quinta-feira, 21 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20995: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (72): Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida! (José Martins)

1. Mais um excelente trabalho do nosso camarada José Martins (ex-Fur Mil TRMS, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviado ao Blogue em mensagem de 2 de Maio de 2020, subordinado ao tema "Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida!", que nos traz alguns esclarecimentos/informações sobre as sepulturas dos nossos militares caídos em campanha na I Grande Guerra e Guerra do Ultramar, espalhadas em cemitérios por todo o mundo e, sobre as trasladações dos restos mortais levadas a efeito durante e depois das guerras terminadas.


Mesmo depois de mortos, ou ainda em vida!

Monumento ao Valor do Infante, em Mafra


Até às Lutas Liberais, em 1834, os soldados mortos nas batalhas ficavam insepultos, acabando mais tarde, pela generosidade das populações, por serem sepultados em valas comuns.
No caso das mortes ocorridas, no então Ultramar, a morte dava-se em território nacional; os soldados morriam pelo Rei, depois pela Republica, e mais tarde em nome de Portugal; portanto ficavam enterrados em solo Pátrio. Só a pedido e a custas da família, seriam trasladados.

O texto escrito, vai já para oito anos, sob o título "Os soldados não morrem, apenas tombam no campo da honra!", refere, no terceiro post [*] publicado no blogue, alguma da legislação que havia e que ao longo dos anos da guerra foi sendo alterada, além da forma como deviam ser tratados os corpos dos que tombaram.
Até a instauração do Regime Liberal, os mortos civis, militares ou eclesiásticos eram sepultados nas criptas das igrejas, ou, os nobres ou mais abastados, teriam o seu lugar em túmulos nas igrejas ou panteões, construídos ou adaptados para o efeito.

É pelo Decreto de 21 de Setembro de 1835, que o rei ordena a construção de cemitérios em todas as localidades mas, perante a continuidade do uso, já ancestral, de sepultar dentro das igrejas, por Decreto do Governo datado de 28 de Setembro de 1844, é imposto à população a proibição de sepultamento no interior das igrejas, e novas normas sobre os locais de enterramento.
É a altura de se iniciar a construção de cemitérios, primeiro nas imediações dos templos e, mais tarde, fora das localidades. É por esta altura que foi emitida uma Circular do Ministério do Reino, datada de 16 de Dezembro de 1890, que traz novas orientações a esta matéria. Só volta a aparecer nova legislação o Decreto 44220 de 03/03/1962 e o Decreto-lei 48770 de 18/12/1968.

Procurei estas peças legislativas, na tentativa de encontrar algo acerca das sepulturas dos militares que, tombados em África durante as últimas campanhas (1961/1974), foram trasladados para a Metrópole. Tinha a ideia de que essas sepulturas seriam perpétuas, não existindo o levantamento das ossadas dos mesmos, mas vim a constatar que, em vários locais, havia militares inumados desde a sua chegada, enquanto outros tinham sido trasladados para ossários ou, mesmo, os seus restos mortais tinham sido dados como abandonados.
Apesar dos cemitérios serem construídos a distância considerada bastante, para se manterem a certa distância das localidades, algumas foram crescendo e expandido a sua malha urbana, que acabaram os cemitérios por ficar envolvidos pelas habitações.
O espaço que, inicialmente, se vendia a título perpétuo, foi escasseando, uma vez que muitas famílias adquiriam o terreno para que se perpetuasse nas famílias e nelas se reunissem as futuras gerações, e faltavam terrenos que favorecessem o seu alargamento.

Entrada do Cemitério de Santo António do Carrascal, Leiria
Inaugurado em 1871

O Decreto-Lei 411/98 de 30 de Dezembro, define os termos para a elaboração dos regulamentos de funcionamento dos cemitérios, fossem administrados pelas Juntas de Freguesia ou Municípios, sendo estabelecidos os emolumentos para os serviços a prestar por aquelas estruturas.
Mesmo que, nesses cemitérios, haja talhões e/ou campas privativas de organizações ou associações civis ou irmandades religiosas, essas ficavam sujeitas aos regulamentos instituídos, assim como ao pagamento das taxas a aplicar.

