Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 21 de janeiro de 2019
Guiné 61/74 - P19425: Notas de leitura (1143): Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Outubro de 2016:
Queridos amigos,
Com a publicação do meu livro História(s) da Guiné-Bissau lancei-me noutro empreendimento, algo que se aparente a uma seleção das páginas de ouro de literatura em torno da Guiné, dos descobrimentos aos nossos dias.
Lido Zurara, e antes de rever o extraordinário André Álvares de Almada e contemporâneos, vim até às páginas de Cadamosto, interessantíssimas, como podereis ler. Tal como Zurara vai descrevendo a aproximação à Terra dos Negros, Cadamosto dá-nos igualmente a transposição dos homens pardos, os Azenegues, e assim chegamos à Senegâmbia, aqui se fundou um comércio que ficou conhecido por Costa dos Escravos.
Um abraço do
Mário
Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra (1)
Beja Santos
No âmbito das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné, a Academia Portuguesa de História editou em 1948 o trabalho “Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra”, com notas históricas por Damião Peres. Este insigne historiador justifica a iniciativa: “Como a crónica henriquina de Azurara não abrange feitos da Guiné posteriores a 1447,as páginas de Cadamosto constituem uma fonte narrativa, embora de utilização cautelosa, pois nelas se encontram dados cronológicos errados, e até, segundo se pode crer, alguma jactância atentatória da verdade”. Esta edição da Academia Portuguesa de História reproduz o texto de 1812 com as traduções a partir do italiano os dois viajantes, da Academia Real das Ciências, veja-se o site: http://livrosevelharias.blogspot.pt/2012/10/viagens-de-luis-de-cadamosto-e-pedro-de.html#!/2012/10/viagens-de-luis-de-cadamosto-e-pedro-de.html.
Vamos começar pela primeira viagem de Luís de Cadamosto. Ele vem fazer comércio à Costa dos Escravos ou Terra dos Negros, é um veneziano que espelha os conhecimentos da época, homem curioso, o seu relato começa no que é hoje o Senegal. Diz assim: O país destes primeiros negros do reino de Senega (Senegal) é o primeiro reino dos negros da Baixa Etiópia. Os povos próximos deste rio chamam-se Gilofos (os Jalofos).
É atento e minucioso: o Cabo Verde é a terra mais alta que há em toda esta costa, para além do dito Cabo Verde toda a costa é praia rasa. Vem a terra e comenta: Não há no país nenhuma cidade nem lugar murado, se não aldeias e casas de palha (que eles não sabem fazer casas de paredes porque não têm cale e têm grande falta de pedras). O modo de vida deste rei é o seguinte: não tem rendimento certo, além daquele que lhes dão os senhores desse país todos os anos para estarem de bem com ele, os quais presentes são de cavalos que lá são muito apreciados, por deles haver falta. Este rei vive também com roubos que faz, e tem sempre muitos escravos negros que mada pilhar não só no país como nos outros países vizinhos. Quanto ao vestir desta gente, quase todos andam nus continuamente salvo que trazem um coiro de cabra posto em forma de calça com que cobrem as vergonhas; mas os senhores e aqueles que podem comprar alguma coisa vestem camisas de pano de algodão. Quanto à forma, as suas camisas são compridas até meia coxa e largas. As mulheres desta região são muito asseadas de corpo, pois se lavam completamente, quatro e cinco vezes por dia; e assim também os homens, mas no comer são porcalhões e sem nenhuma educação. São homens de muitas palavras e nunca acabam de falar; e são todos, sempre, mentirosos e enganadores, em extremo; por outro lado, são caritativos, porque dão de comer e beber a qualquer estrangeiro que, de passagem, chegue a sua casa por uma refeição ou por uma noite, sem qualquer remuneração.
Cadamosto tem olhar de antropólogo na descrição das cerimónias, nas receções, na admiração ao destemor dos nadadores, descreve a vida de Budomel, o rei da região.
E procura dar um quadro da economia da terra: “Neste reino de Senega dos negros, nem daí por diante, em nenhuma Terra do País dos Negros se produz trigo, nem centeio, nem cevada, nem aveia, nem vinho. E visto que o país é bastante quente e não chove em nove meses do ano. A sua comida é de milho de diversas espécies, fava e feijões que nascem naquelas partes, os mais grados e mais belos que há no mundo". E procede a uma descrição da comida, bebida e substâncias oleaginosas. Fala então da fauna: nesta terra de Senega dos negros não se encontram outros animais úteis a não ser bois, vacas e cabras; ovelhas não se criam aí, nem poderiam viver por causa do grane calor. As vacas e bois daquele país são mais pequenos que os nossos. Animais bravo de presa há-os: leões, onças e leopardos, lobos e cabritos monteses; há í também elefantes selvagens. Estes elefantes andam aos bandos. Os seus dentes grandes nunca lhes caem, a não ser por morte. E aí animal que não ataca o homem se o homem não o atacar.
