sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14247: Blogpoesia (401): Me fere o tirar a vida (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 11 de Fevereiro de 2015:

Comando a NT. Ao me preparar para uma patrulha; segurança ou emboscada, os sentidos multiplicam-se. Atento ao mínimo pormenor. A distância diminui. Os olhos ampliam as imagens. A pica beija o chão, meigamente bate. Se somos agressivos, rebenta. O coração cadenciado como o melhor relógio do mundo. De pressa, não! A pica presa, como a vara do pastor.

Surge o inimigo, inicia-se o fogo, o meu coração surge como um sino manejado por um sacristão aprendiz.
Num ápice, fico anestesiado, a mente o obriga. Controlo o medo que por milésimos de segundos invadiram o meu ser. Tem calma! Vislumbro, e logo de seguida, sábio de tal modo que antecipo-me ao tempo. Com nitidez, o mundo na mão. E a sabedoria encontra resposta imediata para tudo.

Quantos mortos? Feridos? Evacuações, o radiotelegrafista tem de informar:
- Nenhum morto! Sete a evacuar!

Mas qual a memória, que matemática e fotografia? Os olhos munidos de lentes e de maquinetas fotográficas dão a resposta certa.
A razão de colocar aquela orquestra é a pausa, a liberdade que regressa e mora dentro de mim. Transformo-me em ave que voa na pauta. Música nascida na pureza de notas libertas.

Interessa-me mais a poesia, gostava de saber, mas necessito de uma ajuda, de um empurrão. Uma opinião basta. Os meus dedos tocam o teclado, por acaso não com a delicadeza que se trata uma mona ou um diamante em bruto. A poesia tem de ser facetada, e eu só trabalho o tosco. Falta-lhe, talvez o nome mais apropriado: ALMA.

Como me sinto muito em baixo, nunca vivi um período tão mau, desde o dia 26 de Setembro. Se paro morro…
Mário Gaspar


Me Fere o Tirar a Vida!

Mário Vitorino Gaspar

“Uma guerra ganha-se com a razão da força.
E o vencedor conta-a depois com a força da razão.”
Vergílio Ferreira

- Amanhã ao despertar do sol, Corredor da Morte!
Quebra o silêncio a voz do capitão,
cheira-me a sangue em tal reunião.
As sílabas me sugam o rosto, será que choro?
quererei beber as lágrimas de quem adoro?
Riso de malmequer a olhar a lua, o furriel miliciano:
- Deus, deixa-me viver só falta um ano!
Naquele cemitério de trevas vamos ter sorte!

O sol a me sorrir fontes de madrugada
somos pastores beliscando a terra com carinho,
ao ombro como um cajado, a G3 meu amorzinho.
Fiéis camaradas com precisão alinhados,
alguém grita comigo: - Piquem, meus adorados!
seja fornilho, armadilha ou mina
mascarada, nariz de riso de palhaço pequenina.
Piquem com amor e não haverá nada!

Árvores rainhas erguem-se em prece: Guileje à vista!
De verde salpicados, soldados nos seus postos
sementeiras de suores nos seus rostos.
Risonho a meu lado, do tão jovem que foi
rompeu um veterano, eterno herói.
Lares distantes, destas terras solitárias...
Na guerra existe ódio e campas tumultuárias.
Raízes fortes de Portugal. Há quem resista!

Chega a hora para comer e descansar
vou beber uma cerveja e mais nada
ainda há gente rindo, feliz e acordada.
Sonhar com as namoradas… dormir!
nem sequer o camuflado vou despir.
Beijar a vida, beijar o beijo, sem dor
sonhar sementes de paz cobertas de amor.
Sono descansado, salta o coração a palpitar!

Partida, noite escura, beijar rosas mas a picar
G3, bazucas, MG’s, morteiros, todos carregados
rompemos a mata e o tempo, e chegamos.
Esperar a ameaça chegar, tarefa dura
o tempo custa o silêncio adormece, é altura!
Há quem desespere a espera e não a suporte
Cheiram-se aromas do Corredor da Morte.
Vai andar a roda, o sorteio está no ar.

Mulheres quais peixeiras surgem à frente
coroadas de caixotes, pressa no andamento,
não é fruta nem peixe, é armamento.
O pão de liberdade para o inimigo
é amor forte de libertação, antigo.
Digo a ciciar: - deixá-los avançar!
Sinal silencioso, dou ordens para atirar
Matar para não ser morto, é hora de o ter presente.

