

1. Em mensagem do dia 5 de Novembro de 2011, o nosso camarada Carlos Filipe Coelho (ex-Soldado Radiomontador da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), enviou-nos esta, quase trágica, história passada em terras do Leste da Guiné:
POSTO AVANÇADO OU VALA COMUM ?
Local: Galomaro, Guiné-Bissau 1972
Galomaro > Entrada do Quartel
Foto: © Luís Dias (2011).  Todos os direitos reservados. Fim de tarde, o ritual do jantar quase sempre composto de vianda e estilhaços (arroz e pedaços de carne mais ou menos estufada) tinha terminado.
A maior parte dos meus camaradas dirigiam-se à entrada do destacamento onde já se encontravam as talvez três dezenas de jovens (bajudas) lavadeiras.
Com o corpo algo confortado pela refeição, dava-se inicio a um baile de tentações, libertação de afectos contidos, em que dançam alguns recalcamentos, pintalgando aqui e acolá um ambiente de sonoros risos, gritinhos e curtas corridas de tentação, num desafio quase erótico entre sexos.
Enquanto isto um pequeno grupo de soldados preparam suas armas e restante equipamento, para ocuparem seus lugares nos postos de vigilância e segurança, e partirem para os patrulhamentos até alguns quilómetros de distância durante a noite. A saber, sentinelas no interior e exterior, os chamados postos avançados.
É a partir deste clima que alcanço o meu primeiro susto, passado uma ou duas semanas da minha presença em Galomaro (sector Leste da Guiné-Bissau).
Não estando eu destacado para nenhum serviço (o que muito poucas vezes aconteceu e ainda hoje não compreendo o porquê), resolvi juntar-me a um pequeno grupo de camaradas com destino aos postos avançados. Esta iniciativa não foi por qualquer tipo de valentia, mas sim porque tinha assumido conhecer tudo que possível, conforme os objectivos a que me propus e que me levaram a admitir o meu embarque com destino aquelas paragens numa guerra injusta.
Formamos um grupo de quatro homens. Incluídos um furriel mecânico (da minha Companhia), e um cabo dos ‘velhinhos’ que ainda não se tinham retirado com destino a Portugal.
Com o ritual do fim de tarde a decorrer à porta de armas, talvez mais suavizado, dirigimo-nos ao posto avançado, uma vala no solo, talvez a 400/500 metros de distância na sua direcção.
Íamos todos de G3, sendo que o furriel (o mecânico) tinha a arma municiada com um dilagrama, que é nem mais nem menos que uma granada adaptada à ponta do cano da G3.
Aparentemente tudo dentro da normalidade. Chegados ao destino saltamos para dentro da vala e encetamos uma amena cavaqueira, enquanto por vezes dirigíamos um olhar para o limite da vegetação entrepondo-se uma bolanha (terreno para cultivo de arroz) já com pouca água, pois estávamos na época seca.
Claro que o protagonista num momento, ora autor noutro das histórias, era o ‘velhinho’ que nos deliciava com um imaginário, quando para nós ainda não tinha havido um conhecimento real do cenário de uma guerra, contra um movimento de guerrilha de difícil combate, levando-nos portanto a uma expectante futurologia.
De quando em quando o ‘velhinho’ quase poetizava o seu regresso a Portugal que seria num dos próximos dias, quem sabia se no dia seguinte.
Passado talvez uma hora, temos na escuridão da noite o desenrolar de uma cena muito próxima de um teatro de marionetas.
Na quase absoluta escuridão, um número pequeno de vacas (ou bois?) desfilam em direcção à nossa direita, sem qualquer variação de percurso, nem um pequeno desvio, sempre em fila e sem paragens. Gado “inteligente”, ainda hoje estou convicto disso...
Para o ‘velhinho’ não menos astuto, perante o desenrolar da cena, explica-nos que o comportamento do gado devia-se a que estava a ser conduzido por pessoas escondidas pelo volume do corpo dos animais; colocando-se em dúvida se seria população afecta ou não ao PAIGC, ou até mesmo seus guerrilheiros.
Já quase a saírem do nosso raio de visão, que fazer? Disparar ou não? NÃO.
Reacção talvez instintiva do ‘velhinho’, eram os seus últimos dias de mato e quem sabe o seu último dia em Galomaro. A inicial expectativa (receio?) dos ‘periquitos’ (os recém-chegados ao mato) contribuíram para aquela decisão de não disparar. Além do mais não tínhamos rádio para comunicações.
Passados estes palpitantes minutos de análise e estratégia, voltamos à descompressiva conversa, para passado momentos tornar com motivos de sobra a gelar naquela amena noite tropical.
Agora o assunto era armamento, suas características e um dos tópicos foi o alcance dos dilagramas (a tal granada na ponta da arma), e consequentemente a munição a utilizar para o seu disparo.
Como um certeiro tiro, o ‘velhinho’ pergunta ao furriel (personalidade um pouco apagada naquele convívio dentro da vala) e que transportava o dilagrama na ponta da G3, que munição tinha no carregador da arma para disparar a granada.
O furriel responde, convicto, que tinha munição real. Como disse creio que gelamos sob aquela temperatura africana.
Nosso ‘velhinho’ com uma calma indesmentivel (pelo menos aparentemente) pede a ponta da metralhadora ao furriel e sacou a granada da arma, num silêncio indecifrável.
Retirado o mortífero engenho dá-se inicio a uma rajada de improprérios. “Caralh... queria matar-nos a todos ?... o que veio para aqui fazer ?....” e continuou tá tá trá.
Não vi o estado facial do furriel, porque estávamos ao lado uns dos outros e o espaço não era muito, mas sei que não pronunciou uma palavra.
Entretanto passou o tempo deste turno de vigilância e regressamos ao destacamento. Chegados, cada um foi para seu abrigo, talvez cogitando sobre o sucedido.
Por meu lado pensei: “fod... a primeira situação de perigo que se me depara é com os meus camaradas de tropa e não com o PAIGC merd.. para isto, o que virá a seguir ?”
Sob brasa, gostei de estar na vossa companhia naquela noite, quando ainda não tinha tido alguma experiência do tipo. Embora dentro de um buraco a que chamam vala, que podia ter sido “comum” não deixamos de contar anedotas e contrariar a regra do silêncio que se impunha naquele lugar e serviço.
Obs. - Um dilagrama tem que ser disparado (lançado) a partir de uma arma, com munição de salva. Composta só de pólvora sem projéctil. Se for disparado com munição real a granada rebenta de imediato a curtíssima distância.
Carlos Filipe,
2011-11-03
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 21 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8455: Memória dos lugares (156): Texas, o anexo do Hospital Militar Principal, na Rua da Artilharia Um, em Lisboa (Carlos Rios / Rogério Cardoso / Jorge Picado / António Tavares)
Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8762: Estórias avulsas (116): O 400 da CART 1746 (Manuel Moreira)


 





















