segunda-feira, 26 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18460: Notas de leitura (1052): “Guiné-Bolama, História e Memórias”, por Fernando Tabanez Ribeiro; Âncora Editora, 2018 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Março de 2018:

Queridos amigos,
O memorável quadro de recordações de infância em Bolama não salvaguarda o leitor de perceber que o empreendimento de Tabanez Ribeiro não chegou a bom porto, havendo hoje vasta bibliografia sobre tudo o que ele escreve desde navegações atlânticas até às amarguras de um Estado independente que não consegue dar ao mundo uma imagem de governação responsável, onde a classe política prima pelo seu poder autofágico, porquê discorrer longamente sobre matéria consabida, porquê mais do mesmo, porquê não ter carimbado umas memórias únicas partindo da peculiar circunstância do que viu na sua infância e juventude e experimentou na sua comissão militar? É mistério insolúvel, e assim se escrevem livros com elevada carga dececionante.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bolama, História e Memórias, por Fernando Tabanez Ribeiro (2)

Beja Santos

“Guiné-Bolama, História e Memórias” por Fernando Tabanez Ribeiro, Âncora Editora, 2018, despertava a curiosidade atendendo à circunstância de que o autor vivera uma parte da sua juventude na Guiné, a ela regressando como oficial da Armada. Mas o relato das suas memórias não resistiu à tentação de respigar um elenco de dados históricos sobre as navegações atlânticas portuguesas, a questão da escravatura na área da Senegâmbia, a figura dos lançados, a questão de Bolama no século XIX, o relevante papel histórico do Honório Pereira Barreto, as guerras da pacificação lideradas pelo Capitão João Teixeira Pinto, a questão da religiosidade na colónia da Guiné e depois Bolama, tão carinhosamente recordada, não hesito em dizer que é o ponto alto do seu registo do que viu e sentiu e agora passa a escrito.

Nada ficaremos a saber sobre a sua comissão militar, era compreensível a expetativa, foi oficial imediato de uma Lancha de Fiscalização Grande, impossível não haver recordações que possibilitassem um arco entre o passado da sua mocidade e a prova de armas.

Entendeu o autor que se devia debruçar sobre a problemática da independência, o papel de Amílcar Cabral, o seu assassinato, o projeto de união política entre Guiné e Cabo-Verde, deplorar como a República da Guiné-Bissau se mantém um país adiado, e fazer um balanço da historiografia da Guiné e da colonização.

Começa por conjeturar o que seria o resultado que teria hoje uma sondagem à população guineense no sentido de avaliar o respetivo grau de satisfação. Para surpresa de muitos, têm sido feitos trabalhos neste domínio, aguarda-se que a antropóloga alemã Tina Kramer consiga fazer um resumo em língua portuguesa da sua tese de doutoramento sobre a reconciliação dos guineenses quarenta anos após a independência. Num resumo já publicado no blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné a cientista deixou perfeitamente claro o desapontamento de vencedores e vencidos, se estivermos a falar dos que militaram ativamente nas fileiras do PAIGC e daqueles que apoiaram a soberania portuguesa. Ninguém pode esperar regozijo dos brutais ajustes de contas, do esbanjamento e pilhagem de recursos, da má utilização dos financiamentos da cooperação e dádivas para projetos de desenvolvimento, o compadrio étnico na assunção dos cargos públicos e parcialmente nas Forças Armadas, nas execuções sumárias, na indignidade à testa dos assuntos públicos, para já não falar do acinte entre forças partidárias que põe em primeiro lugar a cupidez no exercício do mando, relegando para as calendas o bem-estar das populações. Ninguém desconhece esta situação calamitosa, Carlos Schwarz da Silva, à frente da AD, que foi uma das mais influentes ONG guineenses, contou tudo nos seus relatórios, como são exemplares os relatórios da Liga Guineense dos Direitos do Homem, basta ir ao seu site e ler o relatório Quarenta anos de impunidade na Guiné Bissau. E a própria literatura não ilude toda esta conflitualidade, basta ler o grande escritor Abdulai Silá.

