sábado, 24 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5147: Historiografia da presença portuguesa em África (26): A Literatura Colonial Guineense (Leopoldo Amado) (III): Até ao Portugal democrático

A literatura colonial guineense (3)

Por Leopoldo Amado

(Epílogo)

Da década de 40 até ao Portugal democrático

Entretanto, a década de 40 inicia-se com um acontecimento importante: a capital da Guiné é transferida de Bolama para Bissau, e dela resulta que Bissau cresce a olhos vistos, enquanto Bolama perde a sua vitalidade. Na verdade, a transferência da capital para Bissau foi um duro golpe para a elite africana de cariz pequeno-burguesa de Bolama. Consequentemente, a inteligentsia guineense, que era sobretudo representada por bolamenses militantes, dispersou-se por imperativos de força maior. Por isso, a actividade literária e cultural em geral foi o primeiro sector a apresentar sinais palpáveis de um retraimento significativo, a ponto de se paralisar qualquer actividade editorial na Guiné, exceptuando as publicações do Boletim Oficial da Guiné.

Foi o Arauto* que quebrou este silêncio editorial em 1943, quando as autoridades religiosas sentiram que as suas actividades careciam de um meio de divulgação, dado o crescimento cada vez maior da população católica guineense. Aliás, em 1940, tal crescimento era assinalado pela bula Solemnibus Conventionibus, na qual o território da Guiné foi separado da Diocese de Cabo Verde e erigido em Missão sui juris. Estava-se pois num período de relativa acalmia social, em que a política de assimilação, ainda que de forma subtil, estava a dar os seus primeiros resultados. Esta situação traduziu-se na prática pelo reforço do sistema administrativo colonial, cujos corolários foram a realização do Congresso da Guiné na Sociedade de Geografia de Lisboa em 1944, seguido em 1946 pelas comemorações do quinto centenário da descoberta da Guiné. É nesse contexto que o Arauto foi publicado em Bolama até 1947. Durante esse período, a temática central deste periódico gravitava à volta do espírito anti-capital que os bolamenses nutriam contra Bissau. A par disso e além da acção religiosa, o Arauto privilegiou os aspectos históricos de Bolama e do cristianismo na Guiné. Por ironia do destino e por razões que ignoramos, o Arauto fechou as portas em Bolama para reaparecer em Bissau, em 1950. É nesta sua segunda fase que se regista alguma produção literária-colonial com certo interesse de estudo, na qual se destacam os artigos de opinião assinados por Fausto Duarte, Juvenal Cabral e o guineense Caetano Filomeno Sá, entre outros.

Em 1945, Sarmento Rodrigues toma posse como Governador da Guiné e funda o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, do qual nasce o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa**, que viria a congregar um grande número de estudiosos da Guiné nas mais variadas áreas das ciências e, também, da literatura. Trata-se, segundo o africanista René Pélissier, da melhor produção científica no contexto das ex-colónias portuguesas de África. Avelino Teixeira da Mota, Fausto Duarte, James Walter e António Carreira foram, sem dúvida, pela sua capacidade polivalente e interdisciplinar, aqueles que deram o impulso decisivo àquilo que comummente denominamos de geração do Boletim Cultural. Quanto à produção literária-colonial patente nos 110 números publicados, seria omissão imperdoável não acrescentarmos nomes como o de Egídio Santos, Fernando Barrigão, João Eleutério Conduto e Fernando Rogado Quintino. São esses os autores que através da narrativa ou da simples descritiva sociológica, nos dão a medida exacta das preocupações intelectuais da geração do Boletim Cultural. De facto, as inquietações preocupação intelectuais desta geração dirigiam-se no sentido de forjar elos entre uma experiência africana que viveram intensamente e que já incorporava os seus ethós, e a espiritualidade mística, natural, que os prendia à terra-mãe. Para isso, usaram diversos géneros literários que vão do ensaio sociológico à novelística e à fixação de contos tradicionais. E é nesta linha de força que são publicados os Contos Bijagós, por João Eleutério Conduto; os “Contos Fulas”, por A. Pereira Gomes; os “Contos Mandingas”, por Manuel Dias Belchior; “Dois contos do ciclo do Lobo”, por Maria Cecília de Castro, e “Contos de Caramô”, por Viriato Augusto Tadeu. Ainda dentro dessa perspectiva se pode incluir o livro Terra Ardente, de Norberto Lopes, e Guinéus, de Alexandre Barbosa (respectivamente, reportagem jornalística e impressões de viagem), embora não apresentem grande interesse para o estudo da Literatura Colonial Guineense.

