Queridos amigos,
Artur Augusto da Silva foi um estudioso das coisas guineenses, deixou uma bela obra que merece ser visitada e até atualizada, tanto dos trabalhos jurídicos como etnográficos, antropológicos e até literários.
Esta publicação surgiu em 1958, a introdução recorda que havia o imperativo de estudar com rigor o homem africano, haviam tensões de regressar à autenticidade sem cuidar de que o europeu forjara uma imagem de África e que o assimilado pairava entre as duas culturas, impunha-se, escreve Artur Augusto da Silva, apurar e deslindar as transformações operadas e não suscitar uma imagem de desenvolvimento ao arrepio da longa trajetória do homem africano.
Mensagem premonitória, como se sabe.
Um abraço do
Mário
Usos e costumes jurídicos dos Fulas na Guiné-Bissau
Beja Santos
Artur Augusto da Silva é um nome sonante da investigação na Guiné-Bissau, ao longo de décadas o seu nome impôs-se como referência em trabalhos jurídicos e estudos associados à etnologia e etnografia guineenses. “Usos e costumes jurídicos dos Fulas na Guiné-Bissau” teve a sua primeira edição em 1958 e recebeu o prémio Frei João dos Santos; a edição a que nos reportamos é a terceira, edição DEDILD.
As surpresas começam na introdução, quando o autor, um assumido profissional de Direito, esclarece que o seu trabalho não é estritamente jurídico, visa sobretudo chamar a atenção para a necessidade de se conhecer o homem africano. Parte de um esclarecimento, os contactos culturais entre colonizadores e colonizados e aflora a criação do Estado independente do Gana. E diz algo que tem uma carga premonitória: “A independência de regiões africanas não soluciona o problema fundamental em que a África Negra moderna se debate e que consiste em encontrar uma fórmula de organização socioeconómica capaz de substituir a tradicional organização patriarcal (…) Os Estados que na África Negra se criarem, permanecerão durante muitos anos numa espécie de caos político, financeiro e cultural que os conduzirá diretamente à dependência política ou económica de outro Estado, obrigando-se os povos a passar por uma fase de anarquia, com todo o cortejo de inconvenientes”. Para obviar tais dramas, Artur Augusto da Silva entende que se deve ter um conhecimento, o mais exato possível, da realidade do homem africano, da sua organização tradicional, da sua evolução, deve atentar-se que o homem africano subordina inteiramente todos os atos da vida à sua religião, que esta comanda, com cega impiedade, as suas ações, há um abismo psíquico que separa o europeu do africano. Tece considerações pertinentes sobre os assimilados, fazendo notar que no Congresso dos Escritores e Artistas Negros, realizado em Paris em 1956, dominava a reivindicação de encontrar o verdadeiro caminho tradicional, uma recusa na assimilação, havendo mesmo quem dissesse que o assimilado é um desenraizado. O remédio, comenta sobre quem estuda a história de África, é a aprofundar a realidade africana para que se prova prever e construir o futuro de África.
Centrando-se nas questões guineenses, o autor expende considerações sobre os povos onde se movem os Fulas, enfatiza o papel da dependência familiar, as cerimónias de iniciação, o poder conferido à classe dos velhos e estabelece uma destrinça entre as atividades culturais e lúdicas dos islamizados face aos animistas. E assim se chega ao Direito Fula, que é de raiz corânica e enuncia os dados fundamentais da lei canónica islâmica.
Convém não esquecer que este estudo foi publicado em 1958, para se entender o contexto dos dados expendidos. Diz o autor que os Fulas habitam várias regiões dos territórios franceses e ingleses, receberam o islamismo através de outros povos africanos, adulterado por interpretações primárias, só recentemente é que se vieram impor normas reguladoras. A diferença fundamental entre o Direito Fula e o Direito europeu reside que, “no primeiro, a regra de conduta não é feita, pois representa uma parte da vida da coletividade enquanto, no segundo, as regras derivam de uma vontade deliberada e consciente da pessoa ou pessoas investidas de autoridade legislativa. Para o Fula o direito é anterior à pessoa enquanto para os europeus o direito é um produto dos homens”.
