1. Em mensagem do dia 10 de Setembro de 2016, o nosso
camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART
1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá,
1967/69), enviou-nos esta boa memória da sua guerra:
Memórias boas da minha guerra
33 - A “santidade” do Santos
Conhecia o Rui Santos desde meados dos anos 50. Eu frequentava ainda a catequese e via-o, mais velho uns 5 anos, muito ligado à igreja, onde até chegava a ajudar nas exéquias religiosas. Tinha estado pouco tempo no seminário, mas salientava-se bastante pela sua religiosidade, aliás, bem demonstrada pela sua assiduidade em todas as actividades ligadas à igreja. Por certo, trouxera de lá esse hábito acentuado da adoração a Deus, através das várias práticas religiosas.
Trabalhava no escritório de contabilidade de um primo de Mozelos. Andava sempre limpinho, engraxadinho e bem vestido. De mãos bem tratadas, unhas bem aparadas e envernizadas, chegava a “incomodar” a malta que o apelidava de “Ruisinha”. Por vezes, querendo explorar-lhe esse aspecto meio efeminado, até lhe apalpavam o cu. Porém, com as miúdas, que o consideravam um rapaz delicado e bonito, ele relacionava-se muito bem.
Por isso, era normal encontrar o Rui convivendo com elas, especialmente com uma lindíssima rapariga chamada Geninha.
Além da sua beleza natural bem visível, onde se salientava a pele aveludada e morena, os cabelos lisos e os olhos cor de avelã, a Geninha, com o seu comportamento discreto, tinha uma imagem de beata, aliás sempre escolhida para fazer de santa nas recriações religiosas, nos espectáculos promovidos na cave da Residência Paroquial e no cortejo de oferendas, por sinal também bastante participado. A sua beleza pura e o seu porte suave e ponderado, faziam-na uma “santa” de verdade. Digamos que encarnava facilmente a figura mística de Nossa Senhora. Pois, enquanto as outras miúdas se batiam pelos rapazes mais “bandalhos”, esta “santa” parecia dar preferência às “mariquices” do Rui.
Ela pertencia á família “dos da Bouça” (Maria Joaquina e Manuel Augusto), proprietários da Quinta da Bouça, lá do outro lado da aldeia.
Os “da Bouça”, de aparência humilde eram bastante recatados. Tinham simpatia e eram bem conhecidos pela dedicação à igreja e ao amanho das suas terras. E como também valorizavam muito o comportamento religioso do Rui, pareciam vê-lo como um bom partido para a sua Geninha.
A “Tijona” (Eugénia), madrinha e tia da Geninha, solteirona por vocação, nunca largava aquela sobrinha, que com ela vivia desde a nascença. Não era por acaso que sempre que o Rui estava por perto da Geninha, a “Tijona” também marcava presença. Digamos que ela era o “anjo da guarda”, garantia da santidade daquela relação. Nunca se cansava de acusar os homens de feios, porcos e maldosos.
Por sua vez, o Tio Albino, também solteiro, completava a família. Nas horas vagas fugia para a caça ou pesca, chegando a faltar à missa, o que demonstrava já não sentir a mesma confiança divina de outrora. Diz-se que este seu comportamento tem a ver com o mau desenlace de um amor que sentiu por uma vizinha. Entregara-se todo a ela, respeitando-a em tudo, inclusive na sua promessa de castidade antes do casamento. Porém, quando já preparavam a boda, descobriu-se que ela estava grávida de um tal Zé Mecânico, de Lourosa. Desde então, parece detestar todas as mulheres, considerando-as “umas putas” e o “animal” mais manhoso que habita à superfície da terra.
Na minha imaginação de católico adolescente, quando pensava naquela relação amorosa, via os jovens, juntinhos, sentados no muro da pequena ponte romana, à beira do moinho velho. Estavam envoltos naquela paisagem bucólica, onde se destacam em fundo verde, as cores matizadas das flores primaveris. O ribeiro de águas cristalinas, onde escalos, bogas e trutas abundavam, serpenteava no fundo do vale, por entre fetos de vários tamanhos, arbustos diversos, altos choupos e frondosos amieiros. Os jovens pareciam escutar o borbulhar da água, também incluído naquela basta orquestra de pássaros, onde cada um procurava salientar o seu cântico, seu palreio, seu pio ou seu chilreio. Sobre o regaço da Geninha, poisam algumas flores campestres, presas pela sua mão delicada, levemente sobreposta pela mão do apaixonado Rui.