Em 1959, Romeu Martins publica 15 poemas e ainda: o Roteiro Moderno, que dedica à memória de Caetano Filomeno de Sá. No entanto, por amor à verdade, devemos reconhecer que a poética-colonial de Romeu Martins é de grande qualidade estética, talvez comparável com África Raiz, a grande poesia de Fernanda de Castro. É ainda uma poética de natureza historiográfica que, com um discurso típico da ideologia do Estado Novo, procura aqui e acolá enaltecer os heróis da colonização e cruzada guineenses, ao mesmo tempo que coloca Portugal como o horizonte messiânico dos guineenses, em suma, uma elegia ao culto da magnanimidade histórica de Portugal, o Portugal das descobertas que deu novos mundos ao Mundo.

Porém, antes de fecharmos este percurso pela Literatura Colonial Guineense, permitam-nos debruçarmos um pouco sobre dois autores cujos nomes se pode apontar entre os mais válidos da geração que viveu a guerra colonial na Guiné. Trata-se de José Martins Garcia, que escreveu O Lugar de Massacre, sem dúvida a melhor obra de literatura da guerra colonial da Guiné: de um realismo extraordinário, nela se descreve a essência filosófica dos que na arena de guerra lutaram por um ideal que se esforçavam em vão por compreender; o ideal que jamais se poderá omitir, ou seja, o princípio transcendente que supera as capacidades conjecturais do homem confrontado com o abandono e a morte e que está para aquém e para além dos marcos sensíveis – o espírito. Ousamos mesmo dizer que O Lugar de Massacre revela-se de uma importância incomensurável, mesmo do ponto de vista africano. O outro autor é o Armor Pires Mota, autor do Diário íntimo de um soldado, Tarrafo, e do livro de poemas Baga-Baga e ainda do livro de contos intitulado Guiné Sol e Sangue. Nos seus escritos, não é raro depararmos amiúde com considerações que denotam a existência no autor de preconceitos:

Sou o teu irmão mais velho,
Sou negro também dentro de mim
! (23)

Mas em Armor Pires também se vislumbra a mensagem da igualdade e da justiça entre europeus e africanos, numa descrição poética que se reporta à guerra colonial e cujo principal mérito é a serenidade dramática, testemunhando, sobretudo, um estado de alma – uma visão poética da guerra colonial:

É urgente libertar os meninos negros e brancos,
e dar às mães as estrelas
e as rosas de uma madrugada pura e imensa
(24)

Porém, foi em 1956 que surgiu O Bolamense, sem dúvida, o jornal guineense de maior impacto cultural e literário. Nele, foram publicados muitos poemas que cantam com saudosismo os tempos difíceis em que Bolama, a velha cidade, era a capital da Guiné. Dos poemas publicados, vislumbra-se urna poética um tanto ou quanto apolíticas ou se quisermos, pitoresca e turística. Era, de resto, um jornal que pugnava pela História da Guiné – entenda-se História Colonialista –, ao mesmo tempo que procurava legitimar a colonização portuguesa ante o movimento libertário que, embrionariamente, ia dando os primeiros passos.


