1. Homenagem do nosso camarada Jorge Narciso (ex-1.º Cabo Especialista MMA, Bissalanca, BA 12, 1968/69) aos seus camaradas da FAP, António Machado, 1.º Cabo Especialista MARME e António Rodrigues, Capitão Pilav, que pereceram num acidente de helicóptero no dia 12 de Julho de 1969 em Bafatá:
In Memoriam
Cap. Pilav António Rodrigues
1.º Cabo Especialista MARME António Machado
Mortos em acidente com um heli canhão em 12.Jul.69 em Bafatá
Em Fevereiro de 2010 e a propósito dum Poste da Tabanca Grande acerca da captura do Cap Peralta no corredor do Guileje, fiz um comentário posteriormente transformado em Poste (P5756) e também publicado no Blogue dos Especialistas da BA12 (VOO 1462) onde em determinada altura e por analogia com um facto relacionado com o helicanhão ali referido, escrevi:
… este voo no canhão foi para mim perturbante, pois que uns meses antes (Julho/meu 3º mês de Guiné) estive também para voar (nesse caso por experiência passiva que, para sorte minha, não concretizei) no retorno duma outra Operação em Galomaro, voo esse com um fim trágico, traduzido no despenhamento do heli (a que assisti) ocorrido em Bafatá, com a morte do meu comandante: Major (a titulo póstumo) Rodrigues (Piloto) e dum camarada de todos os dias, o Machadinho - como lhe chamávamos - , Mecânico Armamento/Apontador.
Um dia destes tentarei fazer o relato que me for possível desta outra dramática ocorrência…
E no sentido de “pagar” esta divida, por diversas vezes o tentei, de facto, mas por este ou aquele motivo o resultado sempre se me pareceu insatisfatório. Com o passar do tempo e à guisa de autodefesa, foi-se-me adensando a dúvida se tal falha se resumia a uma evidente falta de engenho e arte, ou se o registo era de tal forma profundo, complexo e pessoal que seria mesmo compreensivelmente transmissível.
Assim arrumado, que não escondido, numa gaveta da memória, eis que um clique o fez emergir e duma forma instintivamente reactiva soltou o registo que se foi escorreitamente compondo.
Concretizando:
No final do passado mês de Maio, o Virgínio Briote (co-editor da Tabanca Grande ), sabedor através do Victor Barata (editor principal do BA12), que eu poderia dar algum testemunho sobre este assunto, contactou-me referindo que a filha do Cap Rodrigues, de quem é (ou foi) aluno, por sabedora da sua relação com os assuntos relativos à Guerra da Guiné, lhe referiu o acidente que vitimou o Pai, manifestando interesse em saber mais pormenores, nomeadamente da parte de pessoas que tenham lidado de perto com ele.
E como atrás refiro, duma maneira quase automática as memórias foram fluindo, os dedos foram-nas traduzindo para o teclado e a resposta, antes tantas vezes tentada, ali estava plasmada no monitor. E assim praticamente sem revisão a enviei ao Virgínio Briote para que da forma que melhor entendesse dele desse conta à Dra. Alexandra.
Recebido o texto instou-me o Virgínio a que o propusesse para publicação, tal como estava, ao Especialistas da BA12. Ponderado o assunto revisto o que escrevi, decidi seguir o conselho e com a dilação até esta data para que o mesmo se assumisse como homenagem aqueles companheiros, recebi o assentimento não só do Victor Barata como do Carlos Vinhal da Tabanca Grande a quem coloquei a mesma proposta.
Assim e apenas com correcções no que ao português (grafia pré acordo), diz respeito e com uma melhor precisão de alguns dos factos, aqui vai o citado texto (entenda-se como de resposta à citada solicitação)
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Em ambas as fotos o Cap Pilav Rodrigues é o primeiro à direita
Fotos: © Fernando Caroto e Jorge Félix
Resumindo o relato dos factos à expressão mais simples, poderia simplesmente dizer que:
1. No regresso de uma operação com tropas paraquedistas, com base em Galomaro, os 6 helis participantes (5 de transporte + 1 canhão) dirigiram-se a Bafatá para reabastecimento, antes do regresso a Bissau,
2. Neles viajavam, como habitualmente nestes casos, para além dos 6 Pilotos, uma equipa de manutenção composta por 4 mecânicos da linha, um apontador de canhão e uma enfermeira paraquedista
3. As condições atmosféricas, que já não eram boas à saída de Galomaro, agravaram-se entretanto significativamente, nomeadamente com forte chuva.
4. Chegados a Bafatá, aterraram normalmente cinco dos helis, enquanto o do canhão, na manobra de aproximação, embateu com o rotor numa das espias de aço da antena de comunicações implantada junto à pista, tendo-se despenhado e sequentemente incendiado no embate com o solo.
