Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
Guiné 63/74 - P5140: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (13): Mistura 79 ou quando tive que mandar o Manel a Moricanhe...
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > CART 2339 (1968/69) > Inícios de 1968 (Jan/Abr) > O Alf Mil Torcato Mendonça, com o seu inseparável cachimbo, alimentado com a famosa "mistura 79", comprada numa tabacaria dos Restauradores. Na cabeça, um típico gorro árabe...
Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > 1969 > O Torcato Mendonça jogando pingue-pongue com um outro camarada (Alf Mil Rodrigues ?) no famoso bu...rako de abrigo do 4º Gr Comb). O Torcato e o seu grupo de combate, o 2º, viedram para Mansambo em Maio de 1968, para construir de raíz o novo aquartelamento. Aqui viveu, lutou e sofrei até Novembro de 1968. Na altura (até Junho de 1968) em Bambadinca, estava sediado o BART 1904, que virá depois ser substituído pelo BCAÇ 2852 (1968/70).
Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados
1. Mensagem do Torcato Mendonça (Fundão):
Assunto - Outono
Caro Carlos e Editores
Chove lá fora. Chuva de Outono e frio de Inverno (dizem-me que na Estrela já neva). Assim sendo fui teclando. Devia ter teclado o que por aí há. Não convém. O computas novo borregou. Isto dos novos é sempre um problema. O velho, com maleitas piores que o dono, vai gemendo, protestando...´mas lá responde...lenta, lentamente. Espero que a garantia funcione e o novo seja o que dele disseram. Enfim!
Pois lembrei-me do meu cachimbo, ainda vivo mas só a fornalha, e escrevi esta velha recordação sobre um amigo com mais de cinquenta anos. Coisas de velhos amigos ou amigos velhos e podes ter a certeza que são sempre bons. Isto apesar de aparecerem novos com a força da amizade e que vale a pena, mas vale mesmo, cultivar e respeitar.
Pára aí, ooh teclador...como há tanto tempo nada mandava, como enviei um mail dirigido a vós e a pensar "no muro de Jerusalém", aqui vai. Isto está mais suave. Talvez a sofrer a influencia dos Gatos...tudo bem.
Depois, se tiveres tempo,diz se aí chegou. Não confio no...nada mais digo pois se ele se zanga...
Um abração
Torcato
2. Estórias de Mansambo II (*) > Mistura 79
por Torcato Mendonça
Após o jantar, sentei-me numa daquelas cadeiras fulas esperando a noite ou o nada. Fazer o quê no meio do vazio. Esperava para não desesperar.
A noite desceu rápida deformando, apagando as formas, os vultos, à medida que a escuridão aumentava, dos que por ali ficaram conversando. Falavam e riam. Riam pouco apesar da sua juventude, mas ainda riam nestes poucos meses de comissão, ainda se ria.
Eu fumava cachimbo, desgastando quer o tempo quer a minha já diminuta reserva de Mistura 79. Ainda durava em poupança cada vez maior à medida que o fundo da lata se aproximava. Lisboa e os Restauradores tão longe, tão longe, tão diferente a vida lá e eu ali entrando em mais uma noite.
Certamente o pensamento voava para o meu País, para as suas gentes, os amores breves ou longos, os amigos ou só a recordação da vida, da minha vida interrompida pelo chamamento de uma pátria que diziam ser minha e de mim precisava. Parei então tudo. Aos poucos fui sendo outro, tão diferente do original, do jovem de antes do chamamento da pátria, aos poucos, sem por isso dar, fiquei tão longe de mim. Hoje, pouco desse mim restava. Talvez, quase uma certeza, ser ainda esse pouco o que voava em pensamento para os amores, os amigos em recordação longínqua e, contudo, tão pouco tempo se tinha passado mas, cada vez mais, era recordação difusa, recordação a afastar-se de mim, deste novo eu em conflito ainda entre o outrora e o hoje.
Ali estava sentado cachimbando, pensando, esperando a noite e, para animar, a sentir as picadelas de um mosquito e a seguir outro nos tornozelos ou no tronco e eu enxotava, enxotava só.
Talvez esse gesto de só enxotar, levasse os meus fantasmas, os meus pesadelos e as minhas raivas para longe de mim nas asas da mosquitada.
E a noite ia entrando as vozes dos camaradas a serem cada vez menos.
De repente de forma brusca, brutal, inesperada o som do ataque. Sons de rebentamentos e tiros a chegarem como um ruído em espiral de som.
- É a Moricanhe (**) a embrulhar.
A voz veio de um dos furriéis ali sentados.