A história de Amílcar Cabral, até à biografia incontornável que lhe dedicou Julião Soares Sousa, tinha uma componente mítica onde não faltavam lendas descaradas. O historiador interroga frontalmente a questão da fundação do PAI em 19 de setembro de 1956, sabendo-se, como a documentação atesta, que Amílcar Cabral nunca falou do PAI antes de 1959, mais concretamente depois de ter ido a Bissau e dividido tarefas com Rafael Barbosa. Nunca o governador da Guiné expulsou Amílcar Cabral, ele regressou a Portugal com a mulher muito combalidos com malária, não foi forçado a ir trabalhar para Angola, foi um antigo professor do Instituto Superior de Agronomia que o indicou para o projeto angolano onde trabalhou em Cassaquel, com resultados brilhantes. Um dos seus hagiógrafos, Oleg Ignatiev, pôs a circular a lenda, continua a render. Não houve fuzilamentos no congresso de Cassacá (fevereiro de 1964) por divergências ideológicas, convergem os testemunhos de que se tratava de um conjunto de guerrilheiros que procediam selvaticamente com as populações, forjando até episódios de feitiçaria para matar pessoas. Ter, como aconteceu durante décadas, acusado a PIDE de estar associada à conjura do assassinato de Amílcar Cabral, hoje é manobra completamente desacreditada. O que os arquivos da PIDE mostram e o próprio Fragoso Allas, ao tempo seu dirigente confirma, é que tinha sido montada uma rede de informação ao mais alto nível em Conacri, Dakar e Ziguinchor, sobretudo, os comerciantes deslocavam-se nesses círculos e colhiam informações valiosas, transmitiam com regularidade as notícias do acréscimo de tensões entre guineenses e cabo-verdianos. É chão que deu uvas incriminar a PIDE, como as coisas são nunca aparecerão as peças fundamentais do processo e temos que acreditar no que escreveram Óscar Oramas, Bobo Keita e Aristides Pereira, este na última fase da sua vida. A lenda do assassinato ainda faz o seu percurso, continua-se a falar em Sekou Touré como instigador do assassinato, ele que no início da manhã daquele dia 20 de janeiro de 1973 enviou um embaixador até Amílcar Cabral avisando-o que estava iminente um golpe, Cabral desvalorizou. Quanto ao significado do ditador da Guiné Conacri ter recebido, a altas horas da noite, os conjurados, como poderia ser de outra maneira? O complô ocorre em território estrangeiro, basta ter dois dedos de testa para perceber que os conjurados precisavam de se legitimar, saiu-lhes o tiro pela culatra. O resto é lenda.

E quanto a um outro tipo de solução que conduzisse a uma transição mais frutuosa para a Guiné, é esquecer que Salazar e Caetano recusaram qualquer entendimento com os dirigentes do PAIGC, está tudo escrito, é comovente responsabilizar a forma insensata como se deu a transferência de soberania, os próprios dirigentes do PAIGC lembram que foram instigados pelos dirigentes do MPLA e da FRELIMO, tinham que ser completamente independentes já para que os processos de descolonização não entravassem em delongas neocoloniais, os dirigentes do PAIGC aceitaram a governação do país sem dinheiro nem quadros, vinham encadeados pelo sonho da ajuda socialista, o sonho caiu na água. Tudo isto é já conhecido, questiona-se o que leva Tabanez Ribeiro a recuperar a história devidamente anotada.

Não se pode deixar de saudar o ato de coragem do autor no enaltecimento que faz de René Pélissier, é de facto o mais influente historiador de língua francesa sobre os acontecimentos coloniais portugueses, a despeito de verrinas e de algumas injustiças que comete, uma das quais o autor recorda pela sua gravidade, a maneira como Pélissier desconsidera Marcelino Marques de Barros, um pioneiro da cultura, da língua, da etnografia e da etnologia guineenses. Concorda-se com a sua opinião quanto à importância do levantamento documental feito por Hermano Tavares da Silva quanto à presença portuguesa na Guiné, história política e militar entre 1878 e 1926. É um grande trabalho, de facto, mas onde há dois erros palmares, inacreditáveis, ao dizer que se constata neste período ter havido uma espécie de luta de classes entre o Governo/administração e os comerciantes e de que alguns levantamentos deste período preludiam o que vem a acontecer com a luta armada, não há qualquer sintonia possível entre guerras localizadas e o projeto de independência de que Amílcar Cabral foi a bandeira. Mas também os grandes estudiosos cometem os seus dislates, é preciso é não os aplaudir…
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Notas do editor

Poste anterior de 19 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18434: Notas de leitura (1050): “Guiné-Bolama, História e Memórias”, por Fernando Tabanez Ribeiro; Âncora Editora, 2018 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 23 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18451: Notas de leitura (1051): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (27) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

"é comovente responsabilizar a forma insensata como se deu a transferência de soberania, os próprios dirigentes do PAIGC lembram que foram instigados pelos dirigentes do MPLA e da FRELIMO, tinham que ser completamente independentes"

Este pormenor de ser o MPLA a picar o PAIGC...este pormenor a ser verdade, nunca o tínhamos ouvido falar aqui nem noutro lugar.