Olham para o céu azul, onde algumas nuvens brancas lhes fornecem formas e figuras imagináveis. Ora enriquecidas pela presença das andorinhas esvoaçando em círculos, parecendo mover-se ao ritmo da passaral orquestra. Aí, parecem descobrir as imagens mais sagradas da Santa Madre Igreja, à qual manifestam o seu amor, sua adoração e, ao mesmo tempo, lhes prometem o respeito da sua santa relação.
Naqueles anos seguintes, as coisas evoluíam normalmente, sem surpresas nem sobressaltos. Com a fórmula da promoção dos três “éfes” (Fátima, Futebol e Fado) vivia-se na paz do Senhor. Tudo a preto e branco, claro. Até parecia que nada se alterava. Reinava a ditadura do Estado Novo. Todo o Império continuava bem controlado por Salazar, bem auxiliado pelo Cardeal Cerejeira e fortemente protegido pela PIDE. Estava tudo tão bem controlado que, nas eleições presidenciais de 1958, em que o povo se abriu massivamente em apoio ao General Humberto Delgado, viu os seus resultados falsificados escandalosamente.
No início de 1960 o Rui integrou o serviço militar no RAP 2. Estava perto de casa, pelo que não sentia grandes dificuldades em cumprir essa sua prestação obrigatória.
Porém, já se acentuavam ventos muito adversos em direcção ao regime político de Portugal.
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Logo no início de 1961, surgiu a sublevação do norte de Angola, conduzida pela UPA (FNLA). A revolta de Cassange foi reprimida com bombardeamentos da FA. Porém, a acção da UPA acentuou-se em Março, especialmente no dia 15, com vários ataques a Fazendas, Postos Administrativos e Postos de Polícia. Foram mortos cerca de 1200 brancos e 6000 negros.
A sublevação do norte iniciou-se com uma greve dos trabalhadores agrícolas.
Chegada a Lisboa em festa, do paquete Santa Maria, a 16 de Março.
Entretanto, a 22 de Janeiro, numa acção aparentemente concertada com a revolta africana, um grupo de 23 exilados, chefiados pelo Capitão Henrique Galvão, assaltou o paquete de luxo Santa Maria, a caminho de Miami, que funcionou durante quase um mês como propaganda anti-regime Salazarista.
Todavia, o MPLA (apoiado pela URSS e Cuba) só dá como início da guerra colonial, a data de 4 de Fevereiro de 1961, data dos ataques à Prisão de São Paulo de Luanda e a uma Esquadra da Polícia.
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UPA massacra negros e brancos
O MPLA aponta o 4 de Fevereiro como início da Guerra Colonial
Entretanto, o Ministro da Defesa, Botelho Moniz, quer substituir o Salazar por Marcelo Caetano. Pensa em dar um rumo diferente à política ultramarina. Porém, o seu amigo Presidente Américo Tomaz, não lhe faz a vontade e é logo demitido dessa pasta ministerial, que agora passa a ser acumulada pelo próprio Salazar. Diz-se que este golpe, conhecido como “Abrilada”, morreu antes de nascer. Dois dias depois, a 13 de Abril, todo o mundo assistiu ao discurso de Salazar, do qual sobressai a célebre frase:
“Para Angola, rapidamente e em força”.
É nesta fase que se desenvolvem em Portugal sentimentos de patriotismo e de vingança. Processa-se uma mobilização bastante alargada; os militares têm que seguir para Angola, outros serão reintegrados no serviço militar e outros iniciam preparação intensiva, para reforçar os contingentes. Entre o medo e o dever, existe a confiança inabalável de que a nossa razão, aliada à supremacia militar, vai vencer facilmente, “aqueles pequenos grupos de terroristas infiéis”
O Rui, com cerca de um ano de tropa, já fazia contas e mais contas, para organizar a sua nova vida pós-serviço militar. Porém, vê-se, de repente, mobilizado. Mudou para Mafra, para uma breve especialização de um mês e a 5 de Maio, seguiu de barco, com os primeiros combatentes, para defender Angola.
