Aerograma original do MNF (Natal, 1961)
Aerograma "canibalizado" pelo A. Marques Lopes (1944-2024) (Barro, Natal de 1968)
Imagens (e legendas): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)
1. Aerograma, edição de Natal, distribuído pelo Movimento Nacional Feminino (MNF) (Angola, 1961)...
O alf mil at inf A. Marques Lopes (1944-2024), da CCAÇ 3 (Barro, 1968/69), pegou no aerograma de natal do MNF, cujo "boneco" já vinha da 1ª (e única) edição, dezembro de 1961, e "canibalizou-o":
(i) pôs um chapéu alto, azul, na cabeça do São José, tipo "porteiro de hotel" (para não dizer "palhaço de circo");
(ii) tingiu de vermelho o manto de Nossa Senhora, bem como a "estola" do São José;
(iii) pôs o soldado, "maçarico", de caqui amarelo, capacete de aço, e mauser com baioneta ao ombro (!) com uma catana tingida de vermelho (de sangue), na mão esquerda;
(iv) mudou a cor da cara do "pretinho" que olha para o "maçarico", "seu protetor";
(v) "incendiou" as tabancas...
(vi) enfim, mandou um postal de "boas festas", muito pouco "ortodoxo", convenhamos (nada "católico" nem muito menos "patriótico"), à sua irmã e ao seu cunhado, no Natal de 1968...
Em suma, não podia ter sido mais "mauzinho". A maior de nós poupava deliberadamente as famílias, nunca ou raramente falando da guerra.... Direta ou indiretamente.
Ora estamos em plena guerra colonial.... O Marques Lopes tinha regressado à Guiné, de depois de recuperado em Lisboa, de um ferimento grave no subsetor de Geba. Teve de cumprir o resto da comissão. Agora em rendição individual, é o comandante de um pelotão chamado "Jagudis", de uma companhia de guarnição normal (dita "africana"), colocada junto à fronteira com o Senegal, em Barro. A CCAÇ 3.
(...) " Querida irmã e cunhado, um Natal feliz e que o Ano Novo seja sempre melhor que o anterior. António Manuel...
(PS-) Uma ginjinha!.. Pois dar de beber à dor é o melhor" (...)...
2. Análise das duas ilustrações do aerograma de Natal (19161 e 1968):
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A. Marques Lopes e o seu guarda-costas |
(i) é uma "brincadeira", uma "irreverência", quiçá uma " provocação ", do nosso saudoso A. Marques Lopes;
(ii) mas, a esta distância, e conhecendo a sua atitude crítica face à guerra (leia-se o seu livro autobiográfico, "Cabra-Cega"), podemos considerá-la também como um exemplo típico do que se chama "subversão do objeto": ele pega na propaganda oficial, higienizada, climatizada e paternalista, ou melhor, maternalista, do Movimento Nacional Feminino (MNF), e contrapõe-lhe a realidade da guerra, nua e crua;
(ii) é uma "cena", que podemos qualificar como sendo de "contestação" através do desenho e do humor negro, num dos contextos mais difíceis da nossa história recente, a guerra na Guiné (1961/74):
(iii) o contraste entre as duas imagens (1961 e 1968) revela o "gap" entre a narrativa oficial do "sistema" (de que o MNF fazia parte), e a vivência dos combatentes no terreno;
(iv) o aerograma de Natal do MNF (com um "boneco" inalterado desde 1961) é uma "idealização", uma visão ingénua, bucólica, "cristã" e "civilizadora": o soldado (ainda de caqui amarelo, capacete de aço e mauser) é um protetor sereno, bonzinho, enquanto o "pretinho" olha para ele com enlevo e admiração;
(v) no outro lado do aerograma, a Sagrada Família, na gruta de Belém, abençoa a missão nas NT (que impõem ou repõem a ordem e a paz numa "guerra subversiva", ou seja, "surda e suja" como era aquela guerra, de um lado e do outro da barricada);
(vi) a versão do nosso camarada A. Marques Lopes (um "histórico" da Tabanca Grande), e a que podemos chamar de "realismo crítico", mostra o "outro lado da moeda": em finais de 1968, no final do consulado do general Arnaldo Schulz, a paz está longe de chegar à Guiné, o conflito prolonga-se, "sangrento", desmentindo a "propaganda" e a "idealização" do MNF;
(vii) as manchas de tinta vermelha, num lado e no outro, realçam ainda mais a cena "iconoclasta", a da profanação do sagrado: o chapéu alto do São José transforma a efeméride religiosa (o nascimento do Menino Jesus) numa farsa, quase um circo, em que se critica implicitamente a hipocrisia de uma guerra que também era feita em nome de valores cristãos e civilizacionais;
(viii) por fim, temos a frase final, burlesca, pícara: "Uma ginjinha!... Pois dar de beber à dor é o melhor" (parafraseando a letra do fado da "Mariquinhas", com música tradicional do fado "Vou dar de beber à dor", letra de Alberto Fialho Janes e música de Alfredo Marceneiro e Salvador Tavares. imortalizado pela Amália Rodrigues, o próprio Alfredo Marceneiro, a Hermínia Silva, entre outros); é o desabafo (universal) do soldado que tenta anestesiar a violência da guerra (de todas as guerras), com a ginjinha, a cerveja, o uísque, a aguardente de cana, a "água de Lisboa", o vodca, o tabaco e outras"drogas"...
Enfim, fica aqui uma nota de humor na quadra festiva de Natal e Ano Novo, que se quer de paz, alegria, bonomia, tolerância... E é também uma forma singela de lembrar e homenagear o nosso querido cor inf ref António Marques Lopes (1944-2024).
(Pesquisa: LG + IA / Gemini)
(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)
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