Penso que aqui, BS dará algum crédito a isto.

Mas da parte do MPLA tem alguma lógica, pois estava completamente desacreditado e muito mortiço e quando se deu o 25 de Abril.

Precisava que outros se esforçassem mais um pouco, até eles se refazerem.

O MPLA só apareceram com alguma demonstração de força publicamente em território angolano, assim como os outros dois, só no fim do ano de 1974.

Fizeram do PAIGC guarda avançada? pode ter sido

Anónimo disse...

Beja Santos faz uma leitura e uma interpretação incorrectas do que está escrito em A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926). Nunca aí se disse ter havido na Guiné “uma espécie de luta de classes entre o Governo/administração e os comerciantes”, ou mencionado algo que pudesse ser considerado uma tal “luta de classes”. Quanto a “alguns levantamentos”, faço-lhe ainda notar uma diferença que convém ter bem presente: o que “aconteceu na luta armada” é uma coisa, e o que “motivou a luta armada” é uma coisa totalmente diferente.
Mas vejamos o que está escrito na obra mencionada. O que nela se escreve, por exemplo, pela mão de Manuel Maria Coelho, é que uma “chamada política da colónia” tinha separado em dois grupos os seus habitantes, “nativos ou emigrados, quer da metrópole, quer principalmente de Cabo Verde, compreendidos os funcionários públicos e até os militares”. Podiam classificar-se “simplesmente [por] patriotas e antipatriotas”. Acrescenta Manuel Maria Coelho: “Aqueles eram os que se sentiam orgulhosos por que a Guiné seja, efectivamente e inegavelmente uma colónia inteiramente portuguesa; e estes – os antipatriotas – os que se sentiam morder de raiva por a nação portuguesa, o governo, não continuarem à mercê das condescendências e das tolerâncias de quem exercia na Guiné um poder tão extenso e tão profundo, que as vidas dos cidadãos, e principalmente das autoridades, estavam pendentes das intrigas, dos ódios e das aspirações desordenadas desses ambiciosos sem escrúpulos”.
No relatório da sindicância de que tinha sido incumbido por António José de Almeida (1917), na qual que se incluía a abertura de um “rigoroso inquérito sobre a vida pública da província para assim se esclarecerem tantas e tão variadas queixas que chegavam ao Ministério das Colónias”, o mesmo Manuel Maria Coelho escreve que no decorrer dessa sindicância apercebera-se do clima de intriga política e de interesses das várias facções de que se compunha a sociedade guineense. Verificara que a presença do elemento cabo-verdiano desempenhava aí grande influência. Era o pano de fundo sobre o qual tudo se tinha passado e que em parte o explicava (as operações de Teixeira Pinto em Bissau em 1915 e o seu rescaldo, incluindo as acusações que a este foram dirigidas). Entre esta presença Manuel Maria Coelho ressalta a do secretário-geral, Sebastião José Barbosa. E escreve: “Sebastião Barbosa é de Cabo Verde, ilha do Fogo [...] e como quase todos os cabo-verdianos, do Fogo, principalmente, não têm o menor amor a Portugal, procurando todos os que pela Guiné se encontram, com raras excepções, tomar conta desta província, de cuja administração se apoderaram e que querem conservar em seu poder como colónia de Cabo Verde, porque a não consideram colónia portuguesa”.
Vejamos ainda o que disse o governador Oliveira Duque relativamente às operações em Bissau em 1915: para as iniciar teve de “lutar fortemente contra más vontades, que encontrei até em funcionários altamente colocados, más vontades que atribuía e ainda atribuo ao desejo de que as coisas se mantivessem no pé de soberania fictícia em que estavam, e outras provenientes de animosidades pessoais conta o capitão Teixeira Pinto”. E sobre as acusações que a este foram dirigidas, escreve Oliveira Duque: “A reputação de cada um está na Guiné à mercê dos nossos inimigos Cabo-verdianos, Guineensese e também índios que, conjuntamente com alguns, raros, europeus pretendem fazer da Guiné um feudo para seu exclusivo usufruto, o que vejo com pesar que cada vez mais se aproxima do seu desiderato”.

Armando Tavares da Silva

(continua)

Anónimo disse...