Ele sentiu as emoções fortes daquele desembarque festivo em Luanda. A população, agradecida, aplaudia o desfile dos militares desarmados, abraçava-os e beijava-os. Contam que estes momentos inesquecíveis alimentaram o espírito num misto de patriotismo, solidariedade e vingança.
Chegada a Luanda das primeiras tropas, para responder aos ataques subversivos.
Foram alojados lá, na alta da cidade, nuns prédios em construção, pertencentes ao Seminário, ainda sem janelas e sem acabamentos.
Depois de uma breve adaptação pelo Grafanil, seguiram para norte, para onde tinham ocorrido os referidos massacres. Porém, adivinhando-se grandes dificuldades de locomoção, foram de barco, entraram no Rio Zaire e desembarcaram em Noqui, de fronte de Matadi.
Inicialmente, tudo parecia abandonado nas fazendas e pequenas povoações dizimadas. Os “turras” dominaram a seu bel-prazer e os indígenas que escaparam, atravessaram o Rio Zaire e fugiram para o Congo. A tropa encontrou várias dificuldades, por falta de alimentos e de equipamentos adequados para o combate. À medida que avançavam para sul, maiores eram as dificuldades e mais eram os confrontos. O terror exposto no início da guerra, por parte da UPA, voltava sempre que a oportunidade surgia. Só que, agora, as nossas tropas retaliavam com a mesma moeda e maior motivação.
Dos terrores da guerra, pouco se fala. As situações extremadas trouxeram ao de cima o mais cruel e mais condenável da raça humana.
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Lembro-me da chegada do Rui e da festa que lhe fizeram. Não se falava do que ele terá passado por lá, por Angola. Nessa altura havia muita mobilização de militares e era inconveniente falar-se em coisas ruins. No entanto, não faltaram foguetes, discursos patrióticos e muitos abraços.
E lembro-me também do falatório de então, referindo que o Rui estava muito diferente e que já não estava interessado na Geninha. Todos os dias saía da aldeia de manhã e aparecia à noite. Logo, familiares, vizinhos e amigos comentavam que o rapaz ficara diferente por influência dos horrores que havia passado. E quando constou que namorava uma rapariga, desconhecida, do Porto, acrescentava-se a possibilidade de causas de “bruxedos africanos”.
Mas, como eu já não frequentava a JOC, nem outras actividades ligadas à Igreja, perdi o contacto do Rui, da Geninha e de outros jovens do lado de lá da aldeia.
Uns anos mais tarde, quando a minha mãe fez os 80 anos, “obrigou” os filhos a participarem numa excursão a Fátima. Alugou um autocarro e completou-o com as pessoas amigas, que costumavam ir com ela no cumprimento de promessas. Foi nessa viagem que tive a oportunidade de falar com o Rui e saber das suas lembranças vividas na guerra de Angola. Foi ele que me deu todos esses pormenores, desde a sua mobilização até à sua chegada. Ainda pensei em falar-lhe daquele namoro com a Geninha mas, a seu lado estava a sua mulher, uma senhora que transmitia muita simpatia, apesar de nunca tirar os óculos escuros.
Falámos também da Angola que eu conheci, tendo participado num concurso de pesca, em 1973, que venci, em Santo António do Zaire, local onde ele também estivera durante o serviço militar.
Equipa de pesca da Câmara Municipal de Cabinda com o pargo de 14,2Kg que nos daria a vitória, no concurso junto à foz do Rio Zaire
Dos pormenores pessoais, fui procurar satisfazer a curiosidade, junto de minha mãe. Fiquei então a saber que o casal era um casal exemplar, de quem todos gostavam, que frequentavam a igreja assiduamente e que tinham um filho padre que estava lá para junto do Papa, em Roma. E exclamou:
- A D. Teresinha é uma santa. Sempre há homens que têm tanta sorte! Nem queiras saber! Eles costumavam ir comigo a Fátima e conhecia-os bem, lá da igreja. Eu só vi boas acções desta família.