O caso que nos foi apresentado, para comentar, é o seguinte:
No cemitério paroquial de uma freguesia, existia um local onde foi inumado o corpo de um militar, natural ou residente na freguesia, em 1967. É muito provável que tenham destinado parte do terreno anexo para, eventualmente, serem inumados outros militares tombados no Ultramar. Até ao final da guerra só houve, nessa freguesia e com enterramento nesse espaço do cemitério local, mais um combatente, em 1968.
Constava que esse espaço, era um talhão pertença das Forças Armadas. Não tenho conhecimento de que tal aconteça, na medida em que os talhões privativos que existem nos cemitérios, são cedidos a Associações de Bombeiros, Liga dos Combatentes ou confissões religiosas que não católicas e, todos eles, além de cumprir as normas do próprio cemitério, cumprem, também, as normas da entidade a quem foram cedidas a título perpetuo ou temporal.

Estava em curso a Guerra do Ultramar e, desde sempre foram consideradas parte integrante do território nacional, tese defendida durante a Monarquia e a Republica, razão pela qual o país travou as Campanhas de Ocupação, entrou na Grande Guerra e reforçou os territórios durante a II Grande Guerra. Por igual razão respondeu aos Movimentos de Libertação guarnecendo, entre 1961 e 1974, com mais de um milhão de militares aqueles territórios
É provável que, após o primeiro funeral em 1967, tenha havido a intenção de se proporcionar um local com alguma dignidade, não só a este, mas aos que eventualmente “fossem escolhidos pela morte”, um local onde ficassem todos juntos, seguindo o lema de “unidos na guerra, unidos na paz”.
Se anotarmos as causas das mortes ocorridas, no caso do Exército, nos Teatros de Operações – Angola, Guiné e Moçambique – vamos encontrar muitas causas, causas essas que ocorrem muitas vezes numa sociedade civil: doença, com as mais variadas causas; acidentes, desde os de viação, em ambiente ferroviário, até aos de aviação, porque havia transporte de tropas de uma zona para outra; afogamentos, em rios ou mar; e outras causas, que podiam ser comparados a “acidentes de trabalho” como queda do cimo de árvores, electrocussão, queimaduras nas cozinhas ou na trasfega de líquidos inflamáveis, etc. As outras causas, mais violentas, foram os mortos em combate e os acidentados com arma de fogo.

Se, nas causas apontadas na primeira abordagem, podiam provocar deformações no corpo dos combatentes, as segundas, as mais violentas, poderiam provocar, não só deformações muito acentuadas, como até a sua dispersão.

Efeitos de mina num Unimog 411
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados

Durante o tempo em que a guerra durou, e mesmo para além desse tempo, houve como que um pacto de silêncio entre os que lá estiveram. Porque, no regresso, era tempo de esquecer; era tempo de reavaliar os projectos que se tinham, de acordo com as perspectivas que nos se apresentavam; era tempo de voltar a aprender a viver. Mesmo entre os que lá estiveram, levaram muito tempo a abrir o “baú”, e começar a partilhar memórias, vivências e factos.
E quando os “baús” se foram abrindo, foi com alguma discrição. Cada um ia retirando aquilo que era menos doloroso; aquilo que estava já mais assumido; aquilo que não colocasse em risco a memória dos camaradas. Ou seja: vai surgindo, para os que estavam ávidos de “bombas relógio a explodir”, aquilo que não dava para um estoiro de bomba de santos populares.
Só havia uma possibilidade: abrir os baús que se mantinham fechados. Aqueles que chegaram entre lágrimas e gritos sufocados e encerrados a sete palmos abaixo do chão. Foi uma “corrida” desenfreada. Todos, os que não estiveram na guerra e que não tinham ninguém entre os que tombaram, queriam arrancar “esqueletos do armário”, para “reabilitar a verdade”