5. Nele assim pereceram os:
Cap PilAv Rodrigues, comandante da Esquadra 122 (Alouette III) e o
1º Cabo Especialista MARME António Machado, apontador do canhão.
Disparada assim factualmente a "chapa" instantânea do sucedido, importa aduzir agora algumas reflexões pessoais fundadas numa memória que neste caso se mantém impressivamente nítida.
* Eu era um dos membros da equipa de manutenção, sendo talvez esta, com os meus 2 meses e meio de Guiné, a primeira operação deste tipo em que participei.
* Havendo outras modalidades de realização, nesta operação de um só dia, os helis saíram de Bissau de manhã, dirigindo-se a Galomaro, local onde estavam já colocados os elementos do BCP que a iam realizar.
* Deixada a equipa de manutenção e a enfermeira, de imediato embarcaram os "Paras", não me recordo se numa ou duas levas, para serem largados na Zona previamente definida, acção sempre protegida pelo helicanhão.
* Regressados à base da operação, os helis mantinham-se em alerta, ou para evacuações, ou para eventuais recolocações das tropas noutros locais da zona.
* Terminada a operação e em acção inversa à inicial, foram recolhidas as tropas, salvo erro novamente para Galomaro para seguirem por via terrestre para Bafatá.
* Por não se ter registado a necessidade de evacuações os helis mantiveram-se aterrados por um período largo e o pessoal, apesar de em alerta, ia naturalmente convivendo para matar o tempo.
* Em conversa com o Machado (apontador) sugeri a hipótese de, no regresso, voar no canhão, apenas como mera experiência. E dando consistência a essa ideia, com o seu apoio, foi pedida autorização ao Cap Rodrigues, que chefiava naturalmente a missão e coincidentemente pilotava o canhão, que de imediato deu o seu consentimento.
* Terminada a operação, era necessário embarcar, para além das ferramentas e outros meios de manutenção, também uma caixa de munições do canhão, que servia de reforço em caso de necessidade.
* E assim aconteceu, tendo eu e o Machado transportado manualmente a citada caixa para o heli n.º 1 que se encontrava no extremo contrário do alinhamento relativamente ao canhão, logo a uma distância talvez superior a 50 metros.
* Ali chegados e embarcada a caixa diz-me o Machado:
- Já podes ir. - Eis quando a chuva que tinha começado a sentir-se uns momentos antes se intensificou, tendo-lhe eu respondido com um sorriso amigável mas "meio sacaninha":
- Com esta chuva fica para a próxima vai antes tu - e entrei nesse heli, enquanto ele correndo se dirigiu ao canhão.
* Em formação mais ou menos ordenada lá seguimos até Bafatá.
* Ali já aterrados e alinhados os 5 helis de transporte na placa fronteira à antena de rádio, eu e outros tripulantes assistimos a aproximação do canhão, que voava afastado da restante formação, fazer a aproximação rodeando a antena pelo lado contrário, ao que nos encontrávamos, e... embater com o rotor numa das suas espias de sustentação, já muito próximo do solo.
* As fortíssimas sensações originadas pela visão desse momento jamais as esquecerei:
- O rotor (corpo do conjunto das 3 pás) soltou-se da estrutura, transformando abruptamente o ruído característico do voo do heli num silêncio esmagador.
- O corpo do heli rodou no sentido longitudinal enquanto, como que em desesperante câmara lenta, se despenhava junto à base da antena.
- Instintivamente alguns de nós correram para o local do impacto, saltando mesmo eu e um outro companheiro o arame farpado que protegia a área da antena.
- Fomos travados pelo quase imediato incêndio do aparelho e consequente deflagração das munições (balas de 20 mm, explosivas incendiárias) num matraquear que se prolongou por um período que parecia não ter fim.
- Quando finalmente cessou, permitindo-nos levantar a cabeça, a desgraça estava completamente consumada numa amalgama de destroços que envolviam os corpos adivinhadamente calcinados.
- Última e não menos forte sensação, a da recordação da minha última conversa com o Machado e o imaginar-me agora no seu lugar.
Passada essa terrível noite em Bafatá, regressámos na manhã seguinte para Bissau, logo após o embarque dos corpos, entretanto resgatados, no Dakota que os transportou para a Base.
O velório realizou-se nessa mesma noite na capela da BA12, nele participando por turnos toda a Esquadra 122. Lembro-me perfeitamente de durante o meu turno ter ficado de frente para a viúva do Cap Rodrigues de quem julgo ainda guardar a expressão amargurada.
