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sábado, 27 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27578: Manuscrito(s) (Luís Graça) (279): em dezembro e era natal






















Candoz, 27 de dezembro de 2025 > Chegou o inverno, e dantes matava-se o porco


Fotos (e legenda): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



em dezembro e era natal

por luís graça

em dezembro
ainda não fazia frio

em dezembro
ainda não caía neve 
na serra de montemuro ali em frente

em dezembro era natal
e comiam-se rabanadas

em janeiro
cantavam-se as janeiras
e bebia-se o vinho novo
o vinho verde tinto
a que chamavam jaqué

em dezembro
ainda não havia neve
pra cozer as pencas pró natal
na casa de pedra dos camponeses pobres do norte

em dezembro
não viste as peugadas dos pés descalços
das criancinhas do augusto gil
 
"batem leve levemente
como quem chama por mim"...
ah onde estava o tipicismo da miséria rural
de a cidade e as serras do eça de queiroz

em dezembro
o pai natal não descia pelo fumeiro
por entre salpicões e moiras

vinha de peugeot pelas estradas de frança
e trazia tiparillos para a  malta fumar
à lareira

em dezembro
matava-se o porco
e fritavam-se rojões
na panela de ferro

ainda não havia salpicões e moiras no fumeiro
nem presuntos na salgadeira
mas as criancinhas já usavam socas de madeira

em dezembro
a maria do norte cortava erva pró toirinho
e cantava a plenos pulmões
uma canção que não era do sul
e que não passava na rádio

lá vai o comboio lá vai
lá vai ele a assobiar
lá vai o meu rico amor
para a  vida militar

para a  vida militar
para aquela triste sina
lá vai o comboio lá vai
leva pressa na subida

leva pressa na subida,
leva pressa no andar
lá vai o meu rico amor
para a vida militar

era  um cantaréu
mas um cantaréu
um moça não o pode cantar sozinha
são precisas três moças três vozes

não se cantavam cantaréus no natal
nem o trenó do pai natal 
passava por aqui

em dezembro
mesmo quando nevava e era natal

candoz | natal de 1976
revisto |  27 dez 2025

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Nota do editor LG:

Último poste da série : 14 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27529: Manuscrito(s) (Luís Graça) (278): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte IV: O Ester, o "menino Zeca" que era mecânico de aviões na base de São Jacinto

Guiné 61/74 - P27577: Os nossos seres, saberes e lazeres (715): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (236): A Sevilha de um viajante apressado, nem pode acudir à Sevilha essencial: Granada, ainda com a Alhambra à distância - 3 (Mário Beja Santos)

Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf
CMDT Pel Caç Nat 52

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Deembro de 2025:

Queridos amigos,
O que seria Granada sem o esplendor muçulmano? Talvez uma cidade com património do plateresco e do barroco e com o significado histórico de o reino de Espanha se ter firmado aqui com a queda do reino Mouro, em 1492. A Alhambra e o Generalife fazem parte da lista dos monumentos históricos mais visitados do mundo. Sem condições para visitar o interior da Alhambra (tudo esgotado até ao fim da temporada, em dezembro), comecei pelo Bairro da Catedral, primeiro a Madraça ou a Universidade Muçulmana construída no século XIV, meti-me ao caminho pela Carrera del Darro, um percurso encantador com diferentes pontes sobre o Rio Darro, dali se avistam as colinas míticas da Alhambra e do Albaícin, no regresso, após um almoço de regalo, dei-me ao cuidado de começar a tarde no Museu Arqueológico. Eu depois conto o resto do dia e a estafa que me está reservada para o dia seguinte.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (236):
Granada, ainda com a Alhambra à distância - 3