Muitas urnas não continham partes ósseas identificáveis. Continham pequenos fragmentos e pedras. Tudo o resto já tinha desaparecido. Outras, a parte óssea, apenas.
Faltavam a muitos o conhecimento do que é a “pensão de sangue”.
Não é um prémio, não é uma condecoração, não é uma reparação. Muitos dos que a receberam, preferiam mil vezes não a ter recebido. A “pensão de sangue” que, com outra designação já existia há muito tempo no nosso país, era uma reparação, pequena e muitas vezes simbólica, para tentar suavizar as necessidades, não a dor, daqueles que tinham perdido alguém na guerra: viúvos, filhos e pais.
Mas havia, e assim continua a haver, pressupostos que são indispensáveis para a sua concessão seja possível.
Um documento que justifique o infausto acontecimento, as condições em que ocorreu e, mais importante para a família, um corpo. Sem o corpo, não há morte; sem o corpo não há luto; sem o corpo, não há enterro.

Não há ninguém, desde o soldado ao general, que não saiba que a guerra vai gerar mortos; mas não há ninguém, desde o general ao soldado, que o deseje.
Pelos pressupostos citados, quando havia uma morte mais violenta, causada por engenhos explosivos, em que os corpos se tornavam irreconhecíveis, que todos tentavam que nada ficasse na terreno, buscando e recolhendo num espaço único, o que restava de camaradas seus, de que só saberiam a quantidade e identidade, após a chamada aos presentes. Muitos não responderam à chamada, não porque não estivessem vivos, mas porque tinham sido aprisionados.
A tropa, no seu sentido mais genérico, não formava especialistas em todos os serviços de que necessitava. Muito menos nos serviços funerários.

Não pretendo historiar os casos que real e/ou hipoteticamente aconteceram, ampliados por uma comunicação social que procura “manchetes bombásticas”, esquecendo que, para que muitas famílias não ficassem desamparadas, foram dados como mortos muitos militares que, mais tarde se veio a verificar estarem prisioneiros. Se surgissem dúvidas, caso fosse feita uma declaração de desaparecimento, anos levaria a que os mesmos fossem considerados “desaparecidos” ou “falecidos” por um tribunal. Isto sem colocar a hipótese de o juiz que julgasse o caso, decidisse considerar o militar “desaparecido” como desertor, por insuficiência de provas.

Que estes parágrafos, ou notas, não sejam consideradas “libelo”, nem de acusação nem de defesa de ninguém. A guerra é feita por humanos, e por isso é cruel e imperfeita.
Portugal, desde a sua fundação até à actualidade, esta mesma actualidade que estamos a viver, sempre teve mortes geradas pelas mais diversas razões.
Poderia terminar, aqui e agora, o texto que estou a redigir, mas, mais uma nota que se prende com os que ficaram, e outra com os que ainda estão entre nós.
Após a Grande Guerra, houve alguns concelhos que pensaram em trasladar e juntar num único local, os seus mortos. Rápido se constatou que seria uma operação que, além de dispendiosa era quase impraticável. Havia militares sepultados por vários cemitérios de vários países, onde se tinham dado os combates. Muitos estariam “desaparecidos” ou mal identificados.
Foi então que, e pela primeira vez, os estados promoveram a construção de Cemitérios Nacionais, reunindo num só local os seus militares mortos.


É criada a Comissão Portuguesa das Sepulturas de Guerra que entre o ano de 1924 e 1938, através do Serviço de Sepulturas de Guerra no Estrangeiro, composta por oficiais do Exército e com a colaboração do Cônsul Português, em Arras, Louis Lantoine, reúne no Cemitério de Richebourg, os corpos de 1831 militares (238 não estão identificados) e provenientes dos cemitérios franceses de Le Touret, Ambleteuse, Brest, e Tournai (Bélgica) e os corpos dos militares que morreram na Alemanha, durante o cativeiro. Não foi possível trasladar todos os corpos para Richebourg, havendo campas de militares portugueses na Alemanha, Bélgica, Espanha, Holanda e Inglaterra, não só por questões sanitárias mas, também, por constrangimentos orçamentais. Para substituir as cruzes que ficavam nas cabeceiras das campas, foram colocadas lápides que apenas indicam o nome dos combatentes, quando conhecido.

