, ainda retinhas, se bem que vagamente, na memória ?
O António Brandão ("Tó para os amigos") tinha-te sido apresentado por um amigo comum, português, ligado à cooperação, conhecido ativista contra a guerra colonial, e incondicional admirador do Amílcar Cabral, embora agora mais crítico em relação aos seus "fracos herdeiros"...
A sua obsessão, em Bissau, era encontrar um "mãos limpas", isto é, um dirigente que não estivesse direta ou indiretamente ligado ao "narcotráfico". A sua deceção ia aumentando por aqueles dias, à medida que as suas "fontes secretas" iam confirmando as suas "suspeitas":
− Eh!, pá, até o fulano tal..., imagina!...
Tu e ele eram participantes do Simpósio Internacional de Guileje, que se realizava em Bissau, com uma visita de fim de semana ao "mítico Cantanhez". Estava-se em março de 2008. A iniciativa não era partidária, nascera da sociedade civil e propunha-se também juntar os antigos combatentes de um lado e do outro.
O Tó Brandão era não um "típico guineense". Para já, provinha da uma família cristã, mestiça, de Bafatá.
− Grumete do Geba!− esclareceu ele.
Tal como o Amílcar, que também não era um "típico guineense".
− Mais branco do que muito branco.
Era um "mundo crioulo" que te intrigava e fascinava ao mesmo tempo, aquela mistura de cores, sabores, línguas, saberes, fenótipos, florestas, tarrafos, rios, braços de mar....mas também ódios e amores.
Tinhas dificuldade em perceber (e penetrar em) aquele sistema de relações de parentesco e de poder, em que os machos e os "mais velhos" dominavam, e as próprias religiões monoteístas e proselitistas, o cristianismo e o islamismo, não se davam mal com a idiossincrasia animista...
O "tasco" era de um antigo soldado da manutenção militar. A esposa, cabo-verdiana, era cozinheira de mão cheia. O seu pitche-patche era talvez o melhor da cidade, garantia-te o Tó, que era um bom garfo e um melhor copo.
À segunda "super", o Tó Brandão já estava a tratar-te por ermon. Sem constrangimento da tua parte. O tratamento por tu não o vias como um velho tique do autoritarismo colonial, mas como uma forma de facilitar a comunicação entre dois antigos combatentes, para mais lusófonos. E sem qualquer veleidade paternalista, do teu lado, mesmo sendo tu mais velho que ele uma boa meia dúzia de anos!
Percebeste (pelo que ele deu a entender durante o almoço) que gostava de poder mandar estudar um dos seus filhos em Portugal.
− Em medicina!
Nunca tinha conseguido sequer uma bolsa de estudo para o estrangeiro.
Disseste-lhe que na altura não estava fácil entrar nas faculdades de medicina, cujas notas eram escandalosamente altíssimas... E que havia poucas vagas para os PALOP... E, a título de consolo, alertaste-o para o risco de "perder o filho": os médicos não voltavam â Guiné, ou seja, à procedência, para vir trabalhar em "condições heróicas", isto é, miseráveis... Conhecias muitos casos.
Era crítico do regime do 'Nino' Vieira, então no poder.
− Matou o Cabral pela segunda vez!
Segundo apuraste da longa conversa desse dia, que se prolongou pela tarde dentro, o Tó já era guerrilheiro no início dos anos 70.
− Na frente do Xitole. Em 1972, ia fazer 19 anos.
− Por um triz (ou melhor, talvez por um ano de diferença), não nos cruzámos nos matos do Xime e do Xitole! Tu de Kalash, eu de G3 em punho.
Andara pela "barraca" da Mina / Fiofioli, já em 1972... Depois da morte de Mário Mendes, em meados desse ano, o PAIGC concentrou a maior parte das suas forças na Zona Oeste, no Norte, para atacar Guidaje, como manobra de diversão. E no Sul, para cercar e "aniquilar" Guileje...
− E isso da JAAC, a Juventude Africana Amílcar Cabral, foi a sério ? − perguntaste tu.
O comissário político era, explicou-te ele, o padre ou o pastor, conduzindo um rebanho de crentes sobre o qual tem o poder de punir e perdoar. Retiveste essa metáfora sem, todavia, lhe pedir para exemplificar. Mas tencionavas mais tarde perguntar-lhe o que é que o comissário político fazia nas FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo).
Achaste piada ele ter-te dito, com candura, que agora era um "ex-tudo"...
− Ex-tudo ?...
− Sim, ex-combatente da liberdade da pátria, ex-comissário político, ex-militante do PAIGC, ex-católico, ex-marido...
Só não era ex-pai, porque continuava a amar muito os seus filhos, e não eram poucos, de várias relações...
E estavas tu ali, na terra dele, agora "libertada" (uma metáfora: livre das "velhas algemas do colonialismo", rapidamente substituídas por outras, de outros "ismos"...).
Estavas tu ali, não como um "antigo inimigo" nem como um "simples turista" ou "estúpido em férias" mas como... um "amigo" do "povo guineense"...Mesmo que amigo e povo fossem conceitos nem sempre fáceis de definir ou entender.
