1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2014:
Queridos Amigos,
Estes ensaios debruçam-se sobre o interdito, o ocultado, o altamente incómodo, no contexto das guerras que travámos em África em tempos de descolonização.
O Exercício Alcora era desconfortável para o regime de Lisboa, mas tornara-se imprescindível, por causa de Angola e Moçambique. A africanização da guerra tinha matizes que importava disfarçar. E veio a descolonização, apareceram novas perplexidades, como a questão da identidade do retornado, o incómodo de associar a violência ditatorial à violência colonial… ocultações de certa historiografia - histórias de sonhos coloniais falhados que continuam a pairar sobre as nossas cabeças .
Um abraço do
Mário
Guerras de libertação, as alianças secretas, um vasto manto de interditos
Beja Santos
“As Guerras de Libertação e os Sonhos Coloniais”, organização de Maria Paula Menezes e Bruno Sena Martins, Edições Almedina, 2013, é um repositório de estudos que, como escreve Boaventura de Sousa Santos no prefácio, “consiste em desvelar o que foi ocultado, tanto pelo que foi dito como pelo que foi silenciado, nas histórias celebratórias e nas memórias autocomplacentes”. Enfim, algo que pertence à sociologia das ausências, silenciamentos que persistem de ambos os lados da contenda. O que aqui se expõe são intrincadas alianças, sobretudo no cone Austral de África, onde a África do Sul jogou a fundo para manter o seu governo racial, atraindo o governo de Lisboa para uma aliança secreta, o Exercício Alcora.
Começando exatamente com o Exercício Alcora, os coordenadores comentam o historial da aproximação dos regimes brancos minoritários e as colónias portuguesas de Angola e Moçambique, na atmosfera que lhes era adversa: as independências da Zâmbia, do Malawi, do Botswana e o Lesoto e a Swazilândia, entre 1964 e 1968. O Exercício Alcora definia como objetivo central combater o comunismo e os movimentos nacionalistas. Para Ian Smith, chefe do governo rodesiano, a aposta era manter os conflitos centrados a norte do Zambeze: “Quanto mais para norte podermos conter a linha de defesa contra os comunistas, melhor”. Mobilizaram-se dezenas e dezenas de milhares de homens, brancos, para a constituição de brigadas mistas, prontas para intervir em qualquer ponto de Angola e Moçambique, o que estava em causa era a sobrevivência da África Austral.
Não deixa de surpreender como a violência desencadeada por aquela guerra também desce como um manto de silêncio em torno da memória da ditadura, observa outro autor. A guerra tem as suas vítimas, homens e mulheres sujeitos à dor, à perda, à morte, ao exílio ou ao terror. Vítimas porque resistiram aos poderes instituídos, foi o que aconteceu aos presos do Tarrafal. Mas também foram vítimas populações atingidas arbitrariamente por massacres, igualmente foram vítimas as pessoas sujeitas à repressão direta, aos tribunais especiais e a todo um campo de arbitrariedades. E aqui se questiona como em Portugal se tem lidado com a memória da ditadura e da depressão, o tratamento dado à memória da resistência e repressão tem sido alvo de sucessivos equívocos e diferimentos, que se alargam para o campo historiográfico. Para o autor a violência do colonialismo e da ditadura transformaram-se em memórias fracas, com preponderância para a memória do passado ditatorial identificado com um chefe paternal, de laivos autoritários mas vontade desinteressada de servir a Nação.
Noutra abordagem, traça-se a dimensão da questão colonial e da África Austral num contexto de Guerra Fria. Como consequência direta da II Guerra Mundial, deu-se a perda da centralidade da Europa no sistema mundo. A partir de 1960, as potências coloniais acederam a independência de muitos países, com sérias incidências no mapa geopolítico global. Esse mundo modificado equilibrava-se no poder global dos EUA e da URSS e como estas superpotências animavam os movimentos nacionalistas. De facto, estas duas superpotências fizeram coro para a emancipação dos movimentos nacionalistas, o que, como reação, gerou a criação do movimento dos não-alinhados, onde a China não tinha papel inocente. Os EUA tiveram extrema dificuldade em encontrar uma forma diplomática de vigorosa denúncia do apartheid, a África do Sul acabou por se tornar num aliado poderoso no contexto da Guerra Fria.
Entre os grandes interditos e as discussões infindáveis que as guerras de libertação suscitaram temos a problemática dos retornados, a incómoda africanização na guerra colonial e a ligação estrutural entre as guerras civis de Angola e Moçambique associadas ao conflito anterior a que o Exercício Alcora procurava dar resposta. Na verdade, continua na área dos interditos a identidade do retornado e até a análise da especificidade das duas colónias de povoamento, Angola e Moçambique, decisiva para compreender as guerras coloniais, a descolonização e as independências.