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À margem do relato algumas notas de rodapé que julgo necessárias:
- Todos os acidentes possuem sempre algo de incompreensível, nomeadamente quando de meios aéreos se trata, com o conjunto de variáveis envolvidas (mecânicas, humanas, metereológicas, etc.) e a que só uma investigação e apuramento rigoroso de dados pode dar respostas mais ou menos conclusivas.
- O acima relatado não é naturalmente excepção, o testemunho que transmito, apesar da fidelidade da observação directa, não pretende de nenhuma forma retirar conclusões quanto a eventuais causas, que seguramente o inquérito realizado pela FAP e respectivo relatório (que não conheço), sistematisadamente terão feito.
- O que indelével e tragicamente fica é a perda efectiva, tão mais sentida quanto mais dramática é a forma e mais próximas nos são as vítimas.
Para eles o meu singelo preito de homenagem:
Ao Cap. Rodrigues a quem, apesar do breve tempo de convivência e voo, deu para perceber ser não só um excelente Piloto como um homem que mantinha com os que comandava uma relação de enorme cordialidade e respeito que eram aliás generalizadamente recíprocos. E que aqui quero partilhar com a Dra. Alexandra e sua família.
Ao Machadinho pela sua alegre e descomprometida camaradagem dos nossos 20 anos, que, na perda, algum insondável desígnio impediu eu tivesse tomado o funesto lugar e naturalmente à sua família independentemente de desta não tomarem conhecimento.
E finalmente alguns agradecimentos:
- Ao Virgínio Briote e à Dra. Alexandra por terem estado na base desta minha, digamos, “catarse”.
- Ao Jorge Félix e Fernando Caroto, meus companheiros e contemporâneos na Guiné, que cederam as fotos.
- Ao Edgar, co-testemunha e que comigo saltou o arame farpado da antena, com quem em troca de impressões melhor precisei alguns dados aqui transmitidos.
Jorge Narciso
Especialista MMA – BA 12 / Guiné 69/70
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 30 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10093: In Memoriam (120): Cor inf ref e escritor Joaquim Evónio Rodrigues de Vasconcelos (Funchal, 1938 - Lisboa, 2012), comandante das CCAÇ 727 (1964/66) e CCAÇ 2316 (1968/69) (António Costa / Carlos Vinhal)
6 comentários:
O Jorge (Narciso) está de pleno direito, entre nós, sob o poilão mágico e protetor da nossa Tabanca Grande, desde novembro de 2009... E em boa hora, porque é um dos melhores de nós, um camarada de grande sensibilidade humana, de fino trato, de inexcedível generosidade...
Por outro lado, tem a sua quota parte, bem dura, de especialista MMA, na linha da frente dos AL III, numa época em que - a avaliar pela minha experiência na zona leste - eles - os pilotos e os especialistas da FAP - mal tinham tempo para dormir o sono reparador em Bissalanca... Fortam anos duros, para homens e máquinas, esses e, que coincidiu, em grande parte, a nossa comissão...
Eis como ele se apresentou à malta:
20 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5305: Tabanca Grande (188): Jorge Narciso, ex-1º Cabo Esp MMA, BA 12, Bissalanca, 1969/70
(...) Abr de 69/Dez de 70) - BA 12 / Bissalanca - Linha da frente dos Alouette III (onde ao fim de pouco tempo, e devido à tardia nomeação, apesar dos meus 20 anos, comemorados aliás no Saltinho durante uma missão de abastecimento, era o cabo especialista mais antigo - tempo de FAP - da mesma linha).
Fiz ali algumas centenas de horas de voo, só não sei quantas, porque a minha caderneta de voo (que não sei porquê me obrigaram a entregar no regresso, diziam que para entrega posterior) está em parte incerta, se é que ainda existe (penso que não é caso único) (...)
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2009/11/gine-6374-p5304-tabanca-grande-188.html
Jorge:
Tu não precisas, mas mereces, que eu venha aqui louvar a tua iniciativa, na sequência do "clique" que te deu o Virgínio Briote, de pôr a limpo (e a público) essa trágica histórica em que também estiveste envolvido, e que vitimou dois queridos camaradas teus, e nossos.
Cumpriste o teu "dever de memória" e, mais do que isso, fazes aqui a tua sentida e justa homenagem a dois valorosos combatentes que morreram no regresso de uma missão a Galomaro.
Reduzir tudo isto a um "mero acidente", devido a "falha técnica e/ou humana" (como se diz nos relatórios das comissões de investigação), é sempre mesquinho, e triste, mas é assim que muitos dos nossos heróis esquecidos cabem nas nossas estatísticas (oficiais e oficiosas) da contabilidade da guerra...