Aproveitavas também a ocasião para "fazer as pazes" com o passado. Antes de mais, contigo próprio, que foras "obrigado a comprar a guerra que te quiseram vender"... Como não eras livre, nem mercenário, não pudeste negociar nada, muito menos o preço.
Eras "amigo da Guiné, agora Guiné-Bissau", mas não confundias o "povo" com a sua "elite dirigente", que começou por ser, em 1974, os "novos senhores da guerra". Tinhas relutância, por exemplo, em apertar as mãos de alguns daqueles homens, novos e antigos senhores da guerra, como o 'Nino' Vieira, que regressava ao poder depois de uma sangrenta guerra civil (a de 1998/99) e de um exílio mais ou menos dourado. E alguns ainda mais sinistros como o Quemo Mané, o Mamadu Injai, o Inocêncio Cani e outros de "segunda linha", que já tinham ido parar aos quintos do "inferno dos combatentes"...
Acabarias por o conhecer pessoalmente, ao 'Nino' Vieira, uns dias depois, numa receção no "palácio presidencial"... Para todos os efeitos, era uma figura institucional, o presidente da república, eleito. Um ano depois, em 2009, era miseravelmente morto. E rapidamente esquecido.
Estranho país aquele onde facilmente se passava de herói a vilão. Nada, de resto, que tu não soubesses já, a começar pelo teu país, e a sua história recente.
Ainda tinhas dificuldade em definir o teu estatuto naquela terra a que chamavas "verde-rubra", não obstante a ambivalência das cores que eram também as cores da bandeira dos "tugas", lembrava-te o Tó Brandão, com quem começaste a simpatizar por ser um tipo "porreiro, bonacheirão". Falava-te do passado, sem azedume, embora às vezes com uma pontinha de ironia.
Não achaste a terra assim tão "verde-rubra" como há quarenta anos atrás. Nessa altura, quando desembarcaste de um velho cargueiro colonial, já era a época das chuvas. E o capim começava a crescer como os velhos campos de trigo da tua terra. Nunca gostaste da Guiné no tempo seco, tempo das queimadas e das grandes operações militares, tempo da sede e da insolação, tempo da desidratação e da exaustão, física e emocional...
Voltavas lá, quarenta anos depois, em março de 2008. Havia no ar uma aridez de deserto. O Saara ali tão longe e tão perto. Há terras que ficam na memória das nossas geografias emocionais, pelos cheiros, os sabores, as cores...
− A guerra já acabou para ti há muito − comentou o teu convidado, em tom de brincadeira.
Ele falava corretamente o português. E gabava-se de ter andado no liceu Honório Barreto, "ainda seu antepassado remoto pelo lado materno".
− E para ti, não, a guerra ainda não acabou ?! − interpelaste-o, mas respeitaste o seu silêncio algo embaraçoso.
Quem era esse teu cicerone, que se oferecera para mostrar as velhas ruas e casas de estilo colonial, poeirentas e esburacadas, de "Bissau Bedju", cujo traçado em linhas paralelas e perpendiculares, ainda retinhas, se bem que vagamente, na memória ?
O António Brandão ("Tó para os amigos") tinha-te sido apresentado por um amigo comum, português, ligado à cooperação, conhecido ativista contra a guerra colonial, e incondicional admirador do Amílcar Cabral, embora agora mais crítico em relação aos seus "fracos herdeiros"...
A sua obsessão, em Bissau, era encontrar um "mãos limpas", isto é, um dirigente que não estivesse direta ou indiretamente ligado ao "narcotráfico". A sua deceção ia aumentando por aqueles dias, à medida que as suas "fontes secretas" iam confirmando as suas "suspeitas":
− Eh!, pá, até o fulano tal..., imagina!...
Tu e ele eram participantes do Simpósio Internacional de Guileje, que se realizava em Bissau, com uma visita de fim de semana ao "mítico Cantanhez". Estava-se em março de 2008. A iniciativa não era partidária, nascera da sociedade civil e propunha-se também juntar os antigos combatentes de um lado e do outro.
O Tó Brandão era não um "típico guineense". Para já, provinha da uma família cristã, mestiça, de Bafatá.
− Grumete do Geba!− esclareceu ele.
Tal como o Amílcar, que também não era um "típico guineense".
− Mais branco do que muito branco.
Era um "mundo crioulo" que te intrigava e fascinava ao mesmo tempo, aquela mistura de cores, sabores, línguas, saberes, fenótipos, florestas, tarrafos, rios, braços de mar....mas também ódios e amores.
Tinhas dificuldade em perceber (e penetrar em) aquele sistema de relações de parentesco e de poder, em que os machos e os "mais velhos" dominavam, e as próprias religiões monoteístas e proselitistas, o cristianismo e o islamismo, não se davam mal com a idiossincrasia animista...
Não sem surpresa, deste conta que o Tó era profundamente supersticioso e ainda usava os amuletos do tempo da guerrilha.
