segunda-feira, 9 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10134: Notas de leitura (378): O Meu Diário, Guiné - 1964/1966, CCAÇ 674, de Inácio Maria Góis (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 21 de Maio de 2012:

Queridos amigos,
Foi graças ao confrade Carlos Pedreño Ferreira que tive acesso a este documento singularíssimo a vários títulos.
O soldado Inácio Maria Góis, da CCAÇ 674 ultrapassa, de longe, tudo quanto até agora conhecemos como diários: desvela a intimidade, temos acesso aos seus pensamentos, há momentos em que parece que ele está a escrever para a História, reiteradamente comunica ao leitor que tudo quanto escreve é com base em factos reais e verídicos, regista os seus amigos, fala permanentemente da péssima comida e ficamos com uma ideia de como evoluía a guerra naquela região onde ele passou grande parte da comissão, Fajonquito. É impressionante como desvela a alma e como se determinou a publicar na íntegra tudo o que escreveu.

Um abraço do
Mário


O diário do soldado Inácio Maria Góis (1)

Beja Santos

É um documento impressionante, pela indiscutível sinceridade e singeleza. Arranca assim: “Eu, Inácio Maria Góis, filho de Luís Justo Pereira de Góis e de Bárbara Antónia, natural dos Gasparões, concelho de Ferreira do Alentejo. No dia 2 de Agosto de 1962, fui alistado com toda a prontidão para cumprir o serviço militar obrigatório. Em pleno mês de Setembro de 1963, encontrava-me eu trabalhar na vila da Batalha, onde exercia a profissão de operador de máquinas de terraplanagens”. Tinha que se apresentar no RI 3, em Beja, em 20 de Outubro. Despediu-se dos colegas de trabalho e embarcou para Porto Covo para se despedir do pai e da namorada. Vão seguir-se 400 páginas do relato mais minucioso que até hoje me foi dado ler quer como diário ou relato memorialístico. “O Meu Diário, Guiné – 1964/1966 - CCAÇ 674”, por Inácio Maria Góis (edição de autor, 2006) foi-me amavelmente emprestado pelo nosso confrade Carlos Pedreño Ferreira. O autor agradece o apoio da Junta de Freguesia de Porto Covo, onde três funcionários dedicadamente transcreveram na íntegra os textos escritos.

Inácio Góis entra no quartel de Beja, descreve os pormenores da instrução e da preparação e depois regressa a Porto Covo para visitar quem ama. Revela-se em toda a sua intimidade: “Desci do autocarro, peguei na minha mala e caminhei em direção à casa do meu pai, bati à porta, veio a minha madrasta, que me lançou um olhar de arrepiar, ela não gosta de mim, nunca gostou. Eu nunca lhe faltei ao respeito, apenas lhe disse que venho visitar os meus irmãos e o meu pai, é ela que manda, põe e dispõe à sua maneira, é mais nova que o meu pai 10 anos. Tudo quanto ganhei até entrar para o serviço militar o meu pai se aproveitou da minha inocência e eu acreditei na boa-fé do meu pai, que afinal traiu o próprio filho e praticamente o abandonou, dizem que há Deus e eu tenho que acreditar. Vim também para ver a minha namorada, de quem gosto muito e me dá carinho e algum alento”.

Descreve a faxina à cozinha e deixa-nos o estômago revoltado: “O feijão é retirado de dentro dos sacos, não é lavado nem limpo, leva alguns quilos de sódio para ser cozido mais rápido. As couves são cortadas ao meio e não são lavadas, atiram-nas assim para dentro das panelas, apenas as batatas são lavadas. É por isso que aparecem nos nossos pratos lesmas e lagartas”. Olhando para os seus próximos, comenta em Novembro: “Aqui nos encontramos aproximadamente mil jovens a tirar a recruta. As suas idades variam entre os 21 e os 22 anos. Na sua maioria são do Alentejo e Algarve e os restantes vêm do Ribatejo, Norte e Lisboa”. Conta detalhadamente toda a instrução, incluindo as idas ao campo. Em meados de Dezembro vai visitar em Gasparães a mãe e as irmãs. Segue-se o juramento de bandeira e o fim da recruta. Passa o Natal em Porto Covo. Nesse dia escreve: “Eu e a as minhas duas irmãs e a minha mãe não convivemos junto há já alguns anos, o destino assim o quis. Durante o meu percurso de criança não soube o que foi o verdadeiro carinho e amor de mãe. O Natal para os mais pobres é apenas um dia ao qual se chama Natal”.

