1. Último episódio das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:
MEMÓRIAS DA GUINÉ
Fernando de Pinho Valente (Magro)
Ex-Cap Mil de Artilharia
15 - FIM DA COMISSÃO - O REGRESSO
A nossa vida continuou sem grandes percalços naquelas paragens africanas.
A Lena era professora na Escola Preparatória, dava explicações em casa e convivia muito com as esposas dos militares que estavam em Bissau, particularmente com a esposa do meu Comandante Tenente-Coronel Lopes da Conceição, com a Maria da Graça Areosa, mulher do Major Leal de Almeida, dos Comandos Africanos e com a Etelvina Moritz, esposa do Engenheiro Lourenço Pinto.
Eu também tinha os meus dias muito ocupados.
A minha actividade não estava, no entanto, somente circunscrita à cidade de Bissau.
Tinha, por vezes, de me deslocar ao interior do território para resolver localmente problemas que surgiam durante as obras dos reordenamentos populacionais.
Dessas deslocações ao interior, a de que me recordo como a mais desconfortável, foi quando uma vez desci de um helicóptero, sozinho, em pleno mato. Era aguardado por milícias guineenses (não havia tropa portuguesa na região).
Parte dos elementos da milícia ficou de guarda ao helicóptero e a outra parte em fila indiana (bicha de pirilau, como se dizia entre os militares) encaminhou-me, mato dentro, para o sítio dos trabalhos do reordenamento local.
Para minha defesa pessoal estava armado com uma pistola Parabelum. Também me estava distribuída uma metralhadora FBP.
No início, nas minhas primeiras saídas para o mato, levava comigo a metralhadora mas, mais tarde, mais confiante, passei somente a colocar à cintura a pistola Parabelum.
Aos domingos, na época seca, dava com a família um pequeno passeio de carro até ao Cumeré, Nhacra ou João Landim.
Mas a maioria das vezes dirigíamo-nos ao quartel da Companhia de Caçadores 2572, em Nhacra, que era comandado por um amigo meu e que distava menos de vinte quilómetros de Bissau. Nesta Companhia havia vários pequenos macacos com que brincávamos. Durante a viagem passávamos por enormes montículos com mais de metro e meio de altura feitos por formigas (baga-baga).
Na época das chuvas, os passeios eram menos frequentes uma vez que o tempo não permitia grandes viagens fora da cidade.
Era mesmo arriscado, em certas alturas, circular na estrada pois por vezes o vento soprava com uma força incrível dando origem a autênticos tornados.
Esses tornados surgiam inesperadamente, sem que os europeus os adivinhassem, o que não acontecia com os guinéus. Muitas vezes parecendo estar calma a atmosfera surpreendia-me a ver correr os naturais da Guiné para as suas palhotas, procurando abrigo. Passados poucos minutos desabava uma chuvada acompanhada de grande ventania. Pelo bulir das folhas das árvores ou por outros sinais a população indígena conseguia prever o temporal que se avizinhava, o que não acontecia com a população branca.
Esses tornados eram perigosos, principalmente para as pequenas aeronaves. Durante a minha estadia na Guiné deu-se um grande incidente que vitimou quatro deputados portugueses, de visita ao território, quando o helicóptero em que viajavam se despenhou no Rio Mansoa.
Quando terminava a época das chuvas, pelo mês de Maio, apareciam as pragas.
Lembro-me de uma dessas pragas, a dos grilos. Bissau foi literalmente inundada de grilos.
Os automóveis a circular nas ruas faziam um som característico quando os seus pneus passavam por cima deles.
Os varredores camarários juntavam os cadáveres dos grilos em montes na margem das ruas para depois serem transportados para os aterros.
Em Abril de 1972 a minha comissão militar estava no fim.
Devido ao meu filho ser estudante do 1º ano do Ciclo Preparatório e eu e a Lena sermos professores, pedi que o fim da minha comissão coincidisse com o final do ano escolar.
Em Maio começamos a preparar-nos para regressar a casa.
Despedi-me da Tecnil e, tendo em vista a compensação de possíveis falhas na minha assiduidade, não aceitei o recebimento do último mês de trabalho.
Despedi-me do Moba - o meu impedido - a quem ofereci alguma roupa e utensílios de casa que desistimos de trazer.
Vendi o carro.
E em princípios de Junho começámos a preparar os caixotes de madeira onde haviam de ser transportados por barco os objectos que adquirimos na Guiné e que decidimos trazer connosco.
Desses objectos fazia parte uma bicicleta inglesa, que oferecemos ao nosso filho Fernando Manuel aquando da sua aprovação nos exames da 4ª classe e de admissão ao Liceu.