(Continuação)

Mas recuemos a 1891 e vejamos o relato dos graves acontecimentos de Bissau desse ano, das diligências tendentes a compreender e explicar a sua origem e a subsequente procura da paz e harmonia, relato que está cheio de referências a “intrigas”, e procuremos a sua razão de ser. Estes acontecimentos foram precedidos e desenrolaram-se no clima de hostilidade entre as duas tribos papeis da ilha de Bissau, Intim e Antula. Ora o governador Gonçalves dos Santos estava convicto de que estas hostilidades se deviam às ”intrigas dos habitantes da praça” , que “formando dois partidos” entre os beligerantes ”alimentavam a guerra”. O mesmo governador dirá que “o gentio branco e mulato (filhos da ilha do Fogo, principal colónia em Bissau) estão [...] mancomunados com os gentios e grumetes para nos desrespeitarem e desacatarem a autoridade; e os estrangeiros colaboram neste vil procedimento”, fim para que se serviam de “intrigas de toda a ordem”. E na procura de nomes dos instigadores do clima de desconfiança, um grumete afirma que “se fossem só portugueses e não do Fogo os que estavam na praça, não havia nunca guerra, nem com os grumetes, nem com Intim”. Pode perguntar-se: houve aqui algum “levantamento”?
A terminar mencionemos as palavras de Vellez Caroço no seu relatório de 1921-22 referindo-se aos problemas e dificuldades que teve de enfrentar para fazer “o saneamento” da província. Com a “compreensão nítida do presente” e a “visão segura do futuro” escreve Vellez Caroço: “Cairei, prestando um serviço ao meu país, sacrificar-me-ei servindo a República, porque o embuste, a falsidade e o despotismo jamais voltarão a imperar na Guiné, e a obra metódica e persistente da desnacionalização desta rica província, que dia a dia se ia afirmando, teve aqui o seu termo. Como governador assim o espero, e como patriota assim o desejo”.
Vellez Caroço tocava aqui num ponto que outros que o antecederam já tinham sentido: a tentativa surda de afastamento da colónia da esfera de influência portuguesa. Ainda no mesmo relatório escreve Vellez Caroço: “Hoje já é vulgar ouvir na Guiné, entre o elemento cabo-verdiano, que nós somos estrangeiros”. E pergunta: O que seria se “por qualquer motivo esta colónia amanhã deixasse de estar debaixo do domínio português?”
Por considerar que “a obra de desnacionalização [da] colónia era lenta, mas era contínua e persistente”, tornava-se necessário actuar para que não se continuasse a dizer que a Guiné portuguesa era “uma colónia de Cabo Verde”. E para isso era preciso mais atenção dos “compatriotas metropolitanos”, para que para a Guiné “lancem as suas vistas […] e para aqui venham trabalhar”. E, a propósito, nota que “o nativo da Guiné tem tantos direitos como o natural de Cabo Verde, e na sua colónia, até tem mais. Auxiliemo-los, pois, nesta simpática empresa. Façamos do guineense um cidadão português com plena consciência dos seus direitos e correlativos deveres”. Era um desejo patriótico do governador, porventura difícil de atingir.
Para finalizar e voltando às considerações de Beja Santos em que refere o “projecto de independência de que Amílcar Cabral foi a bandeira”, creio poder dizer ter esse projecto terminado com os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980. É bom perguntar-se: que motivação esteve na base destes acontecimentos e quais foram as suas consequências?
E os “grandes comentadores” que dislates é que cometem? É preciso é não ir atrás deles...

Armando Tavares da Silva

PS: Veja-se o meu Post P17819 de 3-10-2017 no qual estas questões são afloradas e se constata que Beja Santos nos comentários à obra acima referida resumiu a duas linhas a presença de Manuel Maria Coelho na Guiné, na prática olvidando um período de tempo e de acção reflectidos em quase dois capítulos desta obra.

Manuel Luís Lomba disse...

Os biógrafos, ou talvez com mais propriedade, os hagiólogos de Amílcar Cabral, teimam em atribuir-lhe a fundação do PAI. Ora o fundador do PAI guineense foi Rafael Barbosa, em Bissau, - contemporâneo ou talvez anterior à fundação do PAI senegalês, em Dacar, de inspiração comunista.
Rafael Barbosa era de ascendência caboverdiana, então apontador da construtor civil, colega de Nino Vieira e militante do Partido Comunista Português, sob a bênção da drª Sofia Pombo Guerra que, por ironia, tinha como vizinho o director da PIDE.
Amílcar Cabral não fundou nenhum partido na Guiné; fez como o cuco, pôs os seus ovos no ninho dos outros. Foi, sim, co-fundador do MPLA em Luanda, quando lá trabalhou.
Ab
Manuel Luís Lomba