Por delicadeza (ou receio de melindre) não lhe quiseste fazer perguntas sobre as origens da família, embora a tua curiosidade fosse muita. Acabou por ser ele a falar-te dos seus antepassados. Tinha um bisavô algarvio, de Portimão ou Faro, não sabia ao certo... Contar-te-ia ele, já para o final da refeição.
Depois de um emocionalmente penoso, para ti, "passeio turístico" até à marginal e à zona portuária, descendo a antiga e tua conhecida avenida da República (avenida Amílcar Cabral, depois de 1975), nada como um almoço de pitche-patche (caldo de ostras) e de frango de chabéu, bem regado com umas "superbocks"...
Por delicadeza (ou receio de melindre) não lhe quiseste fazer perguntas sobre as origens da família, embora a tua curiosidade fosse muita. Acabou por ser ele a falar-te dos seus antepassados. Tinha um bisavô algarvio, de Portimão ou Faro, não sabia ao certo... Contar-te-ia ele, já para o final da refeição.
Depois de um emocionalmente penoso, para ti, "passeio turístico" até à marginal e à zona portuária, descendo a antiga e tua conhecida avenida da República (avenida Amílcar Cabral, depois de 1975), nada como um almoço de pitche-patche (caldo de ostras) e de frango de chabéu, bem regado com umas "superbocks"...
O "tasco" era de um antigo soldado da manutenção militar. A esposa, cabo-verdiana, era cozinheira de mão cheia. O seu pitche-patche era talvez o melhor da cidade, garantia-te o Tó, que era um bom garfo e um melhor copo.
À segunda "super", o Tó Brandão já estava a tratar-te por ermon. Sem constrangimento da tua parte. O tratamento por tu não o vias como um velho tique do autoritarismo colonial, mas como uma forma de facilitar a comunicação entre dois antigos combatentes, para mais lusófonos. E sem qualquer veleidade paternalista, do teu lado, mesmo sendo tu mais velho que ele uma boa meia dúzia de anos!
Percebeste (pelo que ele deu a entender durante o almoço) que gostava de poder mandar estudar um dos seus filhos em Portugal.
− Em medicina!
Nunca tinha conseguido sequer uma bolsa de estudo para o estrangeiro.
Disseste-lhe que na altura não estava fácil entrar nas faculdades de medicina, cujas notas eram escandalosamente altíssimas... E que havia poucas vagas para os PALOP... E, a título de consolo, alertaste-o para o risco de "perder o filho": os médicos não voltavam â Guiné, ou seja, à procedência, para vir trabalhar em "condições heróicas", isto é, miseráveis... Conhecias muitos casos.
Era crítico do regime do 'Nino' Vieira, então no poder.
− Matou o Cabral pela segunda vez!
Segundo apuraste da longa conversa desse dia, que se prolongou pela tarde dentro, o Tó já era guerrilheiro no início dos anos 70.
− Na frente do Xitole. Em 1972, ia fazer 19 anos.
− Por um triz (ou melhor, talvez por um ano de diferença), não nos cruzámos nos matos do Xime e do Xitole! Tu de Kalash, eu de G3 em punho.
Andara pela "barraca" da Mina / Fiofioli, já em 1972... Depois da morte de Mário Mendes, em meados desse ano, o PAIGC concentrou a maior parte das suas forças na Zona Oeste, no Norte, para atacar Guidaje, como manobra de diversão. E no Sul, para cercar e "aniquilar" Guileje...
− Havia a crença de que se Guileje caísse, a guerra estava ganha... Disse-o Cabral, antes de morrer...
As "áreas libertadas" da bacia hidrográfica do Corubal ficaram vulneráveis, à mercê dos "raides punitivos" da tropa portuguesa...O PAIGC ficou desfalcado e os "tugas" voltam a entrar na mata do Fiofioli, três anos depois da Op Lança Afiada. O Tó fora entretanto para a barraca de Hermancono, no Senegal. Nunca mais voltou ao Leste.
− Turra, foi o que eu fui... Turra, como vocês diziam...
− Turra dum cabrão!... E insultávamo-nos uns aos outros, na mata, quando nos encontrávamo-nos, aos tiros.
− Turra dum cabrão!... E insultávamo-nos uns aos outros, na mata, quando nos encontrávamo-nos, aos tiros.
− E falávamos a mesma língua!
− Estranho, diria um observador estrangeiro, que nos estivesse a espreitar por detrás de um bissilão!
− E, afinal, éramos todos do mesmo clube, uns do Benfica, o maior da época, mas também do Sporting, um ou outro do Belenenses, e até do Porto .
− Do Belenenses ?!
− Sim, por causa do Matateu!
− Ah!, o Matateu, mas esse já não era do nosso tempo... Não estarás a confundir com o Eusébio ?
Afinal, tu é que não estavas a dar conta da importância do futebol na génese e desenvolvimento da luta pela independência...
− Tivemos vários futebolistas na luta, do Lino Correia ao Bobo Queita.. E o próprio Amílcar Cabral, dizem que chegou a prestar provas no Benfica. Sabias ?
− A sério ?!...Não se pode ignorar a bola... Ainda vi hoje uns quantos djubis, á saída do hotel, com a camisola do Ronaldo!...