Cadamosto, com a curiosidade comerciante, vai ver como os outros mercadejam. E observa: Porque me acontece estar em terra muitos dias, determinei ir ver um seu mercado ou feira que se fazia numa pradaria, não muito longe do lugar onde eu estava hospedado; o qual se fazia à segunda e sexta-feira: fui lá duas ou três vezes. A este mercado vinham homens e mulheres das terras que estavam em volta até quatro ou cinco milhas, pois que os que estavam mais longe iam a outros mercados, porque também noutros lugares se costumam fazer. Nestes mercados compreendi muito bem que estes são gente muito pobre, pelas coisas que traziam ao mercado para vender. Primeiramente era o algodão (mas não fiado) em pouca quantidade; não muitos panos de algodão; legumes, milho, óleo; gamelas de pau, esteiras de palma e todas as outras coisas de que se servem para a sua vida. Nada se vende por dinheiro porque não há moeda nenhuma nem usam se não trocar coisa por coisa ou duas coisas por uma coisa, e todo o seu mercado se faz por troca. Estes negros, tanto machos como fêmeas, vinham ver-me como uma maravilha, e parecia-lhes coisa extraordinária ver um cristão em tal lugar, nunca dantes visto: e não menos se espantavam do meu traje e da minha brancura; o qual traje era à espanhola, com um jibão de damasco preto, e com uma capinha de gris; reparavam para o pano de lã, que eles não têm, e reparavam para o jibão, e muitos pasmavam, alguns tocavam nas mãos e nos braços e com cuspo esfregavam-me para ver se a minha brancura era tinta ou carne; e vendo que era carne branca, ficavam-se em admiração. Vendo-se um cavalo arreado com os seus arreios por nove até catorze escravos, conforme a qualidade e beleza do cavalo. Admiravam-se, grandemente, de ver arder uma vela, de noite, num castiçal e isto porque na sua terra não sabem produzir nenhuma outra luz que não seja a da fogueira.
Prepara-se para partir do Senegal para a Gâmbia, e ainda mais abaixo. E explica: Tive ocasião de estar neste país do senhor Budomel alguns dias, para vender e comprar, e saber de muitas coisas: pelo que estando do dito senhor despachado, e tenho obtido uma certa quantidade de escravos, determinei ir para diante, e passar o Cabo Verde e ir descobrir países novos para experimentar a minha sorte. Não muito longe deste primeiro reino de Senega dos Negros, indo mais para diante, havia um outro reino ou país chamado Gambra (Gâmia) no qual se encontrava grande quantidade de ouro.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de18 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19414: Notas de leitura (1142): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (69) (Mário Beja Santos)
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1 comentário:
A chamada Costa dos Escravos não corresponde à Senegâmbia, como Mário Beja Santos afirma, mas sim à costa da atual Nigéria, Benim e Togo. Ainda nos anos sessenta do século passado, Portugal tinha uma fortaleza nesta costa, fortaleza esta pela qual terão passado milhares e milhares de escravos a caminho do Brasil e de outras paragens no outro lado do Atlântico: o Forte de São João Batista de Ajudá, no atual Benim. Presentemente este forte é um museu dedicado à escravatura e a sua conservação tem contado com o apoio da Fundação Gulbenkian.
A oeste da Costa dos Escravos ficava a Costa do Ouro (atual Gana) e a oeste da Costa do Ouro ficava (e fica) a Costa do Marfim.
No tempo de Cadamosto (séc. XV) a designação Costa dos Escravos nem sequer fazia qualquer sentido, pois o tráfico de escravos africanos ainda estava nos seus primórdios, muito longe ainda de atingir as proporções "industriais" e ignóbeis que atingiu mais tarde, depois da chamada "descoberta" das Américas. No séc. XV, os portugueses estavam muito mais interessados no ouro, marfim e outros materiais preciosos do que em escravos.
Os Jalofos de que Cadamosto fala devem ser os Wolofs, que vivem na Gâmbia, Senegal e Mauritânia.
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