Foi desmantelada e metida num caixote que, depois, se extraviou.
Já no Continente tive de me deslocar duas vezes ao RALIS, em Lisboa, onde eram depositadas as bagagens dos militares regressados à Metrópole, sem que o referido caixote aparecesse.
Até que, por sugestão de um sargento, passámos em revista a arrecadação onde se encontravam os haveres dos militares que haviam falecido na Guiné e, para meu espanto, vim a encontrar lá o caixote que andava desaparecido.
Em meados de Junho despedi-me do Director e dos Professores da Escola Industrial e Comercial de Bissau e tive, no Batalhão de Engenharia, a minha festa de despedida.
Visitamos as pessoas das nossas relações e preparámo-nos para regressar a casa.
Em trinta de Junho de 1972 subimos para o avião militar e iniciamos a viagem de regresso com escala na Ilha do Sal, Cabo Verde.
Quando chegámos ao Aeroporto de Figo Maduro e o avião aterrou, o nosso filho Fernando Manuel deu um grande suspiro de alívio.
A aventura da Guiné tinha acabado.
Estávamos todos juntos e de boa saúde.
Nas nossas vidas a passagem pela Guiné era um episódio encerrado.
Para trás tinham ficado dois anos de algum sofrimento e angústia que nos era ocasionada pela ausência da família e dos amigos, pela insegurança em que vivíamos o dia a dia, devido à guerra, e pelo clima que era desgastante para os europeus.
Mas, mal chegamos a Viseu, também não deixamos de recordar com saudade as amizades novas que fizemos na Guiné, os jantares festivos no Batalhão de Engenharia, as festas no clube de oficiais, os golfinhos que saltavam nas águas límpidas do arquipélago de Bijagós, as belíssimas acácias rubras que floriam em Bissau, as ostras e camarões da Guiné, o Scotch Wisky com água Perrier e pedacinhos de gelo que por lá consumíamos.
E sentia-me recompensado quando pensava que os dois anos que passei na Guiné não foram em vão, uma vez que pude colaborar como engenheiro técnico em algumas obras públicas e de construção civil em Bissau, além dos reordenamentos populacionais no interior do território.
Como professores, também a Lena e eu procurámos transmitir os nossos conhecimentos aos jovens daquelas paragens.
E a certeza de que essa actividade específica não tinha sido em vão, foi-me demonstrada, passados alguns anos, por um jovem guinéu numa feira de motonáutica e de equipamentos de campismo no pavilhão Rosa Mota (antigo Palácio de Cristal), no Porto, quando me surpreendeu de longe:
- Professor, Senhor Professor!
- É comigo? Está a chamar por mim?
- O Senhor foi meu professor em Bissau. Como estou contente por voltar a vê-lo! Nós em Bissau gostávamos muito do Professor e da sua família. Professor, deixe-me abraçá-lo.
Era o encontro com as memórias da Guiné que selei com um forte abraço ao jovem negro, meu ex-aluno em Bissau.
(Fim)
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Nota do editor
Vd. postes da série de:
27 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11637: Notas de leitura (486): "Memórias da Guiné", por Fernando Magro (Mário Beja Santos)
24 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11865: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (1): A incorporação na vida militar
31 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11892: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (2): Mobilização
7 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11914: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (3): Guiné-Bissau
14 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11939: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (4): O valor estratégico da Guiné e Cabo Verde
21 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11963: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (5): Os movimentos subversivos
4 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12007: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (7): Relato do ataque à capital da República da Guiné feito pelo Tenente Januário na Rádio Conacry
11 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12028: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (8): O Clube de Oficiais
18 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12057: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (9): Os reordenamentos populacionais
25 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12085: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (10): Actividades não oficiais
12 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12435: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (11): Passagem de ano na Associação Comercial
18 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12469: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (12): Férias da Páscoa em Bubaque - Bijagós
25 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12503: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (13): A Economia da Guiné - A Feira de Amostras de 1971
e
Último poste da série de 15 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12587: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (14): A minha casa em Bissau
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Fernando Valente,
Foi um ex-capitão do quadro, Engenheiro que fechou a Tecnil de vez em Bissau.
Era 1982, teve que sair clandestinamente de Bissau para não ser detido pelo governo de Nino Vieira, pela falência da empresa.
Em 1974 tinha sido capitão de Engenharia em Bissau.
É uma descrição calma dos últimos tempos de Guiné, onde não falta nada. Trabalho, viagens, família, amigos, ambiente local, está lá tudo.
Mostras tmbém obra feita, quer no ensino quer como engenheiro. A maior parde de nós pouco fizemos de útil para nós e para a Guiné Eramos uns peões armados que forças nacionais e internacionais moviam a seu belprazer.