E de Beja segue para Évora. É aqui que se está a formar a CCAÇ 674. Conhece o comandante da companhia, “tem 27 anos de idade, é baixo, usa óculos graduados e escuros, é natural da Mexilhoeira Grande”, apresenta todos os aspirantes e cabos milicianos. Segue-se a instrução militar e em 27 de Fevereiro de 1964 veio-lhe à memória um encontro com uma madre superior. Trabalhava ali na companhia do pai, em terraplanagem para o novo colégio das irmãs Doroteias. A madre superior fez questão de colocar uma imagem de Nossa Senhora de Fátima na capota da máquina e veio dizer a pai e filho que deviam ir à missa, Inácio Góis nunca esqueceu este episódio. A CCAÇ 674 segue para Faro, seguem-se exercícios militares de diferente índole, recebem fardamentos novos e no dia 1 de Maio ficam a saber que estão mobilizados para a Guiné. Volta a Porto Covo para se despedir de quem mais gosta, com detalhes inenarráveis, por vezes especiosos e miudinhos, ficamos a saber como vai e volta, com quem conversa, onde toma refeições, etc. E de Faro viajam para o embarque no Uíge, há muita tristeza e lágrimas nas estações por onde passa o comboio, Inácio Góis regista que nem o pai se veio despedir: “O navio apitou por três vezes e eu estremeci e não consegui deter as lágrimas. Os gritos, os lenços que nos acenavam eram aos milhares”. Tiradas as amarras, dois rebocadores levam o Uíge para a foz do Tejo. Viaja intranquilo, interroga-se sobre o que está a fazer ali, ninguém lhe explicou até agora em que guerra é que vai participar. Desembarcam em 13 de Maio.

Não esquece as indelicadezas, estavam a montar um aquartelamento improvisado num armazém junto ao Geba, encontrava-se ali a CCAÇ 675, ele dirigiu-se à cozinha desta companhia e o cozinheiro Vilhena recusou a dar-lhe comida e ele disse: “Eu sou da tua terra, negas-me uma marmita de comida, obrigado". Registou o número mecanográfico e o seu nome completo. Procura amigos em Bissau, visita o destacamento de fuzileiros e depois parte em rumo a Bambadinca e daqui para Fá. Há momentos em que o leitor tem a nítida sensação de que este relato é sonido como uma crónica: “A CCAÇ 674, à qual eu pertenço, tem no ativo 195 militares, o que inclui 2 sargentos, 17 furriéis, 4 alferes milicianos, um alferes miliciano que é médico, um furriel enfermeiro e um capitão que é do quadro”. Passam a noite de 30 de Junho em Bambadinca e no dia seguinte vão para Fá: “Verifiquei que havia apenas 3 casas e um pequeno fontanário com água potável e um gerador elétrico. Junto às habitações há um pequeno vale onde corre alguma água, e se encontra cultivado desde bananeiras, ananases, tomates, pimentos, feijão-verde e outros. Notei que este lugar é silencioso, apenas se ouvem as aves cantar”.

A 4 de Julho põem-se ao caminho, vão para Fajonquito. Descreve a povoação e dá as suas impressões: “As casas que existem nesta povoação são muito poucas, apenas seis e uma escola que se encontra fechada. As casas que se encontram vazias foram ocupadas pelos militares, os seus proprietários saíram devido à guerra”. Começam os patrulhamentos e as idas a Bafatá, ele descreve ao mínimo detalhe o funcionamento do aquartelamento, o seu primeiro ataque de paludismo, a primeira emboscada ocorre em 21 de Julho, tinham ido num patrulhamento até uma serração abandonada. Num queixume que jamais abrandará queixa-se da qualidade da comida e observa que os sargentos e os oficiais têm uma alimentação muito superior, começam as queixas do comandante de companhia pela sua brutalidade, ele escreve que o capitão esbofeteia e humilha sem dó nem piedade. E o diário começa a registar uma expressão que nunca mais se apagará: “Vivo numa terra de ninguém”. Ele faz parte do primeiro pelotão, os patrulhamentos dilatam-se, em Agosto vão até Cambáju, estão nas proximidades de Sitató, emboscam com resultados: “Por volta das 11.30 da manhã, passou pela minha frente um homem numa bicicleta, foi feito prisioneiro e depois mandando embora”. Mais à frente emboscam, também sem resultado. Fala do capelão, das milícias, das abatises que é preciso remover das estradas e depois descreve o primeiro ataque a Fajonquito.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10125: Notas de leitura (377): Massacres em África, de Felícia Cabrita (Mário Beja Santos)