Mário Beja Santos

A visita desta manhã começa na Capela Real que confina com a Catedral. Mas que o leitor me permita um curto apontamento histórico. Granada ganha importância com a chegada dos árabes, há indícios de outras presenças como os iberos e os romanos. Em 713 Tarik submeteu a cidade, o núcleo original estendia-se pelas colinas da Alhambra e o Albaícin. Durante o Califado de Córdova, a cidade dependia dele, e quando se desagregou, em 1013, converteu-se numa taifa (reino independente) e aqui se instalou a dinastia Zirí. Em 1090 a cidade caiu nas mãos dos Almorávidas, foi depois arrebatada pelos Almóadas em meados do século XII. Com a chegada da dinastia Nazarí, em 1238, começou a idade de ouro da cidade. Havia um acordo firmado entre Fernando III e Muhammad in Nasr, fundador da dinastia, o muçulmano reconhecia-se vassalo do Rei Cristão. Este reino de Granada abarcava as Províncias de Almeria, Málaga, Sevilha, Córdova e Jaén. É então que se constrói a Alhambra, no século XIV e Granada torna-se uma cidade importantíssima. O século XV é uma época marcada de lutas internas o que facilitou a tarefa dos cristãos; em 2 de janeiro de 1492, os Reis Católicos tomaram a cidade. O esplendor não se perdeu, vieram riquezas das Índias Ocidentais que se refletem num conjunto de monumentos grandiosos.

Não se pode tirar imagens na Capela Real, no texto anterior mostrei pormenores das edificações, o interior é esplendoroso é ali que estão sepultados os Reis Católicos e também a filha, Joana, a Louca, e Filipe, o Belo, os pais do imperador Carlos V. O retábulo do altar-mor, arte renascentista é dedicado a S. João Evangelista e S. João Batista. As cenas, totalmente esculpidas e em relevo, são talhadas em madeira e divididas em pequenos painéis com imagens. Na sacristia encontram-se trabalhos da escola de pintura flamenca de grandes mestres como Rogier van der Weyden, van Eyck, Memling e Dieric Bouts.

Finda a visita, tomou-se o caminho da Catedral, o edifício gigantesco começado no século XVI e concluído no início do século XVIII. Uma catedral de cinco naves, com um único transepto e um deambulatório com capelas. O portal principal é arte plateresca. O interior é uma mistura de planificação gótica e renascentista, pilares de altura desmesurada, riqueza por toda a parte.

Deambulação até fartar, arroz à valenciana na Praça do Triunfo, retomada a energia foi-se percorrer os bairros castiços de Granada, para cima em minibus, calcorreou-se depois até ao centro histórico. Não havendo bilhetes disponíveis para visitar a Alhambra, fez-se inscrição para uma visita guiada no dia seguinte no exterior e com visita ao Palácio de Carlos V. regressou-se a um dos pontos mais adoráveis do centro histórico a Carrera del Darro, aproveitou-se a visita ao Museu Arqueológico, aos banhos árabes e à Igreja de S. Pedro e Paulo, tudo somado foi uma caminhada de estalo.

O que nos mostra o Museu Arqueológico são patrimónios pré-históricos que vêm de 5000 a.C., passamos depois para as colonizações em que intervieram fenícios, entre outros, depois deu-se a presença romana; o Museu mostra-nos também património moçárabe, paleocristão e belos espécimes da presença romana. Foi na galeria superior e no terraço que tirei as últimas imagens com que hoje me despeço do leitor. Amanhã, entre outras incursões a inolvidável Alhambra e o Palácio de Carlos V.

Retábulo principal da Capela Real de Granada
Igreja do Sagrario (Sacrário), anexa à Catedral de Granada, possui este belíssimo púlpito barroco
Retábulo na Igreja do Sagrario com a representação da Crucificação de Jesus
Fachada e o interior da Catedral de Granada
Fachada da Catedral de Granada ao longe
A Alhambra vista do terraço do Museu Arqueológico de Granada
Na Praça Nova de Granada, vindo da Carrera del Darro apanhei um minibus para visitar El Albaícin e o Sacromonte, a zona mais característica da cidade. No Albaícin construiu-se a primeira fortaleza árabe de Granada, só restam vestígios das muralhas. Temos um labirinto de ruas e ruelas a trepar pela colina, há o pitoresco das pracetas, nada como andar a pé para captar todo o encanto do bairro de traçado árabe.
El Albaícin com a Serra Nevada ao fundo
Até à última grande insurreição moura, em 1568, tanto Albaícin como o Sacromonte eram habitados por mouros que tinham fugido para Granada após as perseguições cristãs em Baeza. É bom que se diga que o bairro é uma pitoresca área residencial, na qual voltou a constituir-se uma comunidade muçulmana, temos aqui um santuário do Flamenco, uma herança cigana que chegou aos nossos dias. À porta de um estabelecimento onde se exibe o flamenco não resisti a fotografar esta composição azulejar com a Serra Nevada ao fundo.
Outra recordação deste mesmo estabelecimento
Uma outra perspetiva da Alhambra tirada do Sacromonte
Mosaico da Vila Romana dos Mondragones, segunda metade do século IV
Couraça anatómica grega, encontrada perto de Almuñécar, século IV a.C.
Homem togado, escultura que se identifica com o Imperador Cláudio, encontrado perto de Piñar, século I d.C.
Uma outra panorâmica da Alhambra tirada do piso superior do Museu Arqueológico de Granada
E mais outra panorâmica da Alhambra

