1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 21 de Fevereiro de 2015:
A Sociedade de Brunhoso
Volto a Brunhoso como quem volta ao principio do mundo, foi
lá que começou para mim o despertar das sensações e dos sentidos.
Recordo ainda a primeira vez em que me reconheci ao espelho,
provavelmente será a recordação mais antiga que tenho. Sei que foi na
varanda da casa dos meus avós maternos. Não sei porque estava esse
espelho que até era bastante grande na varanda. Nunca mais esqueci a
surpresa e o espanto ao descobrir que o miúdo, de olhos azuis e cabelo
arrepiado e loiro, que do outro lado do espelho olhava para mim, não
era ninguém, mas a minha imagem refletida.
Olhando para dentro de mim, fazendo a tal introspeção de que falam
os psicólogos, vejo-me num espelho já baço, que me devolve uma imagem
que não me entusiasma tanto como o espelho da varanda.
Embora me tenha procurado estudar ao longo de todos estes
anos de vida, do que consegui entender pouco encontrei que não fosse
comum aos meus semelhantes. Não vou falar de mim, não vou falar das
minhas qualidades, se é que as tenho, nem nos meus defeitos. Já aprendi
com a vida que nunca devemos ter uma opinião demasiado optimista de
nós próprios, pois nesse caso daremos aos outros a imagem ridícula de
pavões de plástico insuflados de vento. Também nunca devemos ter uma
opinião demasiado pessimista pois isso pode ser a via para uma vida de
queixumes e auto-comiseração que nos pode levar a um mau fim. O melhor
é pensarmos que somos como a maioria, um entre tantos, perdidos ou
despercebidos na multidão.
Ao olharmos com muita insistência para o nosso umbigo, podemos ter
o desgosto de pouco ou nada conseguirmos ver para além dele..
O melhor é estarmos atentos às realidades exteriores, estarmos atentos
aos outros pois vêm-se melhor e ao conhecê-los aprendemos a
conhecer-nos a nós próprios pois não somos muito diferentes. Somos
todos macacos que evoluíram e até aprendemos a escrever.
Hoje neste regresso às minhas origens procuro entender e perceber
os meus conterrâneos de menino e jovem e os que os antecederam.
Sobretudo procuro entendê-los na sua verticalidade, na sua honra, na
sua lealdade de uns para com os outros, na sua fidelidade à palavra
dada, na sua hospitalidade. Não fantasio, na minha infância e
juventude tudo isto era autêntico, tudo isto era real.
Pela história que tenho lido de várias fontes, livros, jornais,
revistas, testemunhos dos mais velhos procuro conhecer e interpretar
esse povo de Brunhoso a que pertenço e compreender as suas vidas e
comportamentos.
Pastor de Brunhoso
Brunhoso no passado foi uma sociedade de subsistência e como tal pobre, onde as pessoas viviam com muito trabalho e com
pouca fartura. Nesse tipo de sociedade não há lugar ao desperdício nem
ao supérfluo. Nesses tempos antigos as pessoas à noite, antes de se
deitarem, acubilhavam o lume, para guardar brasas para o acender na
manhã seguinte e dessa forma pouparem um fósforo. Comia-se o que dava
a terra e a carne dos animais que cada um criava, as aves e o porco,
do qual se aproveitava tudo, até as tripas para fazer o fumeiro. Na
casa dos meus pais, lavradores remediados, recordo-me dos dias de
segada, no pino do verão, em que eram chamados muitos homens à jeira.
Nesses dias, os trabalhadores tinham que ser bem alimentados, pois
estavam sujeitos a um esforço enorme, e a nossa alimentação em casa
também melhorava. Eu que lhes ia levar muitas vezes as refeições às
searas, gostava sobretudo de comer com eles, pelas nove horas da manhã,
as sopas de centeio com azeite rijado, alho e colorau, cada um com uma
colher cerca de oito por cada tacho.
Uma sociedade de subsistência é uma sociedade que vive do essencial
e que tem um grande respeito por tudo o que é essencial, a vida, a
morte, os alimentos como o pão, o azeite e o vinho, são produtos quase
sagrados, necessários à vida e às cerimónias religiosas.
A grande alteração dos costumes dos valores e mentalidades fazem
já parte da história da minha vida, pois terá acontecido nos anos 60,
quando se dá a grande emigração para a França e outros destinos
europeus.