Um abraço
Francisco Baptista
Querido camarada Fernando (que ainda não conheço pessoalmente, mas que hei-de conhecer, no nosso próximo encontro em Monte Real, no IX Encontro Nacional da Tabanca Grande, a realizar este ano, ainda não sei quando,talvez em junho, ou em setembro/outubro, porque vou fazer o raio de uma operação à anca, mas haveremos de fazer, esse encontro, mesmo que eu vá de canadianas, mesmo que chovam raios e coriscos, gafanhotos, míríades de insetos, como no tempo, louco, que passámos na Guiné)...
A ti e ao mano "mais novo", op Abílio... Vocês são uns gajos especiais, e eu quando li "fim" no 15º poste das tuas crónicas, fiquei triste... Porque, tendo acompanhado as tuas crónicas, "entrei pela tua família dentro" e comovi-me com as tuas/vossas peripécias em Bissau...
Afinal, um homem do "ar condicionado", do famoso BENG 447, foi um português VALENTE, tão ou mais do que eu , que fui operacional numa companhia de "nharros", que andou a dar e levar porrada ao longo da margem direita do Rio Corubal, do Xime até ao Xitole...
De repente, dei-me conta, ao ler-te, que, aparte uns pequenos confortos e privilégios da "guerra do ar condicioando", não foste diferente de mim e dos meus camaradas, pelo contrário deste o teu melhor, o a teu saber, a tua competência, como militar, como engenheiro, e como professor,,, ao ponto de teres antigos alunos que te reconhecem, hoje, ao fim destes anos todos... Tambémsou professor, universitário, e esse facto dos nossos antigos alunos nos reconhecerem é a maior recompensa que todos ter, numa carreira ingrata...
Grande camarada VALENTE, actedita que vou ter saudades de ti, da tua Lena, dos teus putos... Ficas "intimado" a aparecer, num dos nossos próximos encontros, sózinho, ou com a Lena, com o "mano novo", ou com mais camaradas do BENG 447... Ou com os putos que entretanto cresceram, e que são uns homens, e que têm orgulho em ti, pai VALENTE,,,
E já agora vou-te cravar, pelo menos mais uma crónica, extra, sobre o reordenamento de Nhabijões... Ainda hoje estive, no funeral da minha mãe, com o ex-alf Luis R. Moreira que caiu, a 13 dce janeiro de 1971, na primeira mina A/C que rebentou à saída do reordenamento de Nhabijões... Eu caí na segunda, duas hopras depois... Ironicamente, o Luís que era da CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), depois do tratamento e recuperação no HM 241, em Bissau, acabou por ir parar ao BENG 447, onde terminou a sua comissão...
É hoje um DFA...E sobretudo é um camarada de cinco estrelas, veio ao enterro do meu pai, há dois anos, e agora ao da minha mãe...
Fernando,"mano velho" precisamos mesmo de nos conhecer!... Eu, tu, o Luis Moreira, o António Fernando Marques (, meu companheiro, mais infortunado, da 2ª mina A/C de Nhabijões) e, claro, o "mano novo"!...
Um alfabravo. Luís
PS - Tocou-meo que escreveste:
(...) "E a certeza de que essa actividade específica não tinha sido em vão, foi-me demonstrada, passados alguns anos, por um jovem guinéu numa feira de motonáutica e de equipamentos de campismo no pavilhão Rosa Mota (antigo Palácio de Cristal), no Porto, quando me surpreendeu de longe:
- Professor, Senhor Professor!
- É comigo? Está a chamar por mim?
- O Senhor foi meu professor em Bissau. Como estou contente por voltar a vê-lo! Nós em Bissau gostávamos muito do Professor e da sua família. Professor, deixe-me abraçá-lo.
Era o encontro com as memórias da Guiné que selei com um forte abraço ao jovem negro, meu ex-aluno em Bissau. " (...)
Ex-Camarada António Rosinha:
O meu irmão Fernando de Pinho Valente (Magro) nunca pertenceu ao QP do exército, era miliciano e só esteve na Guiné entre os anos 1970 e 1972, nada tendo a ver, portanto, com o cap. Fernando Valente que referes.
Agora que vi a tua mensagem e que este meu irmão partiu deste mundo, honremos a sua memória, por favor.
Nota: O apelido Magro entre parêntesis é da minha responsabilidade e deve-se ao facto de o mesmo não constar do BI deste meu irmão, sendo embora filho de Acácio Alberto Lamares Magro e também porque este meu irmão assinava como "Fernando Magro" os livros que escreveu.
Cumprimentos,
Abílio Magro
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