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 20 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27552: Os nossos seres, saberes e lazeres (714): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (235): A Sevilha de um viajante apressado, nem pode acudir à Sevilha essencial: La Giralda, o Parque de María Luísa, Torre del Oro e algo mais; a caminho de Granada - 2 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27576: Parabéns a você (2448): José Pedro Neves, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 4745/73 (Binta, Jugudul e Mansoa, 1973/74) e Pe. José Torres Neves, ex-Alferes Grad Capelão do BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71)

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Nota do editor

Último post da série de 24 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27568: Parabéns a você (2447): Fernando de Jesus Sousa, ex-1.º Cabo At Inf, DFA, da CCAÇ 6 (Bedanda, 1970/71)

Guiné 61/74 - P27575: Foi há 100 anos (3): O Natal de 1925 e a moda (francesa), na capa e contracapa de "O Domingo Ilustrado", um semnário "inócuo" que, cinco meses deposi, estava a dar vivas aos carrascos da I República


Contracapa (pág. 20): Legenda: "Lisboa elegante e moderna: À porta da elegantíssima étalage Pompadour no Chiado, as mulheres chics de Lisboa, apeiam-se duma deliciosa limousine Citroën da Cooperativa Lisbonense dos Chauffeurs, cujos carros vieram dar à cidade uma tão grande nota de civilisação"... 

Comentário do editor LG:  Numa legenda em duas linhas, detetamos 4 galicismos (étalage, chics, limousine,chauffeurs). O francês era, até á I Grande Guerra,  a língua da ciência e tecnologia, da medicina, da civilização, da cultura, da gastronomia e da moda...


Capa: Legenda:  "A cerimónia da exposição do menino nos templos de Lisboa. [ Desenho inédito do grande artista (Manuel) Roque Gameiro ] : Entre a multidão onde afloram cabeças que são admiráveis expressões da Raça, o sacerdote expõe o símbolo da eterna graça que é o Menino Jesus! Paz aos homens, paz nos corações!... Que a curta vida que vivemos, seja mais de beleza que de  tentação, mais de bondade que de rancor!"

Comentário do editor LG: Na litogravura do Manuel Roque Gameiro (filho do Alfredo Roque Gameiro), parece haver uma falsa mistura de classes sociais: nas igrejas também havia uma clara segregação socioespacial.


O Domingo Ilustrado, Ano I, nº 50, Lisboa, 27 de dezembro de 1925. Preço avulso: 1 escudo (Edição com 20 páginas, grande parte de publicidade) (Diretores: Leitão de Barros e Martins Barata). Cortesia de Hemeroteca Digital / Câmara Municipal de Lisboa.


1. Estávamos a cinco meses do fim da República (1910-1926), derrubada pelo  golpe militar do 28 de maio de 1926, que levaria à instauração da Ditadura Militar (1926-1933) e do Estado Novo (1933-1974). 

Sobre o semanário "O Domingo Ilustrado" (de que um dia dediretores foi o futuro cineasta Leitão de Barros), já aqui dissemos, citando  Rita Lopes, na ficha histórica disponível em formato pdf, no portal da Hemeroteca Digital / Câmara Municipal de Lisboa, que teve um vida efémera (janeiro de  1925 - dezembro de 1926);

(...)  "A sua curta existência coincide com um período de grande perturbação política e social, que muitos autores consideram mesmo de guerra civil latente, e que conduzirá à Ditadura Militar, instaurada pelo golpe militar de 28 de Maio de 1926.

(...) [Espelha] uma imagem profundamente negativa da política, enquanto jogo protagonizado por partidos, e, consequentemente, da própria democracia, enquanto sistema político. 

"Esta será a mensagem de fundo que trespassará subliminarmente todas as edições até ao golpe de 28 de Maio de 1926. Era então chegada a hora de aclamar sem reservas as forças que, sob o comando do general Gomes da Costa, se sublevaram em Braga e se põem em movimento para Lisboa para confiscar o poder." (...)