O autor do estudo sobre a africanização na guerra colonial recorda que existia uma tradição de participação de africanos no exército colonial português desde a segunda metade do século XIX, para apoiar a penetração no interior de África. E esclarece que “Em 1961, ano do início da guerra colonial, o Exército Português dispunha em África de unidades locais organizadas nos mesmos moldes das unidades europeias”. Esta africanização progressiva assentou em unidades regulares do exército, unidades especiais e unidades de milícias. E observa: “Estes três tipos de forças desempenharam papéis muito diferentes na guerra e sofreram tratamento diferente das novas autoridades com as independências. As unidades regulares faziam parte de uma tradição de serviço militar estabelecida desde o início da moderna colonização portuguesa e, apesar do seu incremento durante a guerra colonial, não sofreram um impacto maior do que aquele que é produzido em situações normais de conflito. As unidades de milícia, implantadas nas regiões de origem dos seus elementos, também integravam as estruturas administrativas e não motivaram reações de violência que tivessem excedido as disputas locais”. As grandes tensões sobre a violência focaram-se nas forças especiais africanas, foram elas que sobretudo motivaram a reação brutal dos novos poderes instalados, reação que foi um misto de vingança ou ajuste de contas mas também a procura de um bode expiatório para os fracassos internos, na perspetiva de que essas antigas forças atiçassem movimentos de insubordinação. Lembra-nos também o autor que a partir de 1970 estas tropas especiais conheceram variantes e escreve:
“Na Guiné, Spínola procurou, a partir das experiências de milícias e explorando extinções étnicas, criar um exército africano nacional à imagem do exército português, estruturado em companhias agrupadas em batalhões.
Em Angola, a africanização teve como objetivo aumentar a capacidade operacional das forças portuguesas e a sua autonomia de forma a criar condições políticas e militares para atrair um dos movimentos – a UNITA – e elementos dos outros. Os Flechas serão o conceito mais específico deste tipo de tropas. A africanização tinha como objetivo político a atração de guerrilheiros e dirigentes nacionalistas, especialmente no Leste e Sudeste do território.
Em Moçambique, apesar da grande percentagem de recrutamento local, a formação de tropas africanas autónomas não só foi mais tardia, como estas foram integradas na manobra convencional de Kaúlza de Arriaga, sem explorar todas as suas especificidades de conhecimento do terreno e de ligação às populações.
No final da guerra, os três teatros de operações apresentavam realidades distintas (…) Em comum, os três teatros de operações apresentavam uma realidade onde o avanço das forças de guerrilheiros dos movimentos de libertação deparava com a oposição de dezenas de milhares de militares locais acionados pelas autoridades coloniais. Em 1974, quando ocorreu o 25 de abril, a tendência da africanização das forças ia no sentido de transformar a guerra colonial em três conflitos internos nos três teatros de operações”.
De leitura obrigatória para quem estuda o fenómeno colonial português.
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Nota do editor
Último poste da série de 13 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14359: Notas de leitura (691): “As Mulheres e a Guerra Colonial”, por Sofia Branco, A Esfera dos Livros, 2015 (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Mais uma boa malha.
Como calculo que Beja Santos pouco deixa por respigar de especial, é mais um livro que não adquiro.
E como sempre, são umas no cravo, outras na ferradura.
Uma perfeitamente analizada, é aquela de a África do Sul e Rodésia (Ian Shmith), juntamente com Angola e Moçambique não permiterem que o CONE de África, fosse invadido pelo comunismo.
E é aqui que nunca se explica até ao final a lógica desta luta, que não era apenas dos "brancos", mas também dos Americanos (sempre à bruta) e mesmo de negros como Mandela e Mugabe, e Hasting Banda do Malawi, e aquele do Mobutu e mesmo Tchombé.
E é aqui que não se explica, ao fim de tantos anos, que após a Perestroica tudo se resolveu com Mandela e os brancos, com Mugabe e os brancos, embora aqui foram todos à vida (mas isso, são momentos), com Namíbia e os brancos, etc.
Mas só em Angola e Moçambique, baquearmos 12 anos antes da Perestroica, é que houve uma guerra em Moçambique 16 anos, e Angola, quase 30, com minas, carros de combate, aviação, que foi a tal guerra fria que os "BRANCOS" sul africanos e rodesianos, aguentaram e evitaram nos seus territórios.
E ainda aqui não se explica, que foi na Guiné que baqueou esse plano, (olhinhos da União Soviética e Cuba) porque nós não somos de ferro, e muito fizemos nós, para a evitar o pior.
A História nos julgará.
Tem uma outra que também é uma no cravo outra na ferradura.
"consiste em desvelar o que foi ocultado, tanto pelo que foi dito como pelo que foi silenciado, nas histórias celebratórias e nas memórias autocomplacentes"
Ora que chatice, não é que o Estado Novo não mandava circulares para as freguesias ao pároco e ao regedor para divulgarem as listas e as sevicias no Tarrafal e em São Nicolau?
Todos sabemos hoje, e sabiam muitos naquele tempo, o que se passava na nossa guerra.
Mas quem sabia tudo muito bem eram as Nações Unidas, as ONG's, a Voz da América em Português e brasileiro, idem aspas Rádio Vaticano, Deutcsh Welle, Rádio Praga, Rádio Mosovo, Rádio Argel etc.
E como era proíbido falarmos na rua, os boatos ampliavam ainda mais tudo o que se passava, verificou-se mais tarde.
Cumprimentos
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