terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14239: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (8) - Reportagens da Época (1967): 10 de Fevereiro, ataque a Guidaje

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 8 de Fevereiro de 2015:

Amigo dr. Graça:
Saúde para si, e familiares.
Tomo a liberdade de enviar mais um pequeno cadeado feito de palavras, que poderá publicar .

Um abraço amigo.
Domingos gonçalves


MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)   
REPORTAGENS DA ÉPOCA

8 - ATAQUE A GUIDAJE

Binta, 10 de Fevereiro de 1967

Às quatro horas e meia da madrugada o cifra bateu à porta do capitão. Tinha chegado uma mensagem tipo relâmpago.

Desde as quatro horas da madrugada que o destacamento de Guidage estava a ser atacado

Quase de seguida o capitão chamou-me.

Embora já me tivesse apercebido do que se estava a passar, levantei-me e fui perguntar-lhe o que havia de novo.
Ele disse-me:
- Os gajos estão a bombardear Guidage, com bastante intensidade. Apesar da distância escutam-se aqui os rebentamentos.

Efectivamente, o silêncio da noite estava a ser quebrado, lá muito ao longe, pelo detonar das granadas, que as armas, nossas e deles, iam vomitando.
Era uma espécie de trovoada, muito surda, que a aragem branda, que soprava, ajudada pelo silêncio da madrugada, trazia até aos nossos ouvidos.

O capitão continuou:
- Prepare o seu grupo de combate para levar reforço ao destacamento, logo ao alvorecer.

Ainda durante a noite mandei acordar os soldados, e os furriéis, os condutores e os mecânicos, mandei carregar nas viaturas as munições necessárias para o que desse, e viesse, durante a viagem, e para repor o “stock” do destacamento.

Ao alvorecer tudo estava em condições de iniciar o movimento para Guidage.

Ao alvorecer iniciei a caminhada para Guidage, onde cheguei (chegámos) pelas nove horas.
Foi desolador o quadro que nos esperava.

Destacamento de Guidaje
Foto: © Albano Costa

A tabanca da população estava totalmente destruída pelo incêndio causado pelo bombardeamento. Era um panorama dantesco, que estava à nossa espera.

A população perdeu as casas, as roupas, algum dinheiro, que possuía, as reservas alimentares, e tudo quanto necessitava para levar uma vida pacata, despreocupada, e quase feliz.

Homens e mulheres, velhos, novos e crianças, todos estavam profundamente tristes.
Tudo a guerra lhes tinha levado, no escasso período de algumas horas.
Esta guerra, que é feita em nome do povo, e para garantir a liberdade, e o bem-estar desse mesmo povo, vai pouco a pouco destruindo os bens, as fazendas, e as próprias vidas, que a guerrilha diz representar e defender.

A ideia pode mesmo ser bonita.
Mas nada justifica que se destruam pessoas, ou se martirizem populações, em nome de uma ideia, que nunca poderá valer tanto como uma vida.

No rosto de toda aquela gente apenas aflorava um sentimento de revolta, e desespero, e uma tristeza muito grande.
Em escassos minutos, numa noite que nunca chegarão a esquecer, aquelas famílias perderam tudo! E perder tudo, mesmo para quem não tem poucas coisas para perder, é perder sempre muito.
Restou-lhes, pelo menos, a vida.
A vida para poderem continuar a sofrer, e a lutar por um mundo melhor.

Para além dos prejuízos materiais havia ainda a lamentar a morte de duas pessoas, e vários feridos com alguma gravidade.
A tropa que, por cúmulo da sorte, nem um beliscão sofrera, apresentava-se com um aspecto louco.
A guarnição não passava de um conjunto de homens desvairados, cheios de pavor, a deambular entre destroços.

Naquele dia, e àquela hora, apenas o desespero, e o desalento, afloravam no rosto melancólico de cada soldado.
O comandante do destacamento, sem me dizer uma palavra, levou-me ao edifício do comando, uma casa já meio arruinada, cujas portas e paredes estavam esburacadas pelos estilhaços, e mostrou-me um monte de invólucros de granadas de canhão, de morteiro, de munições de metralhadoras pesadas, e de armas ligeiras, que os soldados já tinham recolhido, nos locais de onde tinha sido desencadeado o bombardeamento, e disse-me:
- O ataque foi só isto, que estás a ver. Os tipos estiveram mesmo junto do arame farpado. Isto poderia ter sido um desastre enorme. Apesar de tudo, ainda tivemos muita sorte. Se eles tivessem melhor pontaria tinham arrasado não só a tabanca, mas também o aquartelamento. Assim, limitaram-se a destruir a tabanca, através do fogo que as explosões atearam ao capim dos telhados. Nas nossas instalações apenas acertaram com os primeiros tiros, causando-nos os estragos que estás a ver.

Enquanto se procedia à descarga das munições, que deviam ficar em Guidage, fui com ele dar uma volta pelo meio da tabanca destruída.

- A única palavra que encontro para descrever aquilo que vi chama-se: Desolação.

Depois de, através do sistema de transmissões, que não fora afectado, ter contactado o comando da companhia, e do batalhão, colocando-os ao corrente de tudo o que se passara, mandei a população preparar-se para abandonar Guidage, onde não tinha mais condições de alojamento, nem de subsistência.
Ainda antes do meio-dia, com a tropa a caminhar a pé, e com as viaturas superlotadas de crianças, mulheres e velhos, pus-me a caminho de Binta.
Se toda aquela gente caminhasse a pé, estaríamos perante a imagem um novo êxodo bíblico.
Assim, aquilo era uma caravana de pessoas apavoradas, cobertas de pó, escoltadas por um grupo de soldados receosos e cansados, pessoas que fugiam do inferno, e iam a caminho, talvez, de um purgatório temporário.

Em Guidage ficaram apenas alguns voluntários que, mesmo tendo perdido tudo, preferiram ficar com a tropa, na terra que, afinal, é a deles.

Para além do cansaço provocado por uma longa viagem feita quase sempre a pé, e sob um sol ardente, chegou-se a Binta sem mais problemas.
A população de Guidage, logo que chegou a Binta foi recolhida pelos familiares da mesma etnia.
Esta gente é toda muito solidária.
Enquanto há comida, comem todos.
Quando a comida falta, todos passam fome.

Depois, informei o capitão sobre tudo o que vi em Guidage, e sobre as condições em que a tabanca ficou, e dei por findo o meu trabalha de hoje.

Ao fim da tarde o capitão deslocou-se a Farim, em LDM para falar com o comandante do batalhão sobre as condições em que ficou Guidage, após o ataque.

Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14033: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (7): Guidaje 1967 - Assalto a Cumbamory - Operação Chibata

2 comentários:

José Nascimento disse...

No entanto o PAIGC dizia que não atacava populações, o que era uma pura mentira de propaganda. Imagino qual seria o trauma dessa população.

antonio disse...

Revejo-me exactamente numa situação idêntica em Copá em Janeiro e Fevereiro de 1974.
As populações eram sempre grandes vítimas destas situações embora nós os militares sabe Deus o nosso estado de espírito.