Os Fulas não dispõem de organização judiciária, é no topo da hierarquia que existe um conselho que dirime conflitos e profere sentenças. Ao tempo as decisões dos régulos tinham perdido força coerciva, a potência colonial, através do administrador, retirara poderes de vida e de morte aos régulos.
A autoridade do marido é absoluta; entre os Fulas, como, aliás, entre a totalidade dos negros muçulmanos, as práticas pré-islâmicas impuseram-se de tal forma que a condição da mulher e dos filhos está imensamente favorecida. O autor estuda o papel do pater famílias, a natureza dos parentescos familiares, a filiação legítima, os graus de parentesco, o pedido de casamento, o divórcio, a aceitação do concubinato.
Passando para o Direito das Obrigações, o autor fala das obrigações no sentido técnico e nas obrigações como dever moral. Apresenta os contratos de aluguer e arrendamento, de prestação de serviço, de venda e troca e de empréstimo. Com a acrescida presença colonial, muitos destes contratos ganharam efetividade. Nos centros urbanos, os Fulas arrendam casas mediante retribuição de dinheiro, o contrato de aluguer pode versar sobre diversos objetos, no passado era feito em géneros e só ultimamente o é em dinheiro. O autor fala das provas do Direito Fula, mencionando que a demonstração da verdade dos factos podia ser feita por: documentos e exames; testemunhas; juramento; ordálios.
Do maior interesse é o que o autor refere quanto aos direitos reais, assim observado: “Ainda há quarenta anos, o regime de propriedade imobiliária assemelhava-se ao do feudalismo europeu e a organização social mantinha muitos pontos de contacto com a feudal. A administração das terras pertencia ao régulo que as dava, em recompensa de serviços, aos chefes das povoações mas só em usufruto, com a obrigação de pagarem anualmente um certo tributo. As terras eram consideradas como propriedades da coletividade, essa propriedade era administrada pelo chefe que fazia suas as rendas ou tributos. O Direito Fula não chegou a criar uma teoria dos direitos reais, e o autor expende considerações sobre o conceito Fula de Direitos aplicado à propriedade, aos terrenos destinados a pascigo de gado, meios de transporte (como canoas) e distingue a propriedade pública da propriedade privada".
Os direitos de sucessão obviamente que se subordinam à lei corânica. Assim quando um individuo não deixa descendentes, a herança cabe aos ascendentes; o pai ou o avô herda a totalidade, caso não haja filhos, quando há um só filho, mas o pai ou avô está vivo, a herança defere-se ao ascendente num terço e ao descendente no restante.
E temos finalmente o Direito Penal, já ao tempo posto de parte pelo direito ocidental, só nos casos de pequena gravidade se aplicava o direito costumeiro Fula. E o autor observa: “Os Fulas, em todas as regiões onde habitam, desde cedo se aproximaram dos colonizadores europeus a quem ajudaram grandemente nas lutas de pacificação dos territórios. Os Fulas apresentaram-se perante os outros povos de África como conquistadores – colonizadores, tal como os europeus. Hostilizados pelos outros povos da raça negra por motivos políticos e religiosos, só a aliança com os novos conquistadores lhes permitiram subsistir (…) Os Fulas, dada a sua aproximação voluntária e colaboração com os colonizadores, modificaram as suas instituições e, daí, o seu abandono do sistema penal em que viveram”. E o autor passa em revista o antigo Direito Penal dos Fulas, penas que iam desde as vergastadas, torturas diversas, multas e até a morte.
Documento precioso, atendendo à data em que foi redigido e as observações políticas, lança um subtil aviso à necessidade de perceber os fundamentos socioculturais do homem africano, num tempo em que se anunciava a preparação das independências.
Para ler na integra este artigo, sugere-se a consulta do site:
____________Nota do editor
Último poste da série de 10 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12705: Notas de leitura (561): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 2 de 4 (Mário Beja Santos)