− E então diz-me lá porque razão andámos a guerrear este tempo todo ?
− Tó, o homem grande de Lisboa, primeiro o Salazar, e depois o Caetano, não se entenderam com o Cabral... Foi pena.
− Talvez o Spínola tivesse conseguido, se o Cabral não tivesse sido morto.
Contrariamente à maioria dos combatentes, militantes e simpatizantes do PAIGc , o Tó não atribuía a morte de Cabral ao Spínola nem aos "tugas".
Julgavas que ele não disse isso só para te agradar ... Veladamente, o Tó deu-te a entender que o 'Nino' Vieira, o primo Osvaldo Vieira e o Sékou Touré teriam as "mãos sujas de sangue". Mas o 'Nino' ainda estava vivo e não longe do restaurante, pelo que o Tó não queria aprofundar o assunto que o incomodava... Deduziste o que ele te queria dizer: sabiam do complô, nada fizeram para o neutralizar e provavelmente também eram cúmplices...
Não resististe a querer saber algo mais sobre a infância e a adolescência do Tó, depois de, conversa puxa conversa, de terem chegado à conclusão de que tinham andado ambos pelos mesmos sítios, embora em anos diferentes.
Mandaste vir mais cerveja para destaramelar a língua...
− Como é que chegaste afinal a comissário político, um cargo mais importante do que comandante de bigrupo ? − quiseste tu saber...
Ele preferia falar da origem da família... Sobre o bisavô, desterrado para Cabo Verde, ele disse-te que sabia pouco, ou o que a mãe lhe contara, ainda em pequeno, quando sonhou que ele "ainda viria a ser seria padre e talvez até bispo"...
Era cabo-verdiana e muito devota a Nossa Senhora de Fátima.
− Uma santa pelo que aturou ao meu pai... E, claro, como boa africana, também consultou os búzios...
O Tó nunca tinha estado em Portugal mas sabia muitas coisas da história e da geografia, do tempo da escola, sobre a terra do bisavô, "o Algarve, que fora dos mouros", isto é, "dos africanos"...
A senhora, Nha Luana, tinha medo de morrer ainda nova e de levar para o outro mundo os segredos da história da família do lado paterno. Achava que tinha obrigação de transmitir essas memórias aos filhos mais letrados, que eram também os mais novos... Ela e o Tó eram muito chegados, para não dizer cúmplices...
Assim, o Tó sabia que o bisavô (de que já não se lembrava o nome, nem nunca vira nenhuma foto) fora deportado para a ilha do Fogo. Alegadamente por se ter amotinado no navio de guerra a cuja guarnição pertencia. Teria chegado a Cabo Verde por volta de 1895, "no tempo dos reis".
O Tó não sabia explicar o que se passara a bordo, a memória da família não chegava a tanto pormenor, mas parece que o marinheiro-fogueiro já tinha nessa época "ideias republicanas". À melhor oportunidade teria fugido da ilha onde lhe fora fixada residência. Numa leva de contratados para São Tomé, para as roças de cacau, acabou por seguir a bordo num vapor que fazia escala em Bolama (capital da Guiné a partir de 1879, acrescentaste tu).
Não ia de todo clandestino, terá beneficiado da cumplicidade de um conterrâneo (ou antigo camarada da marinha de guerra) que o escondeu num beliche. A viagem, de resto, não era longe.
Com a falta de "colonos brancos", não foi difícil arranjar trabalho na loja de um antigo deportado, ali estabelecido como comerciante e que também tinha uma ponta na extremidade sul da ilha.
Nos primeiros tempos ficou afastado da vila de Bolama (só cidade a partir de 1913), à frente de destilaria de aguardente de cana. Os seus conhecimentos de fogueiro da marinha foram-lhe úteis.
Acabou por casar com uma bijagó de Bubaque educada nas missões católicas. A mulher grande deu-lhe um bando de filhos, fora os que arranjou noutras moranças e camas. Parece que mais tarde dedicou-se à marinhagem num barco a vapor que fazia a cabotagem entre Bissau, Bolama e Bubaque. Acabou por trazer a família para Bissau e depois para o presídio do Geba.
O avô do Brandão vamos encontrá-lo a combater ao lado do capitão Teixeira Pinto, do tenente Sousa Guerra e do Abdul Injai, comandante das tropas irregulares, na campanha contra os papéis e os grumetes da ilha de Bissau, em meados de 1915.
− Esse avô terá salvo a vida do capitão-diabo, quando este foi ferido. Contou-me a minha mãe, que ainda não era nascida.
Louvado por feitos em combate, acabou por seguir a carreira militar e chegar ao posto de sargento, no final da I Grande Guerra.
O pai do Brandão, por sua vez, foi soldado em Bolama, numa companhia de caçadores indígenas no início dos anos 40. Terá estado em Angola (ou Macau, já não podes precisar de memória), durante a II Guerra Mundial, como expedicionário. Esteve tentado a lá ficar mas as saudades da família (já era casado, e com filhos) eram muitas.
