1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2019:
Queridos amigos,
O mínimo que se pode dizer que esta reportagem de Amílcar Cabral oferece é uma África empolgante, desde os caminhos para Tombuctu até aos aspetos míticos que a Tanzânia conserva. O repórter estudou a sério a história, a etnografia, dá-nos o colorido das paisagens, a distinção das relações humanas consoante o país, está permanentemente atento à cultura, vai saltando de lugar em lugar não esquecendo alguns onde se fala a língua portuguesa, logo Cabo Verde e depois S. Tomé, mais adiante Moçambique, cuja ilha o deslumbra. E percorre a costa oriental africana, e há trechos de fascínio cultural, vem na senda de um feitiço que o persegue por toda a itinerância, um exemplo: "Deus é vermelho. Deus é preto. É vermelho quando está mal disposto e por isso não chove e é preto nos dias de benevolência chuvosa. O vermelho é fogo, morte, renascimento. O preto é sagrado. A cor que vestem os rapazes depois de circuncisados, com a cara pintada de branco, quando passam a pertencer ao mato, à idade adulta e aprendem a desenvencilharem-se sozinhos". Uma viagem muito pessoal, cativa o leitor pela busca e pela abertura do olhar.
Um abraço do
Mário
Ali para as bandas da Guiné e um pouco por toda a África (4)
Beja Santos
“A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007, é um livro de cambanças, tudo começa na mítica Tombuctu, seguiu-se a Mauritânia, o deserto do Sara é um referencial, por diversas razões: é o maior depósito de sal do continente africano, nele se cruzam as redes comerciais entre o Mediterrâneo e a África negra, há mesmo a registar a presença portuguesa na ilha de Arguim, ao largo da Mauritânia. E depois desce-se o continente até à África Austral, o que se diz sobre Moçambique é muito importante, tal como sobre a África do Sul. Amílcar Correia preparou-se a sério para esta longa expedição. E como segue para o Quénia, é incontornável falar do clássico de Karen Blixen, África Minha: “Quando cheguei a África, não havia automóveis no país e íamos até Nairobi a cavalo ou numa carroça puxada por seis mulas. Durante toda a minha estada, Nairobi foi um lugar animado, com belos edifícios de pedra e bairros inteiros de velhas lojas, escritórios e casinhas de chapa ondulada, ao longo das ruas despovoadas e poeirentas, ladeadas por longas filas de eucaliptos”.
E descreve-nos com grande entusiasmo as ruas de Nairobi, chove a cântaros, o trânsito é infernal, os transportes públicos e privados transbordam de gente. E tece um comentário: “Para os estrangeiros de passagem, Nairobi é um prolongamento dos parques naturais do país, embora arranhe o céu aqui e ali e isso seja impossível na planície selvagem”. E mais adiante:
“Nairobi situava-se na confluência de territórios quicuios e massais e deve o seu nome a um riacho. Os primeiros foram forçados a deixar aqueles territórios, enquanto os segundos abandonaram a região após terem celebrado um acordo com os ingleses. O tribalismo não desapareceu com a independência e ainda se é primeiro quicuio ou luo e só depois queniano. Apesar do gigantismo de Nairobi e da vivência urbana que lhe é subjacente, esse confronto mantém-se vivo na própria capital.
Aquelas duas são as tribos mais numerosas do Quénia e têm barreiras históricas e linguísticas a separá-las quer no passado, quer na atualidade. Os quicuios eram conhecidos como os judeus do Quénia por estarem mais interessados na sua educação e cultura do que em ganhar a vida. Descendem dos Bantu, agricultores por excelência, que migraram para a região no século XV, vindos da costa ocidental, ao passo que os Luo descendem dos povos do Nilo, provenientes do Sudão, e são sobretudo pastores”.
E dá-nos um apontamento sobre a presença portuguesa e depois a inglesa: “No século XV, ao ocuparem cidades da costa zanj (que significa gente negra, em persa), os portugueses iniciaram os primeiros contatos entre a Europa e a África Oriental, mas foram os britânicos quem deu passos mais sérios para desbravar o seu interior, mais populoso após a abertura da linha do caminho-de-ferro entre Mombaça e Nairobi”. Segue-se um relato da exploração do continente, fala-se de Livingstone, John Speke, Samuel Backer, Henry Stanley, de gente de nomeada que aqui veio aos safaris. O repórter chega agora a Dar es Salam, a sua atenção é atraída por uma questão de verificação das notas:
“São poucas as lojas abertas num dia de fim de semana, tudo o que eu agora mais desejava era um punhado razoável de xelins. O indiano atrás do vidro colocou as notas na máquina para as contar, retirou algumas delas como quem retira a parte apodrecida de um fruto e avançou uma explicação plausível.
