sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14246: Notas de leitura (681): "Os Princípios do Pan-africanismo", por Charles Olapido Akinde e “Os Condenados da Terra”, por Frantz Fanon (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Abril de 2014:

Queridos amigos,
Quando Jean-Paul Sartre acedeu prontamente a prefaciar este documento que é um manifesto do Terceiro Mundo – extremo, inteiro, incendiário, mas também complexo e subtil, como observou Simone de Beauvoir, era a guerra da Argélia que tinha presente, a Argélia dividia os franceses que demoraram a perceber que a emancipação daquele povo fazia parte de uma corrente caudalosa irreprimível.
Sartre saudou a novidade e o poder de análise de Frantz Fanon. Nunca, até então, um teórico se debruçara sobre a violência e como esta transforma as mentes do colonizador e do colonizado.
Fanon foi desassombrado na sua análise, pôs a nu a fragilidade dos partidos frente ao mosaico étnico, a sua ingenuidade quando deu prioridade à violência urbana, disseca as debilidades da união africana e a avidez das elites nacionalistas que pretendem exclusivamente tomar o lugar das elites coloniais e repetir-lhes as operações, mudando alguma coisa para que tudo fique na mesma. Sartre mostrava-se otimista, Fanon não tanto. Lamentavelmente, os receios de Fanon passaram a ser a dolorosa realidade dessa África que se tornou independente.

Um abraço do
Mário


Os princípios do pan-africanismo e Frantz Fanon (2)*

Beja Santos

Obra ímpar da reflexão sobre o colonizador e o colonizado, “Os Condenados da Terra”, por Frantz Fanon, Editora Ulisseia, foram editados entre nós logo a seguir à edição Maspero (1961) e prontamente postos fora do mercado. É dos poucos libelos deste período marcadamente anticolonial que ainda hoje se pode estudar, a despeito das rugas do tempo. Não havia, nem houve, tão pesada e adequada reflexão sobre a violência do colonialismo, o despertar da consciência nacional no terceiro mundo, a pujança e as fraquejas da cultura nacional. Fanon, médico especializado, irá na última parte do seu incontornável ensaio analisar a guerra colonial e as perturbações mentais, no contexto argelino, foi aí que ele trabalhou e se apercebeu dos dramas da guerrilha e da contraguerrilha em termos de saúde mental.

Começa por traçar um perfil dos protagonistas no mundo colonial: mundo compartimentado, maniqueu, mundo de estátuas: a estátua do general que faz a conquista, a estátua do engenheiro que construiu a ponte. A primeira coisa que o nativo aprende é a colocar-se no seu lugar, não passar dos seus limites. O colonizado está sempre alerta, decifrando os múltiplos signos do mundo colonial; nunca sabe se passou ou não o limite. Frente ao mundo determinado pelo colonialista, o colonizado presume-se sempre culpado.

Frantz Fanon disseca a violência em meio colonial. A violência é a intuição que as massas colonizadas têm de que a sua libertação deve fazer-se e isso não pode acontecer senão pela força. Mas por que aberração do espírito esses homens sem técnica, esfomeados e debilitados, não conhecendo os métodos de organização, chegam a convencer-se de que apenas a violência poderá libertá-los? Os homens colonizados, esses escravos dos tempos modernos, estão impacientes. Os povos subdesenvolvidos fazem saltar as suas cadeias e, o mais extraordinário, é que o conseguem. O homem colonizado liberta-se em e pela violência, e cita longamente Aimé Césaire, na sua tragédia “As Armas Milagrosas”. O desenvolvimento da violência no seio do povo colonizado será proporcional à violência exercida pelo regime colonial. Nas lutas armadas, há o que se podia chamar o limite sem regresso. É quase sempre a enorme repressão que engloba todos os sectores do povo colonizado. A mobilização das massas, quando se realiza como motivo da guerra de libertação, introduz em cada consciência a noção da causa comum, do destino nacional, da história coletiva. O país colonialista reprime de várias maneiras: procura desnortear falando no papão comunista, é a tentativa de descansar os colonos quanto à motivação da luta, dá-lhes uma razão terrível e exógena; ameaçam com o regresso à Idade Média se acaso houver independência, faltarão investimentos e a economia do país ficará de bruços. Com razão ou sem ela, a Guerra Fria entrou no processo da descolonização.