Quando voltou, foi trabalhar para a Casa Gouveia, em Bafatá, vilória que, graças ao florescente comércio da mancarra, já há muito havia suplantado a decadente Geba e todas as demais terra do Leste.
− Nasci em Bafatá, onde é hoje o bairro da Rocha...
E é aqui, por volta de 1953, que começa a história de vida do Tó Brandão...
− Brandão ?!...
− Sim, apelido do meu padrinho de batismo: era ponteiro em Bambadinca e parente da minha mãe, cabo-verdiana. Era um colono respeitado, nacionalista, cuja casa o Amílcar Cabral frequentava nos anos em que trabalhou na Guiné como engenheiro agrónomo.
− E a esposa do Cabral, que era branca, chegou a pegar-me ao colo, disse-me a minha mãe.
Toda a gente se conhecia na Guiné nos anos 50. E a mãe do Tó tinha sido sido empregada da família Brandão. Também ela educada nas missões católicas, em Bambadinca.
Foi graças aos missionários católicos, italianos, de Bafatá, que o Tó conseguiu fazer mais do que a 4ª classe.
− Mandaram-me para o liceu de Bissau. Não havia mais nenhum.
Era um rapaz inteligente, vivaço mas humilde. Devem ter pensado que daria um bom padre. Feito o quinto ano (e ainda antes do sétimo) , tencionavam mandá-lo para Roma, para aprender latim e grego aprofundar a filosofia e iniciar a teologia.
− Estava entusiasmado... Ia conhecer o Papa! E, claro, as belas romanas...
Os pais (e sobretudo a mãe) viram com bons olhos esta benção do céu. Tinha os irmãos mais velhos em Bissau, não seria difícil a adaptação.
Mas Deus põe e o homem dispõe...
***
Explicou-te que inicialmente fora uma "brincadeira de putos" mas depois levada longe demais até ao ponto de não-retorno.
Andar na Mocidade Portuguesa era uma "seca", o que ele queria eram as farras, as "mininas", os bailaricos com os gira-discos (uma novidade e um luxo nessa época), na casa uns dos outros, os mais abastados, e sobretudo longe do olhar dos professores e dos "nossos mais velhos"...
Em 1968, tinha o Brandão quinze anos e completava, com sucesso, o quinto ano. O Amílcar Cabral gozava de muito prestígio, "a nível internacional e até nacional".
− Tinha derrotado o Schulz!
Ele pronunciava "Schultz". E a resposta, como já ouviras a outros guineenses, é que este governador e comandante dos "tugas" não era português mas "alemão" (sic).
− A prova é que o Spínola veio tomar conta do lugar dele. O Salazar tinha pressa em acabar a guerra...
− Pressa ? − comentaste tu. − Ele achava que ainda iria a tempo de ver a História e os Aliados do Ocidente dar-lhe razão!
A libertação dos "tarrafalistas", entre eles o histórico Rafael Barbosa, muito popular em Bissau, gerou um clima de euforia (mas também de desconforto e desconfiança) entre militantes e simpatizantes do PAIGC.
Continuou a haver infiltrações da PIDE nas células estudantis e nos bairros populares de Bissau. Alguns venderam-se por um "prato de bianda", garantiu-te o Brandão.
Claro que às tantas o Tó começou a faltar às aulas e a comprometer-se com alguns rapazes e raparigas que, viria mais tarde a saber, pertenciam à célula clandestina da JAAC no liceu.
Por influência do grupo, nas horas vagas já estava a distribuir papéis e a participar em reuniões , mais ou menos clandestinas, em se que falava dos problemas estudantis e dos progressos da luta do PAIGC...
Começaram a catalogá-lo como "simpatizante" e às tantas já tinha, sem saber como nem porquê, a "chapa do Partido"... De repente, deu-se conta de que não estava nada interessado em pegar numa Kalash e ir para o mato combater a tropa dos "tugas" onde tinha amigos, sobretudo guineenses e cabo-verdianos (!).
É verdade que, naquele tempo, não tinha inimigos, só não gostava dos fulas que eram cipaios da administração do Guerra Ribeiro, e que serviam para dar porrada ao pessoal que entrava em Bafatá descalço!... Mas isso não era razão bastante para andarem a matar-se uns aos outros... Tinha, de resto, amigos de várias etnias na escola primária.
Alguns colegas do liceu começaram, entretanto, a ser chamados para a tropa. O medo instalou-se. Um ou outro mais afoito acabou por ir parar a Dacar e juntar-se ao PAIGC.
Em 1969 as coisas começaram a dar para o torto. Uma das "mininas" do grupo, aluna do liceu, foi detida pela PIDE... E deu à língua. Houve prisões. O Tó teve que "passar à clandestinidade".
Nota do editor:
Último poste da série > 24 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26307: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (36): uma guerra que também era... ototóxica!
A mãe e os irmãos mais velhos e os missionários católicos do PIME tinham em Bissau os seus "espiões"de modo a não deixar o Tó "pôr o pé em ramo verde".
