
Foto: © Vasco da Gama (2008). Direitos reservados.

Recorde-se que, a 17 de Janeiro de 1974, Spínola fora nomeado vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, por sugestão de Costa Gomes. Menos de 2 meses, a 14 de Março, os dois generais serão afastado do cargo devido à recusa em participar na manifestação de apoio ao Governo e à sua política ultramarina.
O livro, de 248 páginas, tornou-se um best-seller. Mais de 300 mil exemplares foram vendidos, num ápice, dentro e sobretudo fora do circuito normal do mercado livreiro. Mas poucos leitores, na época, terão tido a pachorra de o ler de fio a pavio. Eu fui um deles. A obra era um estopada. Mesmo assim há quem pense que foi um dos livros que abalou uma época e um regime.
Na revista Visão, desta semana (edição nº 833, de 19 a 25 de Fevereiro de 2009), Luís Almeida Martins publica, a propósito desta efeméride, um artigo com o título (irónico), "Portugal e o passado", e que termina com este parágrafo:
" (...) Poucos dias antes de morrer, a 13 e Agosto de 1996, com 86 anos, [Spínola] foi visitado no Hosital da Estrela por Nino Vieira, presidte da Guiné-Bissua e antigo comandante do PAIGC. Ao sair do quarto, Nino trazia uma lágrima no olho. Os guerreiros têm uma concepção própria da vida e da morte. Não sabem é ler o futuro, como o livro de Spínola demonstrou à saciedade"... (Curiosamente, Nino voltou a referir este episódio, na audiência que concedeu, em 6 de Março de 2008, a um grupo de participantes do Simpósio Internacional de Guiledje).
De qualquer modo, o livro abalou Marcelo Caetano e o seu regime, defende o jornalista da Visão. "Pela primeira vez, um oficial general atrevia-se a discordar da doutrina oficial"... E não era um oficial qualquer. O homem do "pingalim e monóculo" ganhara uma "aura castrense talvez só suplantada pelas de Mouzinho de Albuquerque e de outros chefes militares das campanhas coloniais da viragem do século. Dando uma np cravo e outra na ferraedura, combatia a guerrilha, enquanto, de pingalim na mão, organizava congressos dos povos guineenses e delegava poderes nas autoridades tradicionais. O seu monóculo tornou-se lendário. Alcunharam-no de Caco e tinha uma corte de admiradores de camuflado que bebiam as suas palavras" (...).
O alcance efectivo da obra de Spínola e da sua tese do federalismo e do diálogo com os movimentos de libertação, a começar pelo PAIGC (como solução política para uma guerra que não poderia ter solução militar), ainda é hoje objecto de discussão entre especialistas e historiador. De qualquer modo, importa sobretudo sinalizar a efeméride. Ao fim e ao cabo, Spínola foi o comandante de muitos de nós... A sua figura, a sua conduta, o seu pensamento e a sua estratégia não deixaram ninguém indiferente. (LG)
2. Recortes de imprensa

O livro que abalou o regime, por Elmano Madail.
Jornal de Notícias, 22 de Fevereiro de 2009
A manhã despertou estranha há 35 anos. Num país atrasado e prenhe de analfabetos, orçados em 25,9% da população - embora os funcionais ampliassem de sobremaneira a estatística -, havia gente que esperava, à porta das livrarias das principais cidades, pela oportunidade de comprar... um livro!
Um "best-seller" instantâneo que trazia, lá dentro, em páginas densas e cheias de considerações que soariam estranhas a muitos dos ansiosos compradores, o germe do golpe de Estado que fulminou o mais longo regime ditatorial da Europa, chamado de Estado Novo. Na alvura da capa discreta, inscrevia-se a negro "Portugal e o futuro", coroado pelo nome do autor insuspeito: o general de Cavalaria António de Spínola, vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e ex-governador da Guiné Portuguesa. A autoridade que o título hierárquico lhe conferia, a par da fama de guerreiro prestigiado, converteram aquele livro num ícone da Democracia.
Eventualmente mais do que as teses ali defendidas. Volvidos 35 anos, que memória fica desse volume aos que o leram? E que outros livros foram capazes de estimular o público, desassossegar o poder e marcar tempos assim conturbados? E hoje, o livro tem ainda o mesmo poder de mobilização?
Nuno Canavez, dono da Livraria Académica, no Porto, recorda que "a primeira edição esgotou num abrir e fechar de olhos. Foi uma corrida ao livro". Inusitada, não obstante ser habitual, na época, a urgência de comprar obras adversas à doutrina oficial: "Sempre que saía qualquer coisa contra o regime, tinha muita venda e rápida, porque vinha a censura e limpava tudo", garante o livreiro com 60 anos de profissão. E a limpeza podia ser radical.
(..) "Sucede, porém, que "o livro do Spínola não chegou a ser retirado", afirma Canavez. Para ele, "dava a impressão que havia até, por parte de alguns do Governo, uma vontade de mudança". A que viria não estava prevista no livro de Spínola, muito menos radical do que o futuro forjado em Abril. Face a uma guerra colonial, longa de 13 anos e sem termo à vista, que empurrava a juventude para o desperdício de quatro anos em armas, quando não o da própria vida, Spínola advogava a autodeterminação das colónias - mas não a independência -, e a federação dos territórios ultramarinos com a metrópole. Curta ambição.