Olhei os ponteiros luminosos do relógio, fixei a hora e chamei o militar das transmissões.
Quase desnecessário porque todos sabiam o que tinham a fazer. Aquilo era uma máquina e todos nós meras peças dela. Se alguma se avariava era de pronto substituída. As outras peças choravam então em silêncio e raiva. Nada mais. Num silêncio similar ao vivido agora, esperando, somente esperando, o fim do ataque à Tabanca a meia dúzia de quilómetros dali. Estava lá o Pelotão de Milícia 145. Tempos antes tínhamos sofrido lá o primeiro morto da Companhia, o enfermeiro Fernando.
- Meu alferes, Bambadinca pergunta onde é o ataque.
- Diz em claro: Moricanhe.
Que merda. Então estava lá o comandante da companhia e outros militares e não viam na carta. Certamente ficaram lixados por deixarem outras cartas. Foi isso, foi isso e foi aborrecido, foi e logo quando algum tinha bom jogo. Foi-se.
- Nova mensagem: Bambadinca diz para irem lá amanhã.
- Diz que sim e que o ataque já acabou.
Agora um oficial vai pôr, na Carta, mais um alfinete na Moricanhe, escreve breves palavras no Impresso das flagelações e rapidamente volta a aconchegar os cotovelos no pano verde. Talvez vá antes ao bar beber um uísque com muito gelo. Má-língua e logo sobre o Batalhão 1904. Mau feitio o meu, mas bebia um uísque agora. Prefiro puro. Agora ia com gelo, muito gelo e Pérrier ou Vichy. Bolas onde há disso aqui, neste buraco? Água da fonte, cerveja e fanta quentes, vinho marado e ainda a coca-cola. Os do meu País só a bebiam em Espanha, a coca-cola claro.
- Chama o Manel.
- Estou aqui.
- Vamos conversar um pouco.
- Manel…
A voz saiu atabalhoada e limpei a garganta.
- Não te atrapalhes, porque já sei: amanhã vou à Moricanhe.
- A garganta é do tabaco. Pois tens que ir lá. Vai preparar a malta. Eu vou á Tabanca falar com o Leonardo Baldé (***). É melhor não ir pela picada. Os picadores conhecem bem o trilho.
Palmada dupla nas costas e um até amanhã.
Fiquei um pouco a pensar, a sentir o mau estar causado pela ordem dada. Conhecíamo-nos há tanto tempo, nove, dez anos ou mais, lá pelo Liceu no sexto ou sétimo ano e depois em Évora no RAL 3, muito antes da mobilização. Tantas farras juntos. Amizade forte e agora eu dizia:
- Manel, vais à Moricanhe.
Era bom condutor de homens, o Manel. Nomeado para uma Cruz de Guerra que, indecentemente, não recebeu (****). Mas isso foi já a terminar a comissão. Para depois…
Isto de dar ordens tem, por vezes, um sentimento estranho. Diabos!
Falei com o Leonardo e acordámos tudo rapidamente. Depois falámos um pouco mais e ele foi informando. O velho Leonardo tinha razão. A tropa estava mal distribuída naquela zona. Do Batalhão pouco havia a esperar e a nossa Companhia era pau para toda a obra. O IN assim estava bem.
Ainda o sol não se levantara e já o som, som leve, dos homens do 1º Grupo da [CART]2339 se fazia sentir. Eu com os picadores olhava e íamos trocando umas palavras.
O Manuel à frente do Grupo aproximou-se. Paragem breve e rápida despedida. Picadores à frente e a Moricanhe era o destino.
O pessoal já andava pelo aquartelamento e eu volteei por um lado e outro, ouvido à escuta. Parte de mim ia com eles num sentimento natural. Talvez só se sinta na guerra, nas situações de perigo. Talvez não só e dependa de cada um. Mas esperava e lembrava os obuses já prometidos, a falta de militares ali na construção do aquartelamento. Só ficaram dois grupos e alguns não operacionais – condutores, cozinheiros e outros assim. Um grupo estava em diligência algures às ordens do Batalhão, o outro devia estar de volta com a coluna de abastecimentos e material. O Comando, secretaria e outros, estavam em Bambadinca. Instalações mais condizentes com a protecção de papelada, os altos pensamentos da coordenação militar e a condição de serem profissionais. Nem todos, nem todos.
O dia foi passando. Primeiro chegou a coluna com o reabastecimento, material e o correio. Quase ao mesmo tempo uma mensagem a dizer que na Moricanhe tudo estava bem e iam regressar.
Esperava. Com o sol já a pique fui alertado pela chegada deles. Ia-os vendo passar, rostos duros, um leve sorriso e um aceno de quando em vez.
