CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
37 - De 1 a 8 de Julho de 1974
Julho de 1974
Aproximavam-se os tempos das coisas derradeiras. Os sinais estavam um pouco por todo o lado, mas os acontecimentos não correspondiam à ânsia de uma resolução clara e definitiva, e arrastavam-se de forma penosa e desesperante. Fui-me abaixo. Em carta de 05-07-1974 para a família, dou conta de estar a ser medicado por ter os nervos arrasados. Começo a ponderar vir de férias à Metrópole para recuperar a saúde e ganhar tempo. Podia ser que quando regressasse estivesse clarificada a situação e se procedesse à passagem do território para as novas autoridades. Amadurecida a ideia, decidi que só ficaria ali até ao fim deste mês de Julho. Passaria o Agosto na Metrópole, se entretanto não ocorresse algo de significativo que me alterasse os planos. Mas eu queria que ocorresse, para poupar uma viagem e evitar ser surpreendido pelos acontecimentos. Mas não aconteceu nada e no final do mês decidi partir, como pouco antes já tinham feito alguns dos meus camaradas da Companhia e até os Comandantes de Batalhão.
Mas foi o maior erro da minha vida. Tudo o que antes ansiara testemunhar, começou a ocorrer logo nos primeiros dias do mês seguinte. Agosto seria o mês da entrega do território ao PAIGC, fim da secular presença portuguesa naquele chão. Perdi a oportunidade de ser testemunha de momentos históricos de tão alto significado, em que tantas vezes havia reflectido, não fosse eu e os meus camaradas ainda ali, os últimos guardiões do templo. Ia-se entregar o templo sem eu estar presente. Sei que os momentos derradeiros da troca das bandeiras nacionais me iriam gerar fortes emoções e sentimentos ambíguos: regozijo pelo fim do colonialismo que abria caminho à independência da Guiné, e o sentimento vago da perda, todavia aceite. Foram esses momentos históricos que eu perdi, e isso deixou-me uma mágoa para sempre. Podia-se ser contra aquela guerra e contra o colonialismo, (que se não fosse português era outro qualquer), podia-se achar justo o direito à autodeterminação conseguida – ou não -, com as lutas de libertação, mas, para o bem e para o mal, foi português aquele chão africano desde que, há mais de quinhentos anos, ali chegaram os primeiros compatriotas. Nós seríamos os últimos. Só por isso, a nossa geração ficaria na História, mas ficará também pelo alto preço que pagou sobretudo em sacrifícios inimagináveis e em vidas humanas, para que se mantivesse lá a mossa bandeira. Tal como fizeram os primeiros, e sem menos valor e honra que eles.
Da História da Unidade do BCAÇ 4513:
JUL74/01 – (...). Todas as Companhias do Sector continuam a realizar as suas patrulhas de defesa próxima dos estacionamentos num raio de cinco quilómetros.
JUL74/02 – Conforme tinha ficado assente numa reunião neste Comando com elementos do PAIGC vindos de BISSAU e os Comissários Políticos presentes em A. FORMOSA, fez-se a devolução a estes Comissários das bandeiras do Partido, que em 28 de MAIO de 74 tinham sido entregues neste Comando por elementos da CCAÇ 18, após as terem retirado dos elementos da população que as possuíam. Antes desta devolução, houve uma reunião com os referidos elementos da CCAÇ 18, que concordaram plenamente com a atitude tomada e, foram eles próprios os portadores das bandeiras para as entregar ao PAIGC. Inclusivamente foi devolvida uma bandeira que tinha sido entregue ao Régulo SAMBEL de CONTABANE, o qual na altura a tinha entregado directamente neste Comando.
(...).
JUL74/06 – Prosseguem em bom ritmo os trabalhos nas salas de Oficiais, Sargentos e Praças. [!].
JUL74/07 – Conforme pedido dos Comissários Políticos do PAIGC presentes em A. FORMOSA, foi solicitado a BISSAU, autorização para a abertura da estrada CHAMARRA-GADEMBEL. Uma vez autorizado, iniciou-se a desminagem e a abertura da referida estrada.
JUL74/08 – Prosseguem em todo o Sector os trabalhos de desminagem de diversos trilhos utilizados pelo PAIGC. Foram desminados trilhos na região de BUBA, NHALA e MISSIRÃ.
Das minhas memórias:
Julho de 1974. Desminagem do carreiro de Uane (trilho do PAIGC)
Era a quarta vez que ia àquela zona do carreiro, no extremo norte da nossa área de acção, lá para os lados do Rio Corubal, mas ainda longe do rio. O objectivo foi sempre a minagem e desminagem do trilho usado frequentemente pelos guerrilheiros. Como responsável pelas minas, armadilhas e afins da minha Companhia, era obrigado a fazer o levantamento das minas antes de uma ausência prolongada, como era o caso das férias. No regresso tinha de lá voltar a instalá-las de novo. Agora a situação iria ser diferente: era a última vez que levantaria as minas, à imagem do que estava a acontecer em todo o território, face à situação de paz irreversível. O PAIGC fazia o mesmo.