A "fuga" para o estrangeiro estendeu-se a todas as famílias de
trabalhadores da terra e sobretudo aos mais válidos. Brunhoso sofreu
uma devastação enorme, uma sangria terrível. A partir daí as
relações económicas e de trabalho ficaram alteradas.e tudo se vai modificar, os costumes, os valores, as mentalidades. Os terrenos eram
pobres e só eram rentáveis porque a mão de obra era barata. Com a
debandada dos trabalhadores a mão de obra escasseia e fica mais cara,
a mecanização da lavoura é dispendiosa e o retorno que dá em
rendimento é fraco ou nulo. Quando escrevi no P12388
(*) sobre o
dia das sortes, disse que quatro dos meus "praças" já tinham partido
para Angola ou Brasil mas esqueci-me de referir que os outros três,
que fizeram a inspeção comigo, vieram propositadamente de França, para
"dar a tropa" segundo a expressão deles. Não sei se vieram por medo ou
por amor à Pátria, pois a Pátria poucos benefícios lhe tinha dado além
duma professora que os enchia de bofetadas e reguadas se não
soubessem as lições de história e
geografia.
A revolução de Abril de 1974 irá dar outra compreensão aos
habitantes das aldeias e campos de Trás-Os-Montes e outras terras do
interior, mas eles já tinham feito a sua revolução.
As revoluções anteriores, a Liberal e a Republicana, nada tinham
alterado nas suas vidas, os seus parcos recursos e as condições de
trabalho nos anos cinquenta do século passado, reportavam à Idade
Média. Quando as condições são difíceis e não conseguimos melhorá-las
a atitude mais inteligente obriga-nos a conformar-nos com elas e a
procurar sermos felizes dessa forma. Nessa sociedade escalonada, entre
trabalhadores sem terra, muito poucos, pois uma hortinha quase todos
tinham, pequenos lavradores que embora tendo já alguns bens, eram
obrigados a trabalhar para os outros, os dez ou quinze lavradores "remediados" pois sem ter que trabalhar para os outros e tendo que
chamar outros nas colheitas, trabalhavam as suas terras. Restam os
ricos, no topo da pirâmide, quatro famílias poderosas, cujos
proprietários não trabalhavam e tinham muitos a trabalhar para eles.
Mesmo estes ricos não viviam duma forma muito faustosa pois para pôr
os filhos a estudar por vezes viam-se com dificuldades. Estas relações
entre uns e outros com as suas diferenças e desníveis perdiam-se na
bruma dos tempos pelo que cada qual as aceitava sem pensar em culpas
ou injustiças, enfim era o destino de Deus.
Pobres ou ricos, todos eram amigos embora houvesse queixas, como há
sempre nas relações entre homens. Por exemplo, patrão que dava pouco
vinho aos trabalhadores era "falado" e pouco considerado entre eles.
Sem que houvesse qualquer sindicato, os trabalhadores nem
conheciam tal palavrão, mesmo nesse tempo de ditadura faziam chegar
algumas revindicações aos lavradores. Lembro-me de ouvir o meu pai,
fixei-lhe as palavras, sem lhe conhecer todo o significado social,
pertencia aos lavradores remediados, dizer para um irmão ou cunhado o
seguinte:
- Olha que os homens este ano querem mais um escudo por jeira!
Nunca soube quem era o porta-voz das revindicações.
As casas mais ricas, por vezes com bastante regularidade, outras vezes
atendendo à miséria de alguns anos, eram bastante permissivas com os
mais pobres e deixavam que eles fossem "roubar" lenha, pastar os
animais para os seus lameiros e davam também bens de primeira
necessidade como pão, batatas, azeite e até forragem para os animais.
Precisavam todos uns dos outros, daí também esta "caridade", não de
todo desinteressada. Esta era a sociedade ideal que o ditador sempre
quis para Portugal, humildes, trabalhadores, tementes a Deus e
respeitadores da ordem estabelecida. .
Porém esta sociedade não foi obra dele, pois esta é uma sociedade que
vem de séculos antigos que os reis, os senhores feudais e a Igreja
criaram.
Afinal ele terá nascido e sido criado numa sociedade semelhante e
quis reproduzi-la num país inteiro.