Não chegou a fazer o 7º ano. Começou a fazer "trabalho político" com uma miúda que depois viria, mais tarde, a ser a mãe dos seus dois primeiros filhos. Viviam no Cupelon de Baixo, paredes meias com o quartel-geral, em Santa Luzia.
O controleiro da célula do bairro cedo se apercebeu de quão valioso e promissor era o "miúdo". Foi o próprio Amílcar Cabral quem fez questão, depois de saber da sua história, em recebê-lo em Conacri. E foi ele quem o entrevistou para pôr a prova as qualidades do novo membro do Partido, antes de o mandar para Cuba, mesmo sem o "batismo de fogo"...
− Tinha lá os balantas, os homens do mato, para matar e morrer − comentaste tu com indisfarçável ironia.
Instintivamente o Amílcar Cabral − disseste tu para os teus botões − procurava poupar os melhores dos seus futuros quadros.
Foi para Cuba sem deixar rasto, sem se despedir da mãe e dos irmãos. Ela nunca lhe perdoou, até quase à hora da morte. Apesar de conhecer o Amílcar, que tinha ascendência cabo-verdiana, e era mais novo quatro anos, ela não gostava dele. Estava convencida, mesmo sem fundamento, de que tinham sido "eles", os tipos do PAIGC, que haviam raptado e morto o marido na fronteira do Senegal, ainda antes do início da guerra.
***
− E Cuba ?
− Bem, na altura, eu ia de olhos tapados, comprei tudo o que me quiseram vender. E também acreditei piamente na sinceridade dos internacionalistas cubanos... Vim depois a saber que, muitos deles, coitados, faziam pela vida, como eu... A guerra era um modo de vida.
Não quis falar muito mais, do tempo da luta. Participou na Op Amilcar Cabral. Só não quis dizer onde, no Norte ou no Sul. Estás mais inclinado para Guidaje.
Também já era tarde e "amanhã é dia de trabalho"...Pediu-te para levares uma pequena "encomenda" para Lisboa... E até lá ainda se encontrariam no hotel onde decorria o simpósio.
Cruzando com conversas ulteriores, sabias que o Tó não tinha estudado mais. Ia-se inscrever no 7º ano, quando passou à clandestinidade.
Agora com 55 anos já "não tinha cabeça". A vida política não o interessava mais. Estava "triste" com o rumo que as coisas
Recebia uma miserável pensão (que chegava ao seu bolso, tarde e a más horas). O Governo tratava mal os antigos combatentes.
Temia a velhice, apesar da sua família extensa e solidária onde, apesar de tudo, não havia memória de se passar fome. Mesmo quando o pai desapareceu... Temia as doenças da velhice.
Trabalhava numa ONGD, estrangeira, uma "grande empresa", de um pais europeu. (Por razões obvias, não vais aqui identificá-la.)...
Mas nunca se sabia até quando "eles" continuavam a apostar na Guiné-Bissau. Os golpes de Estado, a droga, a instabilidade política, o peso dos militares, a corrupção, etc., não ajudavam a melhorar a imagem do país.
Era já tarde quando voltaste ao Hotel 24 de Setembro. Os dias ali eram curtos. E à noite não havia iluminação pública. Bissau parecia uma cidade sitiada, em quase total "black out". Recorria-se ao gerador, os particulares, os hotéis, os restaurantes.
Foste a pensar na história do Tó Brandão. Nem sequer sabias o nome de guerra dele. Não acreditavas em tudo o que ele te contara. Davas o devido desconto. Mas, no essencial, parecia ser uma história verosímil, incluindo a perseguição aos "colaboracionistas", aos "cães dos colonialistas", ainda antes da partida do último soldado português.
Era uma "grumete", dividido por duas culturas, dois amores, dois mundos (mesmo que nunca tivesse chegado a conhecer Portugal, tinha um secreto amor às raízes do bisavô , bem como a Cabo Verde, terra da mãe...)
Ao menos estava vivo, tinha sobrevivido a alguns momentos dramáticos da história recente do seu país ... Se tivesse ido para os comandos africanos, por exemplo, hoje estaria morto como dezenas e dezenas de graduados do célebre batalhão que o Spínola criara... Teve lá amigos seus. Disse-te os nomes (que não fixaste). Teve amigos de um lado e do outro, o que ainda era mais dilacerante.
Triste episódio, que manchara o regime de Luís Cabral...
− Triste episódio ?
Talvez um dia arranjasse alguém que lhe escrevesse as suas memória. Não era dado a escrever. Preferia falar. Mas não ali, na terra dele.
− Um dia, Tó... Talvez em Lisboa, não ?!
Sorriu.
***
Tu e ele ficaram amigos. Houve ali, pelo menos, empatia entre os dois. Cumplicidade. Mantiveram contacto mais ou menos regular por mail e pelo WathsApp. Nos últimos anos mais esporadicamente. Foste sabendo dele. Até à pandemia. Deixaste de ter notícias dele por essa altura, que foi fatídica para todo o mundo. E a ONGD onde ele trabalhava também passou por muitas dificuldades.