Tiroteio vira inferno, inunda o belo de ais
há vómitos de morte, das morteiradas
pavor de barrigas sangrando esburacadas.
Semeiam-se palmos de terra para sepultura...
recolhem feridos e mortos e sem cura.
Mortos presos nas covas e onde a glória?
Nós vivos saboreamos a vida na memória,
chegados ao lar o que contar aos pais?

PAIGC grita responde sem parar,
debaixo de tiros e rebentamentos
mais mortos caem, outros com ferimentos.
Vagueamos num cemitério, floresce-nos a sorte
nem um beliscão um ferido uma morte.
Um dos meus heróis: - Escapámos desta!
Em Guileje, em Gadamael depois, será festa.
Beliscaremos umas cervejas para alegrar!

Atravessamos a bolanha comprida,
à altura da cabeça está o capim
ainda há que andar para chegar ao fim.
Pecarás! – tinha ouvido na igreja mas é guerra
longe da família do amor e da nossa terra!
Lembro de novo o padre: - Não matarás
se fores um malfeitor és igual a Satanás!
Coisa não estranha… me fere o tirar a vida!

Temos de orar, pedir perdão a Deus?
Choro sem lágrimas sei que Ele existe.
Sou um girassol sem sol, quedo e muito triste.
Matámos e ferimos gentes pequei e pecamos
Deus manda amar e não amamos …
Dar paz ao inimigo e um abraço?!
O poeta pinta entre os povos o enlaço
verso pincel ou cinzel com fundo de céus!

Senti tudo o que amava, num singelo olhar:
alma e coração do meu golfinho,
lezíria, fragatas, bateiras, o beijinho
do Pai, minha Mãe heroína sem fala.
Pincéis de poemas, letras, e não cala
a silvestre e brava amoreira de amor.
No coração estagna-me uma linda flor
revejo a fuga do Sol ao infinito rumar!

A morte é… a morte não gera amor,
ter de matar para não morrer?
A morte padece e faz padecer
é a solidão da multidão no cais a partida,
não é ser é nada ser nesta vida.
Ver-se culpado pelo sangue que se derrama
do corpo do seu inimigo, é drama!
Ó meu Deus por tal te imploro, Senhor.

Passada a bolanha cresce a floresta
perdem-se versos cresce a morteirada
retarda-se o tempo na retirada.
Irmãos de Guileje, destino a atingir!
Saboreamos o sumo do suor, a fugir
tocando nos secos lábios e bebemos
sonhos sonhados, mundo melhor não vemos
e este é reles e na verdade não presta!

Amor e rezas além dos mares, flor sorri…
Ainda longa é a viagem até à chegada.
Incólumes das mordidelas da emboscada,
sãos e soltos de vida, às portas das mortes
passaram. Regressa o riso aos soldados fortes
prontos a cumprir, a cuspir vómitos da guerra
pedindo a Deus o regresso à sua terra.
Toco no meu corpo, corre a vida, não morri!…

Amo a vida, a paz e com fervor
corro entre pedras, seguro a vida.
O coração ri à pincelada quente e florida
espreitando as cores da ave vistosa
que me voa no pensamento. Que formosa!
Rompo dentro de mim em crescimento,
amo a vida o amor a cada momento.
Beijo o vácuo o espaço até ao amor.

Sonho. Aves livres desenham cada nota musical
dirige a orquestra o maestro e a sonhar
usa a batuta como ave leve a voar.
As notas riem na pauta a libertar
sons melancólicos sobre o tema amar:
sons de bandolim banjo cavaquinho trombone
trompa concertina cravo pratos saxofone,
música única que é língua universal.

Pífaro, cítara, xilofone, gaita, fagote,
violino triste, poesia leve rima sobrenatural!
E o toque da harpa ou da lira, brisa breve e musical?
Chora a guitarra, notas breves da noite do fado,
violoncelo e rabeca riem para mim soldado.
Ferrinhos e pandeireta em música tão distinta,
piano e viola quadro de amor do pintor que pinta
alegria nos fardados. Risos há quem os adopte.

Saímos de Guileje carimbando o solo com a pica.
Ecoam cristalinas as notas da pauta.
Armado, pétalas floridas se soltam da flauta
e nasce a tristeza nas teclas do acordeão.
Esqueço a guerra, pinto um poema uma oração
o bigode do meu pai, a minha mãe de tranças…
os meus sobrinhos riem felizes crianças.
No clarinete e no tambor a nostalgia fica.