Como disse atrás, as revoluções liberal e republicana, mais viradas
para as grandes cidades e o litoral, passaram muito longe do Portugal
interior.
Com a emigração dos anos sessenta e setenta, surgem os trabalhadores, que à custa de muito trabalho, muitas privações e sacrifícios,
amealham muitos milhares de francos que numa primeira fase servirão
para adquirir algumas terras que nunca tiveram e construir casas com
melhores condições na aldeia. A febre dos francos era tal que até um
tio meu, um lavrador "remediado", bastante aventureiro, que nunca
tinha trabalhado para outros, já com mais de cinquenta anos, resolveu
ir "a salto" para a França. Só conseguiu aguentar lá meio ano pois as
condições eram mais duras do que ele pensava.
Nessa sociedade medieval desnivelada e pacifica, vivi contente,
outras vezes descontente, mas eram tempos de mais alegria e entusiasmo
pois foram os anos da infância e da adolescência. Os homens dessas
sociedades, condenados a viver num espaço confinado, onde os
parentescos se cruzavam entre todos e até por vezes o mais pobre podia
ser irmão do mais rico, e a terem que encarar-se quase diariamente
eram obrigados a serem leais e solidários. As sociedades mais pobres,
talvez por causa da escassez de bens materiais, cultivam bastante e
gostam de o demonstrar com algum orgulho certos valores espirituais e
sociais como a lealdade, a honra e a hospitalidade. Atente-se aos
berberes e a algumas tribos de árabes. Não sei se consigo dar a razão
mais correta desse comportamento.
Nesse meio pequeno, a palavra dada e a honra eram como moedas de
troca que garantiam a qualquer habitante desse universo limitado que
teria sempre um amigo por perto, em quem podia confiar, em caso de
necessidade. A hospitalidade que se cultiva faz parte dessa sociedade
comunitária que desde tempos antigos teve que se defender do frio, da
fome, dos lobos ou outros animais selvagens. Essa hospitalidade
estende-se aos forasteiros que são sobretudo habitantes de terras
próximas ou até
longinquas. Inicialmente terá sido instituída para alimentar os homens
em trânsito ou deslocados posteriormente terá ficado como uma prática
cavalheiresca.
Brunhoso, esse paraíso para uns e um campo de trabalhos para
outros, mas onde afinal se coexistia com uma felicidade relativa, está a
acabar, a emigração e os média, acabaram com a sociedade de
subsistência e impuseram a sociedade de consumo, onde tudo tem um
preço convertível em dinheiro, até a lealdade, a palavra e a honra.
Essa sociedade de subsistência com a evolução e a globalização
estava condenada a acabar.
Duma sociedade de miséria, desigual mas fraterna, passamos para
uma sociedade individualista e miserável, onde temos que estar sempre
precavidos dos aldrabões, traficantes e trafulhas. Ficamos abertos aos
produtos que a sociedade moderna e tecnológica fabrica, muitos deles
necessários porque o
markting os impõe como tal. Ficamos expostos aos
vendilhões do templo que se insinuam nas televisões no intervalo das
telenovelas.
Hoje a minha memória vagueia entre cá e lá, entre essa sociedade
antiga e fraterna mas desigual que obrigou muitos dos meus
conterrâneos a dar sesse grande salto que lhes deu dinheiro mas também
muita humilhação e sacrifícios e, a sociedade de consumo, sociedade de
banqueiros e financeiros, homens sem rosto e sem honra que nos
governam e nos roubam a dignidade e o dinheiro.
As experiências têm falhado, mas tem que haver uma sociedade alternativa.
Não podemos, não devemos esquecer que os portugueses
descobridores, povoadores, viajantes, emigrantes, dispersos por toda a
Terra, há quinhentos anos descobrimos os caminhos da Terra inteira.
Talvez possamos fazer mais essa descoberta.
.
Um grande abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
____________
Notas do editor
(*) vd. poste de 4 de dezembro de 2013 >
Guiné 63/74 - P12388: Estórias avulsas (73): O Dia das Sortes na aldeia de Brunhoso (Francisco Baptista)
Último poste da série de 23 de fevereiro de 2015 >
Guiné 63/74 - P14289: Pensamento do dia (18): A guerra (colonial) e as nossas mulheres (Tony Borié / António Graça de Abreu)