quinta-feira, 12 de julho de 2012

Guiné 63/74 - P10146: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (36): Recordando o inesquecível amigo João, ex-1.º Cabo Mecânico da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4514/72

1. Comentário do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, deixado no poste P10119, lembrando o seu amigo João, ex-1.º Cabo Mecânico da 2.ª CCAÇ do BCAÇ 4514/72 (Fajonquito):

Caro Eduardo Ferreira,

Gostei de ler estas recordações das crianças de Mansambo em que me revejo inteiramente.

E lembrei-me do meu último amigo, o João, 1.º Cabo Mecânico, que pertenceu à última Companhia (BCAÇ 4514/72) que passou por Fajonquito (sector de Contuboel, região de Bafatá).

Quem o quisesse ver devia ir à sua oficina, onde passava o tempo a construir e a reconstruir os dois Unimogs, uma Berliet e uma velha GMC, herdados das anteriores Companhias.

O João fez parte do pelotão que devia entregar o aquartelamento ao PAIGC em Setembro de 1974. Muito amigo e voluntarioso tinha prometido oferecer-me a sua cama de tropa, mas era sem contar com as artimanhas dos guerrilheiros e novos senhores do país que, tão logo chegaram, puseram trancas (guardas) na porta d’armas e proibiram o acesso ao quartel.

Na véspera da sua partida, contornei a porta e os arames e enfiei-me lá dentro, o João estava à minha espera, comovido mas receoso com a minha presença. Ele sabia que eu viria, de qualquer maneira. Mandou-me subir para a viatura e pôs-se ao volante, atravessamos a porta d’armas sem parar, os guardas olharam, mas não puderam reagir, a tempo.

Ainda hoje, são visíveis as marcas deixadas nos zincos da nossa casa, pelo portal traseiro, do Unimog que manobrava para deixar na nossa varanda o espólio que trazia ao seu pequeno amigo: Um pequeno colchão de tropa, já negro de tanto uso e dois armários feitos de caixas de madeira, daquelas onde vinham batatas da metrópole.

Toda a família estava presente para assistir à despedida do nosso amigo branco. O João, homem tímido e parco em palavras, também, aproveitou para se despedir dos meus pais e da sua lavadeira que era, nem mais nem menos, a minha própria Irmã, mas que ele conhecia de longe, pois quem tratava de trazer e levar a roupa do quartel era eu e não a menina, quase adolescente.

No fim, o João, pesaroso e o nariz vermelho, disse-me:
- Olha rapaz, desculpe, não foi possível trazer a cama de ferro.

- Não era importante, amigo João, de qualquer modo, não ficaria com ela. Após a tua partida, decidiram entregar o colchão ao nosso pai maior, ou seja, ao irmão mais velho do meu pai, único local seguro contra a argúcia e malandragem dos agentes do PAIGC. Os armários serviram de lenha para cozinhar o mata bicho do dia seguinte. Era material do inimigo, muito perigoso para os tempos que corriam.

E, eu me lembro sempre desse dia, tendo guardado dentro de mim a recordação do gesto e a postura de um homem íntegro, amigo e irmão que cumpriu a sua palavra, à risca.

Certamente, também, assim sentiram as crianças de Mansambo... de Mansabá... de Cuntima... de Bajocunda... de Canjambari... e de muitos outros lugares da Guiné que, entretanto, se foram tornando homens e sobrevivem nesta terra à deriva, sem rumo nem destino.

Um dos meninos de Mansabá que frequentava a Messe de Sargentos. Apesar do tempo já passado, julgo que se chamava Braima. Que será feito dele?
Foto e Legenda de CV

Isto é nostalgia? - Sim, uma nostalgia saudável e humana e que brota de dentro do coração dos homens bons e valorosos.