Conclusão

Em jeito de conclusão, gostaríamos de referir alguns aspectos deste estudo que merecem uma melhor explicação. E a primeira ideia que nos ocorre é a de que a Literatura Colonial não depende da realidade habitual e do contexto em que foi produzida uma vez que dela se separou e continua a viver depois de esta ter morrido. Isto é tanto mais verdade quanto é certo que, na obra literária, o assunto é de tal modo elaborado que não subsiste como valor puramente humano, sujeito a qualquer juízo prático. O assunto extingue-se para renascer noutra esfera. É exactamente tendo em conta este postulado que atribuímos à Literatura Colonial uma importância particular no que concerne ao seu relacionamento com a Literatura Nacional.

Com isto, não pretendemos inferir que a Literatura Nacional nasceu directamente na sequência da Colonial. Somos da opinião que, efectivamente, são duas coisas distintas, mas que se articulam por elos histórico-culturais e linguísticos. É axiomático que as motivações nortearam um e outro discurso literário em direcções opostas. Por isso, não nos parece legítimo a evocação de autores como Amílcar Cabral e Vasco Cabral – cujos alguns poemas datam da época colonial – para argumentar que a Literatura Nacional não nasceu do nada.

Ora, não esqueçamos que estes dois autores guineenses comparticiparam do espírito da Casa dos Estudantes do Império, da Negritude literária e demais inquietações a que estavam expostos os estudantes africanos em Portugal, ainda em pleno período colonial. Torna-se pois necessários (utilizando a expressão de Manuel Ferreira) separar o trigo do joio sem, todavia, esquecermos as grandes afinidades culturais entre uma e outra literatura, donde a finalidade fundamental do nosso estudo, convictos como estamos de que a História Literária só pode ser a História da Cultura Literária.

Eis chegado o momento de fecharmos esta modesta incursão pela Literatura Colonial Guineense. Ora, fazemo-lo com a consciência de que muito falta ainda para esclarecer e informar a seu respeito. Só a crítica e a estilística poderão penetrar mais profundamente o objecto de estudo em questão, pelo que aqui se regista um apelo aos especialistas na matéria. E porque aspectos positivos há a extrair da Literatura Colonial, interessa – como dizia Amílcar Cabral – aproveitar os aspectos positivos decorrentes da colonização, não só para enriquecermos a descolonização literária em curso, mas também para enquadrarmos sem complexos a componente cultural do passado que se cimentou indelevelmente na nossa cultura nacional.

E porque também no arraial de provações, de quezílias, de lutas e agravos que constitui a História Política da Guiné-Bissau, orgulhosa da sua luta de libertação, importa afastar derrotismos que de alguma forma possam gerar uma crise cultural de consciência e identidade, toma-se necessária a inclusão da Literatura Colonial no conjunto temático preferencial de estudo, a par de outros que se afiguram importantes. Isto porque, passados quinze anos do fecho do ciclo colonial, o Portugal Democrático e os novos Estados africanos de língua oficial portuguesa não são meros co-herdeiros de uma mesma tradição cultural – a colonial. São, creio bem, portadores da mesma missão que é a da construção da nação.

Leopoldo Amado
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OBS do Editor:

- Subtítulo da responsabilidade do Editor
- Leopoldo Amado é Doutor em História Contemporânea pela Universidade Clássica de Lisboa, (Faculdade Letras de Lisboa), sob a temática Guerra Colonial da Guiné versus Luta de libertação Nacional, 1961 – 1974)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Abril de 2008 Guiné 63/74 - P2766: Álbum das Glórias (42): As melhores ostras de Bissau, em O Arauto, de 27 de Julho de 1967 (Benito Neves, CCAV 1484)

(**) Vd. poste de 12 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3878: Historiografia da presença portuguesa (18): O sítio Memória de África ® (Afonso Sousa

Vd. postes da série de:

22 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5141: Historiografia da presença portuguesa (24): A Literatura Colonial Guineense (Leopoldo Amado) (I): Introdução
e
23 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5144: Historiografia da presença portuguesa (25): A Literatura colonial guineense (Leopoldo Amado) (II): A primeira tipografia em 1879

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