Em 4 de Fevereiro de 1966, aprovadas que foram as "Normas Reguladoras de Trasladação de Ossadas de Militares", estabelecendo a gratuitidade do transporte das ossadas dos militares, da Metrópole e Ilhas, falecidos no então ultramar, as trasladações poderiam ser efectuadas, ou a pedido das famílias a quem seriam entregues ou, por outro lado, por iniciativa do Exército que, neste caso, as recolheria num Ossário Militar Central, localizado em Lisboa. Os militares falecidos dos então Teatros de Operações de Angola, Guiné e Moçambique, teriam também, em cada ex-província, o seu Ossário em local a definir, provavelmente, nas respectivas capitais.


Os Ossários não saíram do papel e, por isso mesmo, foi sendo protelado o cumprimento das normas aprovadas e, oito anos após a sua aprovação, quando chegou a altura de iniciar as negociações de paz, ninguém, quer os militares que tinham tomado a decisão e aprovado as normas, quer os militares que tinham assumido o poder, nem sequer se “lembraram” de que, sob a terra que pisavam, estavam os corpos de militares que aguardavam a sua trasladação.

Agora, mais de quarenta anos depois de ter terminado a guerra, os que foram e regressaram, os combatentes, é que não esquecemos os camaradas que lá ficaram e temos uma ténue ideia das condições em que estarão as suas campas. Na altura o Estado Português podia delegar no Exército a tarefa de trasladar os mortos, mas presentemente é quase impraticável. Os antigos territórios são hoje países independentes; têm os seus governantes, que já não são os que negociaram a independência; as regras do jogo são diferentes e, as leis que regulam esta matéria, também já não são as mesmas. Hoje só é possível proceder a uma trasladação, caso a caso, e por decisão de cada família, tomar a decisão de abrir o processo.

Os pais dos nossos camaradas que tombaram, muitos já não existem ou já terão uma idade avançada; os outros familiares dos que caíram – viúvas, filhos, irmãos – que tomaram a decisão de recuperar os restos mortais dos seus entes queridos e puderam, já os foram lá recolher, apesar dos custos financeiros e de alguns desagradáveis casos, pois só procediam à exumação na presença dos mesmos, quando pensavam que estariam já na capital do antigo território, e ali tratariam de tudo.
Apesar de não ser essa a vontade, senão de todos, dum a grande parte dos combatentes, os nossos camaradas ficarão por lá, juntando o seu destino ao de muitos outros combatentes, que tombaram, ao longo dos séculos, em África.

Como última questão, mas não menos importante, é o número de combatentes que ainda se encontram entre nós. Não só o seu número, mas também a sua distribuição geográfica, etária e condições de vida, a fim de que, quem entregou a sua juventude à Pátria, agora pudesse receber o apoio, e não só o agradecimento, de que é credor. Quantos somos, efectivamente? Como se poderá obter essa informação?
Pois bem.
Nem todos os combatentes são membros da Liga dos Combatentes; muitos nunca se inscreveram na mesma, por não encontrarem razões para tal; outros nem sequer imaginam fazê-lo. Portanto, por aqui, não é o caminho.
Talvez fosse possível obter esse número através dos pagamentos efectuados pela Caixa Nacional de Pensões, Caixa Geral de Aposentações ou outros organismos (bancários, advogados, etc), mas estariam em falta os oficiais e sargentos do quadro permanente assim como as forças de segurança, assim como os combatentes que optaram pela emigração e por lá se encontram.
Poderia ser através das Associações de Combatentes, de âmbito local ou nacional mas, nem todos os combatentes estarão inscritos nessas associações e, alguns, poderão estar inscritos em mais do que uma associação.
As autarquias poderiam dar uma ajuda (sugestão que vi no facebook), mas não teriam pessoal para desenvolver um trabalho destes, mesmo com a ajuda de voluntários e, não sei se o poderiam fazer. Mantêm as listagens para as eleições, que não referem se o eleitor foi ou não combatente. Nas localidades com mais habitantes, muitos residentes nem sequer são conhecidos dos autarcas eleitos.