O compositor criou mel, que façanha esta?
Chegámos folhas caídas e velhas, mas risonhos
a mata recorda os amigos mortos, plantados os sonhos
eis que se escuta o hino em grito triste do trompete...
que a alegria dos soldados não compromete.
Beber umas cervejas, tomar banho, jantar e escrever
cartas amorosas para ninguém conhecer
que na guerra se mata e se morre, não é uma festa.

Sonhava. A vida é vida se for vivida com amor
se nascer na fonte dos beijos que beberes
saboreando o grão dos trigos que comeres.
A vida só é vida se entre pântanos nascer a flor,
a vida só é vida quando não vejas mais dor
se saíres vencedor sem muito sofreres
e amares na humanidade todos os seres!
A vida só é vida se for vivida, sim senhor.

Gritos aflitivos na chegada, chamadas e risos felizes.
Voam saltitos de flor em flor, danças de gente louca.
E o pobre sem amor, liberdade e pão para a boca?!
No fim a vida semente há-de romper com carinho
dar liberdade às flores e aos pássaros um ninho...
Haja humanismo, solidárias acções
Em prol deste mundo que sonhava de paixões.
A Guiné me espremeu os sonhos, de crescidas raízes!

Mário Gaspar
____________

Nota do editor

Último poste da série de 27 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14196: Blogpoesia (400): Auschwitz (J. L. Mendes Gomes)

6 comentários:

Bispo1419 disse...

Meu caro Mário Gaspar:
O poema é longo, assim me pareceu à primeira vista, mas cheguei ao fim da sua leitura sem me cansar e com vontade de ler mais.

Tem fortes e belas imagens poéticas. Saliento estas que transportam tanto sofrimento e que me emocionam pela sua beleza, trazendo-me à memória a verdade que transmitem:

"Saboreamos o sumo do suor, a fugir / tocando nos secos lábios e bebemos / sonhos sonhados, mundo melhor não vemos / e este é reles e na verdade não presta!"

E como é bela esta referência à "picagem" dos caminhos:

"somos pastores beliscando a terra com carinho / ao ombro como um cajado, a G3 meu amorzinho"

Muito obrigado por tão bem exprimires o que muitas vezes senti:

"Sou um girassol sem sol, quedo e muito triste"

Muitos parabéns, sr poeta!

Um grande abraço do
Manuel Joaquim

Anónimo disse...

GOSTEI.

grande abraço
JPicado

Anónimo disse...

Mário Gaspar, Gosto da sua poesia e não estou de acordo consigo quando diz que o trabalho é tosco e que talvez lhe falte nesta sua poesia ALMA.
Como assim?Quem escreve esta poesia tem que ter ALMA.A poesia e o autor.Parabéns!
Carlos Gaspar

Mário Vitorino Gaspar disse...

G3 Meu Amor

G3 me encobria!
Amo-a, um beijo mais…
Meu amor me sorria.
– Me trai jamais…
Flor murcha abria:
– Pétalas a sonhar
Meu ombro acariciado…
O lábio beijado
Quero amar:
– G3, meu amor amado…

Mário Vitorino Gaspar

Carlos Vinhal disse...

Amigo Mário
Desculpa lá, mas amar a G3?!?!?!
Um instrumento de morte que nos puseram na mão sem perguntar se a queríamos? Esquece lá a G3 e ama quem te rodeia e quem te ajuda no dia-a-dia. A G3, que a leve o diabo para bem longe assim como a todas as armas.
Mete na tua cabeça que fomos civis armados e mais nada. Já lá vão esses tenebrosos tempos, temos que agora celebrar a paz e a amizade entre os homens. Faz um poema com flores no lugar da G3 e das minas que tanto veneras. Esta terapia é sanitária para a saúde mental e física. Pratica-a. Tenta limpar o passado com o presente, e olha que isto a está a poucos anos. Aproveita enquanto é tempo.
Abraço
Carlos Vinhal
Desmilitarizado desde 11 de Abril de 1972.

Mário Vitorino Gaspar disse...

Com e sem G3


Era medo de nada,
beijei minha G3 logo que a vi.
Armado com a bela, e amada
Seu sabor e amor bebi.
– E Carlos boca calada…
Estás nervoso…
Da tua G3 perdida?
Carlos, não está esquecida
Recordo e radioso
… Enfim, salvou-me a vida…

Carlos, esse tempo passado…
Vou chorá-lo.
Esqueço e passa ao passar.
Odeio os poemas a rima de matar!
Quero amar e ser amado
Amar, amar e amar…
A essência fria da morte
Beija lábios de contentamento
Esse ignóbil pensamento.
Imploro amar e ter a sorte
Pisando esse tormento.

Mário Vitorino Gaspar