 Este semanário, "apolítico", "inócuo", que se pretendia aberto a todos, ao grande público, com muita parra e pouca uva (de que este nº 50, de 27 de dezembro de 1925,  é um exemplo), pôs-se de imediato ao serviço dos golpistas: 

«Este homem [general Costa Gomes] tem poder: Ajudemos este homem a salvar Portugal!» − proclama em primeira página, ilustrada com a bandeira nacional e uma fotografia do militar" (...).

O nº 50 traz na capa e contracapa ilustrações contraditórias de um Portugal, que na época ainda se resume a Lisboa, a cabeça de um vasto e desvairado império  e que está longe de ser um país moderno e desenvolvido. 

A circulação automóvel começa a mudar a paisagem da capital (há já uma cooperativa de "chauffeurs") e a moda parisiense instala-se no Chiado, burguês, chique, elegante... (A loja "A Pompadour", na rua Garrett, tinha sido inaugurada em 23 de junho de 1924.)    

Nesse ano de 1925, entre 4 e 13 de  julho, tinha-se realizado entretanto o I Salão Automóvel de Lisboa, no Coliseu dos Recreios. Na exposição estiveram presentes mais de 100 carros de cerca de 60 marcas diferentes (Buick, Mercedes, Chrysler, Studebaker, etc.). 

Há 100 anos Lisboa teria entre 6 a 9 mil veículos automóveis, entre 50% a 60% do total da frota nacional. Mas a "motorização" era já uma realidade imparável, alterando o quotidiano de uma cidade ainda dominada por elétricos, carruagens a cavalo e sobretudo peões que circulam livremente pelas ruas.

2. Nesse Natal de há 100 anos ainda se mantém, entretanto, a tradição do "beija-pé" do menino Jesus, nas igrejas, contrariando todas as boas práticas da saúde pública... 

O país estava ainda, lentamente, a recuperar da maior tragédia demográfica do séc. XX, que foi a "pneumónica" , a pandemia de gripe de 1918/19.  E a taxa de mortalidade por tuberculose era altíssima em 1925, agravada pelo regresso do  CEP - Corpo Expedicionário Português:  (i) aproximadamente entre 150 a 180 mortes por 100 mil habitantes a nível nacional; mas com grandes disparidades regionais; (ii) no distrito de Lisboa, a taxa rondava os 245 óbitos por 100 mil habitantes; e (iii) no Porto chegava a atingir os 300.

Restringindo-nos à "pneumónica",  estima-se que tenha sido responsável por um número de mortes superior ao de qualquer guerra ou desastre natural anterior em território nacional (com exceção da "peste negra"). 

Terão morrido cerca de 120 mil portugueses (2% do total da população, na altura de 6 milhões).  O ano de 1918 foi o único no século XX em que Portugal registou um saldo fisiológico negativo (mais mortes do que nascimentos), com uma perda líquida de mais de 70.000 pessoas.

Já agora acrescente-se que a epidemia manifestou-se em três momentos distintos: (i) maio/junho de 1918: uma vaga moderada, com muitos contágios mas baixa letalidade; (ii) outubro/novembro de 1918: a vaga mais letal, que paralisou o país, sendo nesta fase que a doença se tornou fulminante, muitas vezes matando em menos de 48 horas; e (iii) início de 1919: uma última vaga menos intensa, mas que ainda provocou milhares de mortos.

 A pandemia atingiu um país já de si fragilizado pela participação na I Guerra Mundial (Flandres, Angola e Moçambique), pela crise económica e financeira, pela instabilidade política do regime de Sidónio Pais e por graves crises de subsistência (fome, com todas as letras). 

Foi o colapso do incipiente sistema de saúde: total incapacidade de resposta dos hospitais e do corpo médico; falta de  caixões e coveiros; pânico generalizado  com o fluxo constante de funerais  (traduzido, por exemplo, na proibição dos  sinos das igrejas  tocarem a finados).

Face aos graves acontecimentos políticos e militares da época, e apesar da sua dimensão trágica,  a pandemia acabou por ser rapidamente esquecida e manteve-se assim durante décadas. Voltou a falar-se da "pneumónica" aquando da pandemia de Covid-19 (2020/21).
 