E, quando lhe perguntei por aquela moça muito bonitinha, conhecida por Geninha, “dos da Bouça”, a minha mãe olhou-me de lado e, parecendo gaguejar um pouco, foi dizendo:
- Também costuma vir a Fátima. Não digas nada, mas parece que ela disse que a Tia, a “Tijona”, é que é o grande amor da sua vida.
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Em Abril de 2013, integrei um grupo de ex-combatentes que foi ao Palácio de Belém entregar uma petição visando a intervenção do Presidente da República, Cavaco Silva. Claro que ele não teve sensibilidade para nos receber, naquele dia, nem nos anos que ainda governou. O objectivo era simples: conseguir o regresso dos corpos dos ex-combatentes mortos na guerra do ultramar e recuperar, também, os ex-combatentes sem-abrigo, que continuam desamparados nas ruas. Só quem anda nestas lutas se apercebe da triste, da hipócrita e da repugnante postura que os nossos governantes têm para com os ex-combatentes.
Entrega de petição à Presidência da República
Naquelas horas de convívio encetei conversas com vários camaradas. Um deles, a determinada altura interpelou-me:
- Ó Pá, pela tua fala, fazes-me lembrar um amigo cabo que tive, de Santa Maria da Feira.
Logo lhe respondi:
- Acertaste, mas olha que o concelho é muito grande, tem trinta e tal Freguesias.
E ele continuou:
- Chamava-se Santos, sim Rui Santos. Era um gajo muito delicado, educadinho, certinho e limpinho. Fomos dos primeiros a chegar a Angola.
Eu interrompi-o:
- Não digas mais. Também era religioso?
- Não era religioso, era um santo! Imagina o gajo sempre a rezar e a obrigar-nos a fazer o mesmo. E, até, a fazermos promessas!
E, após mais algumas referências a esse rapaz especial, confessou:
- Não digas nada, porque prometemos segredo, mas ele, durante uma emboscada lá no norte, em que nossos colegas foram mortos e esquartejados, prometeu casar com uma prostituta, no caso de se salvar. Por acaso, não sabes nada dele?
Fiquei sem fala.
No regresso de Lisboa, quase não falei com os colegas do MAC - Movimento Cívico dos ex- Combatentes. Inicialmente, ainda os acompanhei na revolta contra o desprezo dos governantes e o desinteresse ou desmobilização dos nossos camaradas. Depois, bem,… depois, foram quilómetros e quilómetros de imaginação a passar pela minha cabeça.
“O Rui, acabado de chegar, envolto nos festejos e nos carinhos, a evitar a Geninha, aludir cansaço, e o querer dormir bem, para iniciar o cumprimento da sua promessa.
Começar pelo Café Derby, seguir pelo Royal, descer a Banharia, Rua Escura, Ribeira e subir até os Caldeireiros. Talvez, no regresso vir pelo Bonjardim. Olhar para todas as raparigas e não saber o que decidir.
Mas, como fazer despesa em todas as casas que visitasse? Como aguentar tantos copos e petiscos? Como se adaptar ao ambiente ou, como se ajustar a uma daquelas raparigas? Umas viciadas e outras não, mas todas portadoras de uma história incrível, das tais, capazes de fazer chorar as pedras da calçada.
Desorientado, refugia-se na Igreja de Santo Ildefonso, descansa, pensa e pondera. Por fim, parecendo iluminado pela Virgem Maria, a santa que o salvou, toma a decisão: Seguir à risca o que prometeu e perguntar à respectiva Madrinha qual a rapariga mais desgraçada, para a pedir em casamento.
A Madrinha, comovida perante uma causa tão séria e tão importante, começa a benzer-se, vai a correr acender uma vela, junto à imagem de Nossa Senhora de Fátima e grita:
- Milagre! Milagre!
Logo as “donzelas” disponíveis acorrem para junto da Madrinha, querendo saber o que se passa. A Madrinha levanta bem a cabeça, volta-se para elas e exclama:
- Nossa Senhora de Fátima mandou este belo rapaz vir buscar a nossa Micas Zarolha.
E, voltando-se para o Rui, continuou:
- Fique sabendo, meu santo, que um dia me virá dizer que foi aqui que encontrou o grande amor da sua vida.”
Silva da Cart 1689
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de julho de 2016 >
Guiné 63/74 - P16268: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (33): O rapaz do “sorriso parvo”