Um grande abraço para si e a todos os amigos desta Tabanca.
Cherno Baldé
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9732: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (35): O Irã animista e o Djinné muçulmano


(*) Sobre a 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4514/72:

(i) Mobilizada em Tomar no Regimento de Infantaria n.º 15;
(ii) Unidade orgânica do Batalhão de Caçadores n.º 4514/72;
(iii) Comandada pelo Capitão Miliciano de Infantaria Ramiro Filipe Raposo Pedreiro Martins
(iv) Assumiu a responsabilidade do subsector de Fajonquito, rendendo a CCaç 3549, em 15 de Junho de 1974
(v) Veio a iniciar o deslocamento para Bissau a partir de 30 de Agoosto de 1974,
(vi) Um pelotão efectuou a desactivação e entrega, ao PAIGC, do aquartelamento em 1 de Setembro de 1974.

3 comentários:

Anónimo disse...

Fico muito surpreendido com as atitudes dos guerrilheiros mal assumiram o controle do território e das populações.
De facto, já por duas ou três vezes tivemos ocasião para perceber que, em vez de celebrarem a situação, comportaram-se como bandoleiros castigadores do povo que, arrogavam-se, defendiam do jugo colonial.
Naturalmente, semelhantes atitudes são testemunho da imaturidade dos guerrilheiros para assumir os destinos da nova nação, bem como da impreparação dos povos que de maneira dogmática apoiaram tamanha empreitada, do que terá resultado, para além da estupefacção das populações, o uso e abuso das autoridades "libertadoras".
E da tal forma assim foi que, ainda hoje, a Guiné-Bissau não conseguiu reunir no território nacional uma elite capaz de constituir a base para iniciativas empresariais e quadros administrativos, de onde emergissem os quadros políticos, em vez da recorrente política das armas e da subordinação à tropa imberbe, arrogante e ditatorial.
Mas os partidos de esquerda - PS e PC - que deram o carácter ideológico ao MFA, logo amplificaram os grandes princípios da descolonização imediata, e de que as negociações seriam exclusivamente com os movimentos, que se alimentavam das mesmas fontes, a Internacional Socialista, e o Pacto de Varsóvia, hipotecando o futuro dos povos que trabalhavam e construíam o futuro dessas nações.
Para o Cherno, que é um digno representante desse povo amargurado e traído, envio um abraço fraterno.
JD

Anónimo disse...

Caro Cherno:
Gosto do teu discurso, da sabedoria e afeto que nos transmites.São palavras de uma grande limpidez, despidas de preconceito ideológico e sem espírito catequético.É claro que resultam de um espírito muito fraterno, de alguém que perdoou os ferimentos da alma. Houve, como bem sabemos, muitos joões mecânicos mas tambem, por parte de muitos de nós, atitudes racistas e explosões de ódio, como se as crianças tivessem alguma culpa...A história, enquanto retrato real do passado,há-de conter toda a verdade. Lembro-me da minha convivialidade com os civis de Mampatá e de como essa comunhão adoçava o tormento da guerra. Era como se quisesse construir ali um mundo irreal que me desse a fugaz ilusão de uma terra normal para se viver... mas de vez em quando era acordado para a triste realidade: o heli que passava, os rebentamentos mais longe ou mais perto, as notícias de feridos ou mortos...
O sentimento nostálgico que nos assola, não é a evocação da juventude perdida mas sim um regresso aos nossos mortos e a toda a envolvência geográfica e social de uma guerra evitável.

Um abração para ti Cherno e para todos os tabanqueiros.

Carvalho de Mampatá

Nuno Soares da Silva disse...

Fiz parte da 2ª CCAÇ do BCAÇ 4514/72. Vim evacuado. Resultado de um acidente de viação. Era o Nuno, Escriturário. Moro em Braga, cidade onde nasci e cresci.
Poucas são as fotografia com que fiquei. Recordo, com saudade todos os camaradas com quem convivi e partilhei orrores e alegrias. Deixo o meu contacto
nmsslva@gmail.com