Acredito que não tenha sido fácil, para ti, verbalizar memórias, sentimentos e emoções relacionados com o "acidente" com o helicanhão em Bafatá, no dia 12 de julho de 1969 (, estava eu ali perto, mais a norte, ainda em Contuboel, só mais tarde soube da trágica notícia, quando passado uma semana fomos colocados - a CCAÇ 12 - em Bambadinca, para ir começar a guerra "a sério").
Mas julgo também te fez bem escrever este texto, de grande valro memorialístico e documental. É como lancetar um abcesso, um furúnculo ou um tumor... Um dia tem que ser. E depois ficamos mais aliviados... Mas quantos camaradas guardem "abcessos, furúnculos ou tumores" desses na memória, incapazes de os "lancetar" ?
Muitas das vezes faltam os instrumentos, o instrumentista, o cirurgião, o anestesista, a equipa do bloco... Falta o pretexto, a ocasião, o "clique"...
Os grã-tabanqueiros ficam orgulhosos de ti (e reconhecidos). Pela minha e tua parte, vamos ver se em agosto, a gente bebe um copo juntos, na Praia da Areia Branca, o tal copo há muito tempo prometido... de parte a parte. LG
PS - As melhoras da tua maezinha.
V/ P4742, do Dâmaso, que confirma esta versão, que corroboro, das condições em que ocorreu o acidente.
SNogueira
Jorge: Falando ontem com um amigo meu, da Lourinhã, que foi piloto do AL III, em 1970/72, e que andou com com o helicanhão, ele confirmou-me que só podiam ir dois militares no Lobo Mau, o piloto e o apontador do canhão... Não havia espaço para "boleias"... Pelo que tu nos contas, podias de facto ter sido tu a morrer no lugar do Machadinho... E será agora a vez dele de nos contar como teria visto essa tragédia... A vida é um jogo de sorte e azar...
Bom domingo. LG
Comentário do nosso leitor (e camarada pára) Salvador Nogueira que, por qualquer razão, se perdeu:
"Ver [poste] P4742, do Dâmaso, que confirma esta versão, que corroboro, das condições em que ocorreu o acidente. SNogueira".
Luis
Antes de mais agradecer-te as muito gentis palavras que me diriges, especialmente no realce da homenagem prestada aqueles nossos camaradas.
Relativamente ao teu ultimo comentário, é correcto que no heli canhão existiam dois unicos lugares (sentados), o do Piloto e na sua rectaguarda e virado lateralmente para o exterior o do apontador que manobrava o canhão colocado entre as suas pernas. No entanto e como relatei no Post 5756, uns meses após este acidente acabei mesmo por fazer um curto voo num canhão, de pé por detras do apontador, entre o corredor de Guileje e Aldeia Formosa, quando da captura do Cap. Peralta (cubano).
Mas no caso ora tratado, o que estava efectivamente combinado e autorizado era que eu no regresso da operação ocupasse o “lugar” do Machadinho, trocando ele para o heli onde afinal acabei eu por voar.
Mas este não foi caso único no que me diz respeito.
Durante o meu periodo de Guiné, registaram-se dois unicos acidentes aéreos mortais e ambos com helis.
Pouco mais de um ano após este (em 25.Jul.70) aconteceu o que no Rio Mansoa, vitimou o Alf. Manso (Piloto), 4 deputados em visita à Guiné e um capitão do Exercito, salvo erro chamado Carvalho.
Sobre o mesmo escrevi em comentário ao Post 5176 o seguinte:
...Porque estava escalado para esse voo, tendo inclusive estado pronto a partir, no helicóptero acidentado (já com os rotores a funcionar e portas fechadas) só não seguindo porque chegou entretanto à placa o malogrado Capitão do Exército para integrar a visita e que face à lotação completa que se registava nos helis, tomou o meu lugar por determinação do comandante de Esquadra, seguindo a missão com o suporte técnico do Mecânico Electricista (Caiano) já antes sediado no Heli 1...
Assim, como lhe queiramos chamar: destino, providencia, designio, ou meramente sorte, se a chuva de Galomaro e aquela tardia chegada do malogrado Cap.Carvalho não tivessem no primeiro caso evitado que tomasse um lugar e no segundo me retirado doutro, ambos com caminho sem retorno e facto a transmissão destas emoções teria, hoje, seguramente outro relator.
Quanto ao comentário do leitor S.Nogueira, que agradeço, só através dele tomei conhecimento do testemunho do Damaso, com quem, aliás, numa recente iniciativa do Blogue da BA12 almocei lado a lado, sem que tivessemos abordado o tema do acidente, desconhecedores que ambos o tinhamos presenciado
Com um abraço
Jorge Narciso
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