Entretanto a mãe já tinha morrido em Cabo Verde, com 90 e tal anos (ela seria de 1920). O Tó tivera um filho a estudar em Bragança, na Escola Superior Agrária. Terá viajado para o Brasil e perdeste o seu contacto.
Tal como o pai, o Tó Brandão terá desaparecido por volta de 2020/21. Sem deixar rasto. Acontecimentos estranhos naquela terra. Podem as pessoas desaparecer sem deixar rasto ?
Nunca mais lá voltaste, à Guiné-Bissau. Os rios da Guiné não falam, mas são caudalosos e lamacentos no tempo das chuvas. Lembravas-te, no Mato Cão, o estranho silêncio do rio Xaianga, seguido do poderoso macaréu, na maré-cheia, que assustava homens e bichos.
Perguntaras-lhe se ele tinha inimigos...
− Mas quem os não tem hoje na Guiné-Bissau ?
Sabias que a mãe tinha regressado a Cabo Verde, depois do golpe de Estado de 'Nino' Vieira. A família dispersara-se: houve irmãos que emigraram para Cabo Verde, Portugal e Holanda; outros dois ficaram em Bissau, um trabalhava nos Armazéns do Povo (no mesmo edifício da antiga Casa Gouveia); outro teria montado um negócio por conta própria.
Enquanto o Tó Brandão estava "bem relacionado" (chegara a diretor-geral de qualquer coisa...), a vida não piorara... Mas o Tó terá caído em desgraça nos anos 80. Nunca contou pormenores. Valeu-lhe a ONGD para quem foi trabalhar na área da educação ambiental e como intérprete: era poliglota, falava portuguès, francês, espanhol e, claro, crioulo. Era fluente em fula, entendia o papel, o balanta e o mandinga.
O estranho desaparecimento do pai (no rio Xaianga, ele dizia Caianga) foi outra história intrigante que ele só te contaria no último dia da tua estadia em Bissau, em março de 2008, umas horas antes de apanhares o avião para Lisboa.
Procurara-te para se despedir e concretizar o pedido algo insólito que te fizera uns dias antes: se levavas, na bagagem de porão, um saco de cola para o irmão que vivia perto de Lisboa, na margem sul.
Esse irmão tinha um filho que ia pedir a mão de uma "minina" a um patrício. Era da tradição oferecer noz de cola para o futuro sogro.
Não tiveste lata de dizer que não. Por precauçáo, pediste-lhe que te mostrasses as nozes de cola que iam no saco, que fingiste nunca ter visto no teu tempo... (Era coisa que os teus soldados andavam sempre a mascar: no mato, eliminavam ou mitigavam a sensação de fome e de fadiga, garantiam-te eles; provaste mas não te habituaste).
Em relação ao pai, empregado da Casa Gouveia...
− Nunca quis morder a mão a quem lhe dava a bianda.
Queria o Tó dizer: era fiel à Casa e aos portugueses que lhje davam o pão. Tinha uma boa posição, sabia ler e escrever, tinha carta de condução, uma camionetra distribuída. Não ganhava mal. Fazia a campanha da mancarra, percorrendo todo o leste.
Ainda não havia guerra, apenas umas "escaramuças" junto à fronteira do Senegal, na região do Cacheu, "coisa da gente manjaca". Ele só lidava com fulas e mandingas do leste, e uma ou outra tabanca balanta. Batia o leste de Sare Bacar a Gabu, do Xime ao Saltinh0, de Galomaro a Pirada. Os fulas eram seus amigos. Dos mandingas não tinha a mesma opinião. Alguns começavam a ser aliciados pelo PAIGC (aliás, ainda era o PAI, Partido Africano para a Independència).
Não se sabia o que acontecera em pormenor. Desta vez ia sozinho, sem ajudante habitual que terá ficado doente de paludismo em Bafatá. A camioneta apareceu abandonada, numa curva do rio Xaianga (ou Caianga, como se dizia então, em 2008), quando ia caminh0 de Paunca e Sare Bacar na a zona fronteiriça. Não havia sinais de violèncis. Teria sido raptado ou morto ?
A Casa Gouveia, se mandou investigar, nunca comnunicou à família as conclusões. O corpo nunca apareceu, não se fez o choro. Houve quem dissesse que ele tinha fugido para o Senegal com um saco de patacão, outr0s, seus inimigos dentro da Gouveia, insinuavam que, à semelhança do Luís Cabral, tinha passado à "clandestinidade"... O que era tudo mentira. Para mais ele tinha ainda alguns filhos pequenos a quem era preciso ajudar a criar.
A mãe do Tó nunca se conformou com o silêncio da Casa Gouveia, tão pesado como o rio Xaianga (o maior da Guiné, que percorria três territórios), mas não pôde fazer nada. Eles eram poderosos, os donos da Guiné. O filho mais velho também trabalhava lá. A história que se contava na família (teria o Tó 8 ou 9 anos) é que o pai sentira-se mal quando ia a conduzir, tinha saído para apanhar ar e acabado por cair ao rio. A verdade é que o corpo nunca apareceu.