O Manel aproximou-se com o riso que só ele ainda hoje, quarenta anos depois, sabe dar.
- Está tudo bem e também não tivemos qualquer problema.
- Pronto. Vai descansar e escreve um pequeno relatório. Depois falamos.
- Escrevo, eu?
- Claro, não és professor ?!...
Afastou-se rindo e eu senti-me mais aliviado.
__________
Notas de L.G.:
(*) Vd. postes anteriores desta série:
18 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3474: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): De Évora a Mansambo...
28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3538: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CArt 2339) (6): De Évora a Mansambo...instrução, viagem...Adeus ao meu País.
29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá
4 de Junho de 2009 Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68
1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4618: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Cansamba, subsector de Galomaro, 1 de Agosto de 1969
3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4633: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Bafatá, Amor e Ódio
14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4683: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Cansamba II, o Serra e o Burro
11 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4809: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (12): Fá Mandinga, o único sítio onde tive direito ao luxo de um quarto
(**) Destacamento de milícias e aldeia fula em autodefesa, a norte de Mansambo, do lado direito da estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole. Será abandonado e meados de 1969 (takvez Julho), por decisão do comando do BCAÇ 2852.
(***) Chefe do grupo de picadores e guias que residiam, com as suas famílias, em Mansambo, dentro do "campo fortificado"... O Leonardo tinha vindode Bissau e era um elemento da inteira confiança do Alf Mil Art Torcato Mendonça.
(****) Embora o Torcato não goste de identificar as personagens das suas estórias, trata-se do Fur Mil Manuel Mantinhas, natural de Évora, professor primário, que na prática, e na ausência do alferes, comandava então o 1º Grupo de Comnbate. Estudaram juntos no liceu (em Beja), encontraram-se na tropa no RAL 3, em Évora, eram amigos e continuaram amigos pela vida fora... O Manuel devia ter cebido uma cruz de guerra, pela defesa de Candamã, em Julho de 1969, diz o seu amigo Torcato. Continuam a visitar-se, agora um bocado mais velhos e mais surdos... (Inconfidências do José, ao telefone).
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3 comentários:
Bendita morrinha da Serra da Gardunha que, além de ser um aliado poderoso dos agricultores da fértil Cova da Beira (onde se produz a melhor cereja do mundo...), também ajuda ao processo criativo dos nossos colaboradores... Neste caso, o José!
Gosto deste teu tom intimista e reservado. A tua história (com h, para os puristas da língua...) é uma lição de camaradagem, amizade, trabalho em equipa e liderança... Mas há também uma crítica subtil mas explícita aos teus/nossos patrões, que estavam no "bem-bom" do bar de Bambadinca, a jogar ao King e a beber o seu uisquinho com água de Perrier ou de Vichy, enquanto os "condenados de Mansambo" lá tinham, todos os dias, que trocar a enxada a pá e a pica pela G3...
Mas era assim a nossa máquina de guerra, com um cérebro (pequeno) em Lisboa, e tentáculos dispersos pelas malhas do império (com uma hierarquia que era também espacial descendente: Bissau, Bafatá, Bambadinca)... A isto chamava-se unidade de comando e controlo...
Em Mansambo, em Moricanhe, em Candamã, em Afiá..., quem se lixava era sempre o pobre do mexilhão, a arraia-miúda... Outros dirão: sempre foi assim...
Vai, Manel, vai até Moricanhe contabilizar os estragos...
PS - 1. Não conheci a rapaziada do BART 1904... Quando passei por Bambadinca, em 2 de Junho de 1960 (e lá voltei, para ficar, por volta de 18 de Julho de 1969) já lá estavam os camaradas do BCAÇ 2852.
2. E então, José, não convidas o Manel para aparecer por cá, pela nossa Tabanca Grande ?
Torcato Mendonça
Gostei !Gostei muito de ler este teu conto ((hi)estória).
Pelo bom português.
Pela gentileza da escrita.
Pela sensibilidade demonstrada.
Pela crítica subtil.
Parabens.
Luis Faria
Camaradas:
Li com atenção e mais uma vez os escritos do Torcato.
Escreve bem e devia publicar.
Já o incentivei para isso, mas ainda não chegou a vez.
O MANEL é um amigo do tamanho do MUNDO.
Já lhe pedi para entrar e escrever.
Simplesmente não quer. E que histórias teria ele para contar.
Aparece naquela "orgia vinhática" que oLuís tem publicado.
Um abraço ao Torcato e ao Mantinhas.
CMS - Mansambo 68/ 69
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