Saímos muito cedo de Nhala, que a caminhada iria ser longa. Com o meu grupo seguia o meu guia preferido, milícia maduro e experiente, com um ar sempre sisudo mas de trato fácil e atencioso. Pouco falava e, em português, quase nada. Mas entendíamo-nos perfeitamente. Era marido da Fátima, a minha lavadeira, também ela uma excelente pessoa, dedicada e afável até à doçura. E falava com desenvoltura o português acrioulado, se assim se pode dizer. Tantas saudades desta gente...
Caminhámos quase sempre dentro de mata cerrada que, a certa altura, começava a mudar e a apresentar-se algo estranha e até misteriosa, onde havia poilões enormes e, numa certa zona, um solo de rochas de aspecto granítico como não conhecia em mais nenhum lado na Guiné. No regresso parávamos sempre aí para comer e descansar. Quando ali passámos no ano passado, fiz algumas (péssimas) fotografias que mostrarei mais à frente. Aliás, as únicas fotografias que tenho da ida e regresso do carreiro, são do ano de 1973, que agora não repeti. Apenas a fotografias da desminagem são desta acção de Julho de 1974.
Saímos finalmente da mata para uma clareira que eu reconheci como próxima do local das minas. Era ainda muito cedo e a humidade extrema evaporava-se do chão como uma nuvem longa e densa, criando momentos tão desconcertantes que me adiantei para fotografar a caminhada do pessoal em fila indiana. Ao princípio os soldados caminhavam com essa nuvem ascendente a ocultar-lhes as pernas, revelando a imagem bizarra de um grupo de “amputados” a deslizarem suavemente num tapete de algodão. Mas com a ascensão acelerada da evaporação, os últimos do grupo marchavam com energia sem que se lhes vise o corpo da cintura para cima. Só se viam pernas em andamento. Mais à frente, já sem estas visões “paranormais”, todos nós transpirávamos com o sufoco do calor emergente. Guardei sempre estas imagens na memória, mas em película não. Não se aproveitou nada das fotografias do fenómeno.
Lá adiante o guia parou. Aproximei-me e ele apontou uma zona, talvez a cem metros. Mandei o grupo instalar-se na orla da mata ali ao lado e pedi uma pica trifurcada, pondo-me em andamento normal até estar próximo do local indicado. Peguei no croqui que fizera aquando da instalação das minas e estive um bocado a observar o local e o desenho no papel, mas não vendo qualquer semelhança com as referências ali desenhadas. Olhei para trás para o guia e ele, lá da mata, insistiu num ponto mais à frente. Comecei a picar e a avançar ainda com alguma ligeireza e depois voltei a consultar o papel. Em redor não encontrava nenhuma das minhas referências, menos ainda marcas do carreiro no chão. Já calculava que isto iria acontecer, era sempre assim. Bastava que as minas tivessem sido instaladas numa época diferente do ano e era suficiente para nada no terreno ser reconhecível. A bem dizer, o croqui só serviria para me indicar a posição relativa das minas entre si, e ainda precisava de sorte para que nenhuma tivesse sido mudada de sítio pelas enxurradas da época das chuvas, por algum animal ou, pior, por algum guerrilheiro que as tivesse localizado. Apenas era seguro avançar pressupondo que podiam estar em qualquer lugar naquela zona, caso não tivessem sido accionadas. Era uma operação solitária, demorada e perigosa, logo, de alguma tensão. Mas eu podia apenas contar comigo e com a minha experiência, numa acção que exigia tempo e sangue frio.
Comecei a picar cada sítio onde punha um pé, observando constantemente o chão e as raras árvores à volta em campo aberto. Pela escassa altura do capim, julgara que encontraria facilmente o carreiro, mas não. Há muito que, pelos vistos, não era utilizado. Depois, ao mudar de posição percebi, finalmente, que uma das árvores muito esganiçadas ali ao lado era a minha referência no croqui, embora sem semelhanças com os detalhes precisos que eu riscara muito tempo antes. A partir daí, tirando medidas a olho, não foi difícil colocar-me no ponto certo da passagem do carreiro e, pouco depois, identificar uma particularidade que eu registara e onde, na altura, aproveitara para colocar duas minas, com alguma maldade, diga-se. É que, uma dezena de metros antes, o carreiro bifurcava, passando a ser duplo ao longo de não mais vinte de metros e reencontrando-se novamente. Imaginei que resultasse do hábito natural de, por vezes, as pessoas ao saírem da mata fechada terem necessidade de caminharem lado-a-lado, para um pouco de conversa. Na altura ocorreu-me logo usar essa particularidade de forma ardilosa e, infelizmente para alguém da guerrilha, o ardil resultou e uma das minas foi pisada. Devo dizer que foi o único caso concreto em que tive consciência de ter feito uma vítima naquela guerra. Facto que, desde do momento da verificação sempre senti de forma penosa, não me aliviando pensar que fiz o que tinha de fazer por estarmos em guerra. Tudo mais pesaroso por eu saber que a falta de evacuação pronta, numa situação daquelas, representava quase sempre a gangrena e a morte. Então porquê remexer agora na morbidez destas lembranças? Talvez esperando que o desabafo público permita algum alívio, já que não o senti das raras vezes em que o fiz em privado. E para que, quem nunca foi à guerra, conheça e compreenda que ela não representa apenas uma contabilidade de mortos e feridos entre os beligerantes, mas também um grande sofrimento para as vítimas, para quem as provoca e para os que as viram acontecer. Trauma de graduações várias que, muitas vezes, são para o resto dos dias.