A Gouveia terá abafado o caso. Não se sabe se a PIDE investigou. O irmão mais velho teve de substituir o pai no sustento da família. A mãe e os irmãos mais velhos passaram a ser ainda mais hostis ao partido do Amílcar Cabral, que nessa altura andava já a fazer trabalho de sapa nas tabancas e a destruir algumas infraestruturas (postes telefónicos, etc.),
Passados uns anos a mãe do Tó vai passar por outro grande desgosto: o filho decide "entrar na luta", quando estava destinado a ser padre...
Quando o PAIGC se sentou à mesa do Estado, em Bissau, em 1974, só havia sobras... Quem as apanhou foram os primeiros a chegar a Bissau. Ele fora dos últimos... Ficaria na tropa por mais uns anos até ao golpe de Estado do 'Nino' Vieira, que lançou uma onda de ódio contra os cabo-verdianos...
Aos 36 anos arrumou as botas, a farda e a kalash. E entrou numa nova vida. Foi professor, foi agente comercial, andou na campanha do caju, etc. Até finalmente conhecer a ONGD que lhe deu uma boa posição.
Era uma daquelas ONGD com generoso financiamento estrangeiro (e, mais tarde, da CEE),l que preenchia, em muitos setores (saúde, educação, cultura, agricultura, ambiente, etc.) as funções que o frágil (e quase inexistente) aparelho de Estado guineense não conseguia cumprir. Viajava bastante, pela Guiné (regiões de Cacheu,Bafatá e Tombali, onde a ONGD tinham projetos).
− E agora, Tó ?
Bebeu mais uma golada de cerveja, pigarreou, deixou passar mais uns tantos segundos e disse-te mais ou menos isto, num longo monólogo, à laia de confissão:
− Só tenho que me queixar das decisões que não fui eu a tomar. As que os outros tomaram por mim.
Não quis particularizar, mas estava, se calhar, a referir-se a família, à mãe (que era uma mulher "poderosa, dominadora"), aos irmãos mais velhos, aos missionários , aos colegas de liceu que já eram paigêcistas e que o empurraram para a luta armada. E, claro, ao Amílcar Cabral que foi para ele o pai que "ele nunca tivera", o seu herói, o seu ídolo... Nunca mais o voltaria a ver desde que, em 1969, o escolheu para ir para Cuba. Terá chorado como ninguém a sua morte, em 1973.
Confessou-te (ou deu a entender) que, no seio do Partido (como ele ainda dizia), chegou a sentir-se, muitas vezes, discriminado por ser "mais branco do que preto". Não quis entrar en grandes detalhes sobre a sua vida no mato, nas "áreas libertadas". Como comissário político", depois de vir de Cuba, teve que mostrar que era tão ou mais "cabra-matchu" do que os "mais velhos". Teve que dar o exemplo aos outros: ser casto, respeitar as bajudas, ajudar a população...Tinha que defender a "pureza ideológica", os valores do Partido... Mas tinha que se impor pelo exemplo. Havia conflitos com os "mais velhos", e sobretudo com os mandingas.
− Conflitos ?... Entre camaradas ?...
Sem concretizar, o Tó referia-se aos "pequenos abusos", os privilégios dos comandantes: vinho de palma, "água de Lisboa", bajudas para dormir, "bianda com mafé", relógio de pulso, amuletos, saco-cama,medicamentos, cigarros, guarda-costas.... Percebeste o ele que queria dizer, por meias palavras.
Havia quem andasse na luta há muitos anos. Desde o princípio e, com sorte, estavam vivos. Um jovem, de 19/20/21 anos, só por ter estudos e ser comissário político, não ia mudar aquelas "cabeças duras"...
Havia o culto do "cabra-matchu", denunciado aliás nos discursos do Amílcar Cabral. Mas o líder histórico não andava com eles no mato. Muitos nunca o tinham visto em carne e osso, só em fotografia. Conacri ficava longe. Tal como as Colinas do Boé.
Sobre os ajustes de contas com os "cães dos colonialistas", a seguir à independência, não quis falar. A expressão era usada pelo Cabral para se referir aos fulas e outros "colaboracionistas"... O assunto incomodava-o, e tu não insististe. Era delicado demais para uma conversa entre antigos inimigos, logo nos primeiros tempos em que se conheciam.
Ainda houve tempo de ir ao cais do Pijiguiti para dar um último adeus e ouvir o silêncio do Geba, que ali já era estuário, barrento, misturando-se com as águas azuis do Atlântico. O Xaianga, o Geba Estreito, era a montante, a partir do Xime... Um enorme braço de água que serpenteava pela Guiné e os seus dois países vizinhos...
Tiveste pena de não poder parar no Mato Cão, no regresso da viagem ao Cantanhez, e aguardar a chegada do macaréu, quando aquela gigantesca serpente de água irrompe pelas margens lodosas, na maré-alta, com o seu rugido de meter medo... Que diriam aquelas margens se pudessem falar dos macaréus dos últimos 500 anos de História ?
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Nota do editor:
Último poste da série > 24 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26307: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (36): uma guerra que também era... ototóxica!