5 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Dos muitos livros que li sobre a temática da "nossa guerra", apesar de poucos, este levro do nosso camarada Inácio Maria Goi, foi o que nais me sensibilizou pela naturalidade.

Escreve com o coração e alma do soldado português.

Alguns escritos qie enviei para o blogue, foram baseados em factos que ele descreve, apesar de alguns terem comentado que estavam errados.

E uma curiosidade: quem deu a conhecer o livro neste espaço, foi Pelissier.

O livro foi editado em Abril de 2006 - 500 exemplares - com o apoio da Junta de Freguesia de Porto Covo.

Merece uma 2ª edição, mas sem lhe retirar, sequer, uma virgula.

José Marcelino Martins disse...

Já agora, e a "talhe de foice", foi o primeiro DIÁRIO que apareceu (2006), depois houve outro em 2007 e outro (2 volumes) em 2008.

antónio graça de abreu disse...

O MBS fala no "relato mais minucioso que até hoje me foi dado ler quer como diário ou relato memorialístico."

Mas um diário de guerra ou um relato
memoralístico não são coisas rigorosamente diferentes? Estamos a falar de literatura de guerra, de factos reais vividos dia a dia e por isso testemunhados na escrita quotidiana. Ou de relatos memoralísticos que, com o passar dos muitos anos, são frequentemente distorcidos e ficcionados?
Nada tenho contra a ficção, um relato memoralístico até pode ser mais interessante e ter mais valor literário do que um diário de guerra. Mas há que separar as águas, nisto de diários da Guiné não pode ser tudo ao molho e fé em Deus.Como o Mário Beja Santos bem sabe.

Um abraço forte, ensolarado e salgado desde o mar caribenho, em Playa Carmen, Yucatan, México.

António Graça de Abreu

(Desta vez trouxe o computador do meu filho Pedro, vou por isso escrevendo em português como deve ser.)

Manuel Carvalho disse...

Não li o livro, mas pelo que diz dele o MBS e o ZÈ Martins, também penso que era muito importante uma segunda edição sem tirar uma vírgula, ou e a publicação no nosso blogue, se isso fosse possível pelo menos daquelas partes mais interessantes. Digo isto porque não conheço muitos relatos feitos pelos nossos Soldados sobre aquilo que passaram. Desde o transporte nos porões daqueles barcos, até à fome, sede, maus tratos, eles e os nossos militares africanos foram quanto a mim as maiores vítimas daquela guerra. E pouco me interessa se o livro é um diário, se é um relato de memórias, interessa-me é saber o que este nosso camarada tem para nos dizer.

Um grande abraço para todos

Manuel Carvalho
Ccaç2366 Jolmete

Cherno Baldé disse...

Caro Mário B. Santos e amigos,

Em meados de 1964, Fajonquito era um aglomerado populacional importante, dentro dos padrões locais (ver censo de 1950).

Quando o autor fala de seis casas, certamente, faz referência as casas de construção em betão ou casas comerciais que, tudo somado não seriam mais de 9 incluindo a escola, pois para além das cinco que foram ocupadas pelos militares, existiam mais três que ainda continuavam a funcionar em 1968.

Segundo informações dos mais velhos, o primeiro professor da escola de Fajonquito foi, nem mais nem menos, Inocêncio Kani, um dos incriminados no assassínio de Amilcar Cabral em Conakry.

Assim, a ser verdade, a escola estaria, naquela altura, a espera do seu novo professor.

Com os votos de muita saúde e força para continuar a revelar-nos mais factos sobre Fajonquito e seus arredores nos primeiros anos da guerra.

E um abraço amigo,

Cherno Baldé