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Nota do editor LG:

sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27574: Notas de leitura (1878): Uma publicação guineense de consulta obrigatória: O Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
Com a maior discrição, a verve reivindicativa que temos notado do Boletim quase que se apagou, conquanto o responsável do Boletim avise solenemente os associados que se estava num quadro de grandes mudanças. A participação guineense do Boletim reduziu-se drasticamente, vamos ter artigos do Comandante Teixeira da Mota de cariz histórico, publicam-se as intervenções do deputado James Pinto Bull, há noticiário económico, verbera-se uma Biblioteca associativa que está vazia, chama-se a atenção dos associados para o que a Associação tem a dar, desde um fundo de assistência, apoio médico, um curso para tenistas, sucedem-se os artigos históricos tendo inclusivamente um artigo sobre o Líbano e a sua história. Conforme já informei o leitor, temos Boletim até 1966, escrevi para a Biblioteca Nacional, ali nada existe. E é tudo.

Um abraço do
Mário



Uma publicação guineense de consulta obrigatória:
O Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné – 6


Mário Beja Santos

O que posso dizer ao leitor sobre o ano de 1963 é que se alterou profundamente a natureza da escrita, é de admitir que a eclosão da guerra de guerrilhas tenha levado os associados à contenção, fruto das incertezas produzidas pelas alterações demográficas na região Sul, nas margens do Corubal, nas florestas do Morés. São convocados deputados e investigadores, chega-se mesmo a apresentar escritos de Brito Camacho e Paiva Couceiro. Logo no número de janeiro aparece um apontamento assinado pelo deputado da Guiné James Pinto Bull, sublinhando toda a conveniência em se incrementar a concessão de bolsas de estudo aos estudantes autóctones do nosso Ultramar, dizendo mesmo:
“A Guiné Portuguesa, com uma população de cerca de 530 mil habitantes, tem apenas treze indivíduos habilitados com um curso superior, o que corresponde a um formado por cada 41 mil habitantes, e onze indivíduos habilitados com um curso médio, isto é, um diplomado por cada 48 mil habitantes; encontram-se presentemente cursando escolas superiores e médias na Metrópole 36 bolseiros que terminaram os seus estudos na Província.”

É certo que se mantém o cuidado em apresentar os dados económicos sobre a exportação do amendoim, arroz, borracha, cera, coconote, couros, madeiras, óleo de palma. Está em curso na Associação um Fundo de Assistência para associados em estado de precariedade; há um clínico avençado na Associação que presta assistência médica.

Num outro número do Boletim reproduz-se a intervenção do deputado Pinto Bull na Assembleia Nacional, em 6 de fevereiro desse ano, lembra a quem está no hemiciclo que é preciso encarar mais objetivamente as aspirações da população quanto ao ensino geral, as bolsas de estudo em particular, a assistência sanitária fixa e móvel, a assistência social e os seus mais diversos aspetos; e de novo enfatiza que é muito baixo o número de guineenses com formação superior, estão praticamente ausentes de cargos diretivos no escalão médio-superior nas organizações. Fará uma desenvolvida exposição sobre o sistema educativo e apela ao crescimento das bolsas de estudo. Na sua esteira, temos uma extensa exposição do deputado José Fernando Nunes Barata sobre o estado atual do desenvolvimento da Guiné e as suas potencialidades. Outra questão marcante em diferentes números passa pela enumeração das vantagens da Unidade Económica Nacional, a política do Estado Novo demarcara até então os regimes pautais entre a Metrópole e as colónias, procurava-se a todo o transe sossegar os investidores e os proprietários e os agentes económicos em geral com alívios aduaneiros.

Chegou o momento de saudar o novo Comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné, o ainda Coronel Tirocinado Fernando Louro de Sousa. Surge o primeiro artigo do Comandante Teixeira da Mota dedicado a Honório Pereira Barreto, este falecera em 26 de abril de 1851, portanto há 104 anos. A Associação criou uma escola de ténis. Sucedem-se os artigos sobre a história da Guiné. Faz-se um abate exaustivo das comemorações do 46.º aniversário da Associação. Reapareceu a secção “Atentos à Legislação”. Faz-se o obituário do escritor Aquilino Ribeiro. Segundo artigo de Teixeira da Mota desta vez sobre a morte de dois franciscanos martirizados em 1742. Publica-se a notícia sobre a criação da Liga dos Amigos da Guiné Portuguesa, na Metrópole. Há um número completo dedicado ao obituário de Presidente da Associação, António José Osório Flamengo. Seguramente a pensar-se na comunidade sírio-libanesa publica-se um artigo intitulado O Líbano na História.