O ensaísta entra agora na zona mais polémica da sua reflexão, a organização dos partidos políticos, as suas relações com os chefes tradicionais, os sucessos e fracassos da propaganda dos partidos nacionalistas e como, em muitos casos, os camponeses voltam as costas a esta luta de libertação. Lembra que há a cidade do colono, a periferia dos assimilados e os vastos círculos do lúmpen-proletariado, onde estão desempregados, desclassificados que poderão aderir à ação militante. Esta massa pode entrar na sublevação, aderir ao terrorismo urbano, entrar na agitação. De um modo geral, esta atividade está condenada ao fracasso, as forças coloniais em meio urbano ganham sempre. E disserta sobre essência da guerrilha, é um dos seus textos mais belos:
“Na guerrilha, a luta não é onde se está, mas sim onde se vai. Cada combatente leva a pátria em guerra entre as suas mãos vazias. O exército de libertação nacional não é o que enfrenta sempre o inimigo, mas o que se desloca de aldeia em aldeia, que se concentra na selva e embosca as colunas do adversário”. O colonialismo procura apoio junto de grupos de indígenas, sobretudo aqueles que têm vínculos atávicos a regimes feudais ou onde prepondera o peso religioso. Enfim, os militantes nacionalistas têm tudo a ganhar em não dar uma luta frontal ao opressor em meio urbano. O peso da formação política é crucial pois, como ele adverte, não devemos esquecer as desventuras da consciência nacional, os paradoxos ditados pela economia, pela burguesia que se move à volta do processo económico colonial. A burguesia nacional, chegada a independência, comete habitualmente o erro de nacionalizar em massa com um propósito egoísta, como ele diz polemicamente: “Nacionalização significa exatamente para essa burguesia transferir para os autóctones os privilégios herdados da fase colonial. Como a burguesia não possui meios materiais nem meios intelectuais insuficientes, limitará as suas pretensões à apropriação das casas comerciais ocupadas antes pelos colonos. A burguesia nacional ocupa o lugar da antiga população europeia. Acaba por servir de correia de transmissão a um capitalismo disfarçado, transforma-se em agente de negócios da burguesia ocidental”.

Percebe-se como este ensaio despertou celeuma e vivos debates com as figuras revolucionárias. Amílcar Cabral leu atentamente este poderoso ensaio, sabe-se que foi importante na sua formação teórica, na sua análise da vanguarda revolucionária e no dever da burguesia aderir aos propósitos revolucionários sob pena de se suicidar como classe.

O tema da unidade africana não foi descurado por Fanon. O perigo vem dos regionalismos: “A burguesia nacional, compensa apenas nos seus interesses imediatos, como não vê para lá do seu nariz, mostra-se incapaz de realizar a simples unidade nacional. A frente nacional, que havia feito retroceder o colonialismo, desintegra-se a consome a sua derrota”. O colonialismo utiliza estas fraquezas, utiliza a religião que divide o povo e estabelece a discórdia, promove os chefes que não querem ver disputado pelos nacionalistas o seu poder tradicional.

Detém-se longamente sobre a cultura nacional e as lutas de libertação. É indispensável recuperar todas as obras criadoras que os colonialistas não podem manipular: a olaria, as tradições orais, a música, a dança, todo o artesanato, há que lhes conferir um estatuto cultural onde o nativo vê exotismo e gosto dos subdesenvolvidos, esta cultural nacional é o pilar da consciência africana e da especificidade da nação, por isso a libertação nacional torna-a obrigatoriamente presente no cenário da História.

E chegámos às conclusões, que Frantz Fanon transforma em manifesto:
“Há seculos que a Europa deteve o progresso dos outros homens e os submeteu aos seus desígnios e à sua glória; há seculos que, em nome de uma falsa aventura espiritual sufoca quase toda a humanidade”.

“Para o terceiro mundo, trata-se de recomeçar uma história do homem que toma em conta ao mesmo tempo as teses, algumas vezes prodigiosas, sustentadas pela Europa, mas também os crimes da Europa, o mais odioso dos quais foi, o esquartejamento patológico das suas funções e a desintegração da sua unidade. Não paguemos um tributo à Europa, criando Estados, instituições e sociedades nela inspiradas. A humanidade espera alguma coisa de nós que não seja essa imitação caricatural. Se queremos transformar a África numa nova Europa, confiemos, então, aos europeus os destinos dos nossos países. Saberão fazê-lo melhor que os mais dotados de nós”.
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Nota do editor

(*) Poste anterior de 9 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14235: Notas de leitura (680): "Os Princípios do Pan-africanismo", por Charles Olapido Akinde e “Os Condenados da Terra”, por Frantz Fanon (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Todos estes africanos das ex-colónias francesas, podiam ter as melhores das intenções políticas, como Amílcar Cabral e muitos, não todos, os dirigentes dos Movimentos da Guiné e Angola e Moçambique.

Mas ao aderirem às políticas da guerra fria e guevarismos dos terceiros mundismos, estavam a chamar toda a violência para África, que ia fazer e está fazendo esquecer toda a violência da escravatura dos séculos passados.

Então os países mais ricos é onde as populações correm mais riscos.

Mas até que esses africanos estavam bem preparados, veja-se a desenvoltura daquela entrevista de Manuel dos Santos ao último Expresso, e tantos anos por entre a chuva torrencial sem se molhar.

É um dos pouquinhos sobreviventes para testemunhar.