- Não há máquinas sofisticadas na Tanzânia para separar as notas boas das notas falsas. É por isso que aqui só se aceitam as notas de dólares de cabeça grande, porque sabemos que são as mais difíceis de falsificar”.
E fala-se deste país composto pelo arquipélago de Zanzibar e o território continental, o antigo Tanganhica. A viagem entre as duas metades faz-se de barco, a procura turística é enorme, Stone Town, a cidade de pedra da ilha de Zanzibar, é um mito:
“As estreitas ruas da cidade escondem mistérios seculares por trás das portas de madeira trabalhada com obstinação e apreço. As portas tinham, e ainda têm, uma importância crucial na vida dos habitantes da ilha. Muitas vezes, a construção das casas começava, e começa ainda, justamente pela porta, assim transformada na peça mais importante de uma habitação, que obedece aos cânones árabes do respeito pela privacidade. Do telhado dos edifícios mais elevados, avista-se a cidade na sua plenitude, com as suas igrejas cristãs, os tempos hindus, os minaretes das mesquitas, os bairros recentes construídos em altura na periferia da cidade, os palácios e as suas varandas rendilhadas, os telhados de zinco verde, os dhows (veleiros de velas latinas) no mar ou as ruínas dos antigos edifícios públicos, atuais moradas de pescadores”.
Reflete-se sobre a partilha de África como foi desenhada na Conferência de Berlim, em 1884-1885, e as suas consequências, mas a verdade é que há realidades históricas e culturais que ultrapassam os constrangimentos artificiais de qualquer mapa. Há uma língua que é um país, o swahili, país de marinheiros, uma miscigenação de tribos Bantus com imigrantes persas e árabes. “Esta nação linguística, que, à partida, pode parecer estranha, não tem capital sequer. Este país foi criado e unificado em torno de um idioma comum, embora com algumas variações, à semelhança de tantas outras línguas. O país swahili começa em Mogadíscio, desde aqui e ali pela costa queniana, prolonga-se pela Tanzânia, atinge as suas fronteiras em Moçambique e o seu idioma é falado por 30 milhões de pessoas”.
E o autor prodigaliza-se em pormenores sobre esta fascinante costa oriental africana onde houve comerciantes persas, onde se vendia o marfim e o ouro, os cornos de rinoceronte e os dentes de hipopótamo. A chegada dos portugueses trouxe mudanças. Zanzibar foi dominado pelas tropas portuguesas em 1505. Vasco da Gama estabeleceu uma presença portuguesa em Malindi. No século XVIII, os portugueses retiraram, seguiu-se o sultanato de Omã. O autor continua deliciado com a história atribulada do Tanganhica e da importância de Zanzibar, vem mais atrás ao mercado de escravos, toda a região era um imenso entreposto. Mas o autor observa: “A escravatura é anterior à chegada de árabes, portugueses, franceses ou ingleses à costa do continente e há autores que sustentam que entre 30 a 60% dos africanos eram escravizados antes da chegada dos primeiros europeus”.
E vamos concluir esta empolgante viagem retendo dois parágrafos ainda acerca de Zanzibar:
“Zanzibar tem sido palco de alguma violência. Contudo, a Tanzânia é um dos países com maior coesão no qual a separação entre tribos e Estado tem sido um facto, apesar da existência de 120 grupos étnicos que, muitas vezes, nem sequer se compreendem uns aos outros por dificuldades linguísticas. O ex-presidente Julius Nyerere teve uma importância reconhecida nesta coesão, ao escolher o swahili como língua principal e ao opor-se contra posições étnicas mais divisionistas. Ao contrário do vizinho Quénia, a importância da pertença tribal não é uma questão fulcral para uma população que, antes de mais, se define como tanzaniana.
Nascido na tribo zanaki, em 1922, Nyerere estudou numa Universidade de Kampala e licenciou-se em História em Edimburgo. Nyerere foi o rosto das reivindicações independentistas da Tanzânia e o seu primeiro presidente, ao unir a então Tanganhica e a ilha de Zanzibar. Em 1985, demitiu-se, Nyerere abandonou aquelas funções num gesto raro entre a classe política, após reconhecer os erros da sua governação que conduziu o país a uma situação de bancarrota.”
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Nota do editor
Último poste da série de 25 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23199: Notas de leitura (1440): “A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007 (3) (Mário Beja Santos)