Como no próximo ano (2021) é ano dedicado aos censos da população. Poderia ser uma oportunidade mas, neste momento é tarde. Os folhetos do recenseamento já foram aprovados e não são susceptíveis de serem alterados.
Mesmo que pudessem, será que todos responderiam? Muitos combatentes não revelariam esse facto ou mesmo o ocultaria por questões pessoais.
Além do mais, existe desde 1994, uma Comissão Nacional de Protecção de Dados que colocaria decerto algumas objecções.
Perece que, como até agora, só podemos basear-nos em “projecções”, porque o direito à privacidade impede que, por muito boa vontade de muitos, possamos acudir com o necessário para que muitos camaradas nossos possam terminar os seus dias com a dignidade que todo o ser humano – homem ou mulher, velho ou novo – merecem.

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[*]
4 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10479: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (1) (José Martins)
5 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10486: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (2) (José Martins)
e
6 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10490: Os Soldados não morrem, apenas tombam no campo de honra (3) (José Martins)

José Marcelino Martins
Odivelas, 1 de Maio de 2020
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20916: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (71): A história da escultura dedicada ao Soldado Desconhecido de Sacavém (José Martins)

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20994: (D)o outro lado do combate (60): O ataque a Pirada em 15 de julho de 1963 (Jorge Araújo)



Foto 1: Pirada, Maio de 1945. Fonte: Casa Comum, Fundação Mário Soares.

Citação: (s.d.), "Visita oficial do Governador Sarmento Rodrigues à Guiné - inauguração de um monumento a [Manuel Maria] Sarmento Rodrigues [1899-1979], Pirada. Maio de 1945.", Fundação Mário Soares / INEP-CEGP-MGP, 
Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_10635 (Autor desconhecido), com a devida vénia.


Foto 2: Vista aérea de Pirada em Agosto de 1972. Foto de António Martins de Matos – P20867, com a devida vénia.


Mapa da Zona Leste, com a indicação de algumas localidades onde estavam estacionadas as unidades de quadrícula atribuídas ao Comando do BCAÇ 238 (1961/63).




Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873
 (Xime e Mansambo, 1972/1974); professor de eduxção física, 
docente do ensino superiro; nosso coeditor, autor da série "(D)o outro kado do combate"; régulo da Tabanca dos Emiratos,



GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE:
O ATAQUE A PIRADA EM 15 DE JULHO DE 1963:   
 EM BUSCA DAS "PEÇAS" DO PUZZLE 

1.   - INTRODUÇÃO

A publicação das últimas narrativas relacionadas com o comerciante Mário Soares, de Pirada, suscitaram-me um particular interesse, neste tempo de confinamento prolongado, devido à pandemia de COVID-19.. Encontrei em todas elas "assunto", mais do que suficiente, para aprofundar todas as dúvidas e interrogações emergentes em cada uma delas, particularmente a partir das "pontas" ou dos "pontos" que o camarada Luís Graça deixou em aberto.

Desde logo o P20927 abriu o caminho sobre o caso do "ataque a Pirada em 28/5/1965". No P20867, síntese do P4879: «Gavetas da Memória», série de episódios da autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66, a questão principal era: "Pirada, naquela época, resumia-se a uma rua de terra batida que tinha a meio uma espécie de praceta, com um pequenino monumento [?] e tudo". 

Que monumento seria esse? Pois é o que se indica na foto 1, inaugurado em Maio de 1945. Finalmente, o P20927, o último desta série até á data, coloca-nos em frente de uma nova "picada", agora em direcção ao "ataque a Pirada em 15 de Julho de 1963" de que resultou (está escrito) a morte de 1 soldado europeu" (?).

É sobre esta "peça" da história que trata este fragmento.  

2.   - SUBSÍDIO HISTÓRICO MILITAR DA ZONA LESTE, COM DESTAQUE PARA PIRADA

Ao Batalhão de Caçadores 238 [BCAÇ 238], mobilizado pelo BC 8, de Elvas, foi-lhe atribuída a responsabilidade da Zona Leste, com fronteira com o Senegal e a Guiné-Conacri, e para oriente da linha Cambajú-Xime-Rio Corubal, após a sua chegada a Bissau, em 06 de Julho de 1961, 5.ª feira, sob o Comando reduzido do Major Inf José Augusto de Sá Cardoso.