"O livro do Spínola dizia coisas banais, e até evidentes", considera José Medeiros Ferreira, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros no I Governo Constitucional. E, sem retirar méritos à obra, sublinha que, um ano antes, havia enviado do exílio em Genebra, ao III Congresso da Oposição Democrática, "uma comunicação lembrando que a questão colonial não tinha solução militar e que era necessária a independência das colónias. E apontava o possível papel das Forças Armadas no derrube da ditadura e no processo de democratização de Portugal", diz o docente da Universidade Nova de Lisboa.
Alguns intelectuais duvidam mesmo da autoria exclusiva de Spínola, sugerindo que "os autores foram o sobrinho de Mário Soares, José Manuel Barroso, que prestou serviço militar na Guiné sob o comando de Spínola, e o embaixador Nunes Barata. Esses terão participado na discussão e organização do livro, senão até na redacção", cogita o sociólogo e cientista político Manuel Villaverde Cabral. E realça que grande parte do impacto, designadamente enquanto catalisador do Movimento das Forças Armadas, "deveu-se ao eco dado por Soares, que o citou em dois artigos no 'Le Monde'". Após o 25 de Abril de 1974, o livro "perdeu completamente a relevância", circunscrita à qualidade de mobilizador dos capitães golpistas, segundo Villaverde Cabral.
Já Nélson de Matos, editor de longa data, considera que "Portugal e o futuro", a par de "Portugal amordaçado", de Mário Soares - saído em França, em 1972, e em Portugal após a Revolução dos Cravos -, "são as obras fundadores da nossa Democracia". Publicadas na Arcádia, onde trabalhava Nélson de Matos.
(...) E agora? 35 anos após "Portugal e o futuro" ter esgotado edições e inflamado paixões, há ainda espaço para livros doutrinários, filosóficos ou programáticos que sejam mobilizadores? "Se fosse muito claro nas propostas, e correspondesse a uma saída para um problema social grave, claro", admite Medeiros Ferreira. Tal como Veiga, aliás: "Há condições para livros com igual importância e densidade", garante. E Nélson de Matos, que publicou obras "de vários políticos e tendências diversas ao longo da carreira", advoga até o potencial de vendas interessante.
Veiga alerta, porém, para "a perda de influência dessas obras". Por um lado, "porque os media não estão interessados, visto não serem convertíveis em manchetes". Depois, porque "há novos media, como os blogues, que vieram ocupar muito do espaço desses livros", sublinha Medeiros Ferreira.
E, por fim, porque os tempos mudaram. Muito. "Desapareceu o 'maître à penser', pensadores que indicavam caminhos, escreviam obras que fortaleciam convicções e se tornavam referências", diz Miguel Veiga. "Hoje, impera o 'pensamento mole', as sociedades são cinzentas e, com as novas tecnologias, sabe-se cada vez mais e pensa-se cada vez menos". Agora, as revoluções fazem-se no ciberespaço...
__________
Nota de L.G.:
(*) Vd poste de 20 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3765: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (7): A visita do General Spínola
(...)
No dia 14 de Abril, mais uma vez recebemos a visita do General Spínola.
Parei este texto neste parágrafo, vai para mais de quinze dias. Problemas da vida pessoal, mas fundamentalmente o medo de não saber expressar, ou fazê-lo de forma menos correcta, os sentimentos acerca do General Spínola, homem controverso que suscitou, e pelos vistos continua a suscitar, sentimentos de amor e desamor, tão depressa acusado como louvado, que na guerra tentava encontrar soluções ou pela via diplomática junto de Shengor, ou invadindo países vizinhos, como aconteceu com a Operação Mar Verde, autor de Portugal e o Futuro (mais vale tarde que nunca), abandonando o Guileje ou pelo menos não lhe dando hipóteses de uma defesa racional, recusando o convite de Marcello Caetano para ministro do Ultramar em finais de 1973, recusando-se também e juntamente com o General Costa Gomes a fazer parte da Brigada do Reumático que foi prestar vassalagem a Caetano. Este homem, que foi também o primeiro Presidente da República após o dia da libertação – 25 de Abril de 1974 - este homem heterodoxo, será no decurso da história que vou escrevinhando acerca da minha Companhia, analisado apenas e só através de um discurso substantivo que se limitará a descrever a vivência que os Tigres do Cumbijã com ele tiveram.
No dia 14 de Abril de 1973 recebemos então a visita do General Spínola. Recordo-me da primeira pergunta que me fez:
- É do quadro ou miliciano?
Recordo-me da resposta imediata e eventualmente atrevida que lhe dei:
- Neste buraco?… Sou miliciano.
Vi nele o esboço de um sorriso, seguido de nova questão:
- Falta-lhe alguma coisa?
- Tudo!
- Tudo o quê? (...)