Finalmente localizei a primeira mina. Com a ajuda do croqui foi fácil encontrar a segunda. Sempre agachado e picando o terreno com a faca de mato, não mexendo um pé sem que o sítio para o pôr estivesse seguro, fui-me deslocando para o local da terceira mina mas ela não estava lá. Embora sempre calmo, fiquei apreensivo. A mina podia ter sido detectada e mudada de local, entre muitas outras hipóteses. Foi remexendo à superfície o capim rasteiro, quase a um metro do local, que descobri os vestígios que explicavam a falta da mina: um pedaço de cabedal ainda com o tacão de uma bota agarrado, depois outro pedaço com a série de furos dos atacadores, mais uns fragmentos menores e nada mais. O resto voara. Perante a evidência, fui tomado por um sentimento de grande pesar e desconsolo. Por momentos fiquei ali a olhar para aqueles restos, pensando na estupidez da guerra. Para me aliviar, por certo, e reagir, pensei: mas não é para isto que servem as minas? Não foi para isto que calcorreei tantos quilómetros para vir cá pô-las? Levantei-me e fiz sinal na direcção do grupo que modorrava na borda mata, para que se aproximassem. Passei a máquina fotográfica a um e pedi-lhe para me fotografar junto das minas no chão. Todos observaram a cena, silenciosos e pensativos. Preparámo-nos para o regresso, pois não havia mais nada a fazer ali. Para além do sucedido, hoje interrogo-me sobre as razões de uma tão grande canseira para ir ali implantar apenas três minas. Não era por falta de minas, creio. Que eficiência teria este tipo de segurança afastada? Por quê os guerrilheiros não contornavam a zona das minas, não sendo credível que ignorassem que sempre ali existiu minagem? E outras considerações...
Foto 1 – Julho de 1974 - O guia que nos levou ao campo de minas. Pertencia à milícia de Nhala.
Foto 2 – Julho de 1974 - Alf Mil Murta apontando uma mina A/P acabada de localizar.
Foto 3 – Julho de 1974 - Duas minas levantadas e os restos de uma bota de cabedal.
Foto 4 – Julho de 1974. Ampliação da fotografia anterior.
A fotografia n.º 2, embora não desfocada, estava tão “tremida” que teve de ser sujeita a edição severa. Sempre que a revejo e me foco apenas nesse defeito que quase gerou duas imagens sobrepostas, não evito um sorriso ao pensar: será que o fotógrafo estava mais nervoso do que eu? Saberia da história de outros que perderam as pernas e a vida ao pisar minas enquanto fotógrafos de guerra? Por certo que não. Nem eu sabia naquele tempo. Para só citar dois de uma lista infindável, refiro um dos meus preferidos e o mais notável dos antigos fotógrafos de guerra, Robert Capa*. (Segundo a Wikipédia, actualmente um dos mais importantes é o americano James Nachtwey, n. Nova Iorque, 1948). Citarei ainda o português João Silva**.
As fotografias que se seguem são de uma das idas ao carreiro em 1973 para implantar minas naquele local, provavelmente estas que agora (em Julho de 1974) foram levantadas como acabei de relatar acima.
Foto 5 – 1973 - Aspecto parcial do 4.º Grupo da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 a caminho do carreiro de Uane e após saída da mata.
Foto 6 – 1973 - O José Gomes em passo acelerado depois de entrarmos em campo aberto.
Foto 7 – 1973 - A retaguarda do 4.º Grupo a sair da mata.
Foto 8 – 1973 - Já no regresso a Nhala, paragem para descansar numa zona rochosa.
Foto 9 – 1973 - Alf Mil Murta a descansar junto do cão PIFAS.
Foto 10 – 1973 - Pose em baga-baga.
Foto 11 – 1973 - Zona de poilões monumentais. Aqui, alguém junto do poilão por uma noção de escala.
Notas:
* Robert Capa – (1913-1954). Húngaro, de seu nome verdadeiro Endre Friedemann, foi co-fundador da Agência Magnum em 1947. Fotografou a Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Sino-Japonesa, Segunda Guerra Mundial, Guerra árabe-israelita de 1948 e Primeira Guerra da Indochina onde morreria ao pisar uma mina.
** João Silva – (n. Lisboa, 1966). Vive na África do Sul. Trabalha para o “The York Times”, foi várias vezes premiado com o “World Press Photo”. Perdeu as duas pernas ao pisar uma mina no Afeganistão. Continua a fotografar.
(continua)
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Nota do editor
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