Fica-se com a sensação de que a vida associativa deu uma reviravolta e o diretor do Boletim dedica um texto aos perigos do individualismo, texto esse que termina com uma séria advertência:
“A Guiné prestou-se idealmente aos propósitos e manejos do individualismo mais desaforado, e, tendo sido alfobre de ganhunças, houve para si apenas as migalhas do lauto festim.
Chegados ao termo de uma época particularmente favorável há reprodução de cifras em progressão geométrica, em que as preocupações eram nenhumas, as oportunidades timbravam pela constância e os problemas financeiros quase não se punham porque o crédito era fácil, temos que reconhecer a superioridade, a argúcia, a inteligência dos indivíduos para melhor manobrarem. Os factos deram-lhes razão.
Doravante, porém…
A recente e inopinada reviravolta no tradicional sistema ‘quem tem olho é rei’ e o consequente estendal de complicações e vicissitudes, supomos venha a transformar, apesar de inveterados, os hábitos anti fraternos, se é que já não destroçou a até agora solidíssima razão do cisma isolacionista – ‘chacun s’arrête’. E ninguém nos convence que do colapso ao ‘debacle’ do individualismo medeie ainda muito tempo.”


Queixa do diretor do Boletim, a Biblioteca devia estar permanentemente às moscas…
Falando por mim, tive um estremeção quando vi esta imagem, instantaneamente me ocorreu a minha vida numa enxovia, alimentação rudimentar, sempre sujeitos a faltas de toda a ordem, com a agravante de que na época das chuvas transportávamos à cabeça e às costas, cheguei mesmo a meter pacotes de esparguete nos bolsos das calças, o vinho era uma zurrapa, mas a água era Perrier ou Evian, questionei sempre, sem resposta, havendo aqui água de Carvalhelhos, do Luso, e muito mais, a que título bebíamos obrigatoriamente Perrier ou Evian.
Eram outros tempos, o tabaco dava estatuto, era prestigiante, nas décadas seguintes vieram em catadupa as doenças cancerosas, os AVC, e tudo o mais que se sabe.
Raparigas Bijagós
Mulher Nalú
Pesca à linha no rio de Sonaco

Estas três últimas imagens foram retiradas de diferentes números do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, 1963

(continua)

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Notas do editor:

Vd. post de 19 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27548: Notas de leitura (1875): Uma publicação guineense de consulta obrigatória: O Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné (5) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 22 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27562: Notas de leitura (1877): A Polícia Militar na Guiné (1959-1974) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27573: Humor de caserna (229): "Uma ginjinha!... Pois dar de beber à dor é o melhor"... já lá dizia o A. Marques Lopes (1944-2024), em Barro, junto à fronteira com o Senegal, no Natal de 1968


Aerograma original do MNF (Natal, 1961)


Aerograma "canibalizado" pelo A. Marques Lopes (1944-2024) (Barro, Natal de 1968)

Imagens (e legendas): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)


1. Aerograma, edição de Natal, distribuído pelo Movimento Nacional Feminino (MNF) (Angola, 1961)... 

O alf mil at inf  A. Marques Lopes (1944-2024), da CCAÇ 3 (Barro,  1968/69), pegou no aerograma de natal do MNF, cujo "boneco" já vinha da 1ª (e única) edição, dezembro de 1961, e "canibalizou-o": 

(i)  pôs um chapéu alto, azul, na cabeça do São José, tipo "porteiro de hotel" (para não dizer "palhaço de circo");

(ii) tingiu de vermelho o manto de Nossa Senhora, bem como a "estola" do São José;

(iii)   pôs o soldado, "maçarico",  de  caqui amarelo, capacete de aço, e mauser com baioneta ao ombro (!) com uma catana  tingida de vermelho (de sangue), na mão esquerda;

(iv) mudou a cor da cara do "pretinho" que olha para o "maçarico", "seu protetor";  

(v) "incendiou" as tabancas... 

(vi) enfim, mandou um postal de "boas festas", muito pouco "ortodoxo", convenhamos (nada "católico" nem muito menos "patriótico"), à sua irmã e ao seu cunhado, no Natal de 1968... 

Em suma, não podia ter sido mais "mauzinho". A maior de nós poupava deliberadamente as famílias, nunca ou raramente falando da guerra.... Direta ou indiretamente.

Ora estamos em plena guerra colonial.... O Marques Lopes  tinha regressado à Guiné, de depois de  recuperado em Lisboa, de um ferimento grave no subsetor de Geba.  Teve de cumprir o resto da comissão. Agora em rendição individual, é o comandante de um  pelotão chamado "Jagudis", de uma companhia de guarnição normal (dita "africana"), colocada junto à fronteira com o Senegal, em Barro. A CCAÇ 3.

(...) " Querida irmã e cunhado, um Natal feliz  e que o Ano Novo seja sempre melhor que o anterior.  António Manuel... 

(PS-) Uma ginjinha!.. Pois dar de beber à dor é o melhor" (...)...

 
2. Análise das duas ilustrações do aerograma de Natal (19161 e 1968):



A. Marques Lopes e o seu guarda-costas
(i) é uma  "brincadeira", uma "irreverência", quiçá uma " provocação ", do nosso saudoso A. Marques Lopes;

(ii) mas, a esta distância, e conhecendo a sua atitude crítica face à guerra (leia-se o seu livro autobiográfico, "Cabra-Cega"), podemos considerá-la  também como um exemplo típico do que se chama "subversão do objeto": ele pega na propaganda oficial, higienizada, climatizada e paternalista, ou melhor, maternalista, do Movimento Nacional Feminino (MNF), e contrapõe-lhe a realidade da guerra, nua e crua;

(ii) é uma "cena", que podemos qualificar como sendo de "contestação"  através do desenho e do humor negro, num dos contextos mais difíceis da nossa história recente, a guerra na  Guiné (1961/74):

(iii) o contraste entre as duas imagens (1961 e 1968) revela o "gap"  entre a narrativa oficial do "sistema" (de que o MNF fazia parte), e a vivência dos  combatentes no terreno;

(iv) o aerograma de Natal do MNF (com um "boneco" inalterado desde 1961) é uma "idealização",  uma visão ingénua, bucólica, "cristã" e "civilizadora":  o soldado (ainda de caqui amarelo, capacete de aço e mauser)  é um protetor sereno, bonzinho, enquanto o "pretinho" olha para ele com enlevo e admiração; 

(v) no outro lado do aerograma,  a Sagrada Família, na gruta de Belém,  abençoa a missão nas NT (que impõem ou repõem a ordem e a paz numa "guerra subversiva", ou seja, "surda e suja" como  era aquela guerra, de um lado e do outro da barricada);

(vi) a versão do  nosso camarada A. Marques Lopes (um "histórico" da Tabanca Grande), e a que podemos chamar de  "realismo crítico", mostra o "outro lado da moeda": em finais de 1968, no final do consulado do general Arnaldo Schulz, a paz está longe de chegar à Guiné, o conflito prolonga-se, "sangrento", desmentindo a "propaganda" e a "idealização" do MNF;

(vii) as manchas de tinta vermelha, num lado e no outro,  realçam ainda mais  a cena "iconoclasta", a da profanação do sagrado: o chapéu alto do  São José transforma a efeméride religiosa (o nascimento do Menino Jesus) numa farsa, quase um circo, em que se critica implicitamente a hipocrisia de uma guerra que também era feita em nome de valores cristãos e civilizacionais; 

(viii) por fim, temos a frase final, burlesca, pícara: "Uma ginjinha!... Pois dar de beber à dor é o melhor" (parafraseando a letra do fado da "Mariquinhas", com música tradicional do fado "Vou dar de beber à dor", letra de Alberto Fialho Janes e música de Alfredo Marceneiro e Salvador Tavares. imortalizado pela Amália Rodrigues, o próprio Alfredo Marceneiro, a Hermínia Silva, entre outros); é o desabafo (universal) do soldado que tenta anestesiar a violência da guerra (de todas as guerras), com a ginjinha, a cerveja, o uísque, a aguardente de cana, a "água de Lisboa", o vodca, o tabaco e outras"drogas"...

Enfim, fica aqui uma  nota de humor na quadra festiva de Natal e Ano Novo, que se quer de paz, alegria, bonomia, tolerância...  E é  também uma forma singela de lembrar e homenagear o nosso querido cor inf ref António Marques Lopes (1944-2024).

(Pesquisa: LG + IA / Gemini)
(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)
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