Em 19Jul61, esta Unidade assumiu a responsabilidade da referida zona de acção, com sede em Bafatá, comandando e coordenando a actividade das companhias estacionadas em Nova Lamego (CCAÇ 90) e Bafatá (CCAÇ 84) e pelotões de reforço, cujos efectivos se encontravam disseminados por Contuboel, Piche e sucessivamente, a partir de 16Ago61, por Pirada [3.ª CCaç (RL) e 1 Sec/CCAÇ 84], Buruntuma [2 Sec/CCAÇ 84], Canhamina, Sare Bacar, Paunca, Bajocunda, Canquelifá, Enxalé, Bambadinca e Saltinho.

2.1   - INÍCIO DAS ACTIVIDADES SUBVERSIVAS NA REGIÃO DE PIRADA

Segundo a literatura Oficial, em particular o livro do Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974); Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; "as actividades subversivas, atribuídas ao PAIGC, tiveram início no final de Junho com diversas sabotagens na região de Pirada-Sonaco".

3.   - O ATAQUE A PIRADA EM 15 DE JULHO DE 1963 - DOCUMENTOS ANALISADOS

Ainda que não tenha obtido registos de prova, quanto ao modo como decorreu o ataque a Pirada e suas consequências, mesmo que ele tenha sido executado, é possível garantir que não produziu quaisquer baixas nas NT, quer sejam de origem africana ou europeia.
Para melhor análise e interpretação do seu valor factual, damos conta abaixo, por ordem cronológica, dos diferentes conteúdos reportados à correspondência trocada entre remetentes e destinatários, conforme se indica no quadro.



3.1   - PIRADA, 09 DE JULHO DE 1963; ASSINA: KANFRANDI KÁ [NOME DE GUERRA DE NORBERTO ALVES]

Pirada, 9 de Julho de 1963 (3.ª feira) – (tradução do francês)
Caro camarada Yaya Koté.

Gostava que esta carta chegue pelo menos a tempo, encontrando-o com saúde, assim como os outros camaradas. O objectivo da carta é informar que dois dos nossos guerrilheiros abandonaram a luta por falta de resistência necessária aos desempenhos físicos e morais da luta, de acordo com os seus próprios testemunhos. Eles vão-lhe contar tudo minuciosamente. Por outro lado, fizemos uma boa viagem e começámos hoje os actos de sabotagem, para depois iniciarmos a luta armada. Esta será em breve!

Com os meus melhores cumprimentos, termino com muita amizade por ti. Saúde. Kanfrandi Ká - Norberto Alves.



Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36861

3.2   - PIRADA, 10 DE JULHO DE 1963; ASSINAM: AREOLINO CRUZ E KANFRANDI KÁ

Pirada, 10 / Julho de 1963 (4.ª feira)

Caro [Pedro] Pires.

Saúde em primeiro lugar e acima de tudo. Nós vamos indo bem graças a Deus. O portador desta carta é um camarada que se encontra doente talvez por causa da frieza. Ele costuma ter dores na região lombar (?). É preciso tratá-lo bem para que ele possa voltar depressa porque é um elemento precioso para a nossa zona e é adjunto do nosso responsável. Ontem quando voltámos da sabotagem que fomos fazer em Pirada ele foi atacado fortemente por tal doença que só muito dificilmente pôde marchar em braços. Fomos obrigados a sair do mato essa noite e entregá-lo numa tabanca vizinha pois que chovia torrencialmente e ele não podia de modo nenhum estar exposto à intempérie.

Tentámos fazer explodir a ponte do rio Bidigor, entre Pirada e Bafatá, metemos na acção 700 g de plástico mas da explosão só resultou um buraco na dita ponte. É uma ponte bastante resistente. Cortámos os fios telefónicos numa distância de quase 300 metros. Na região de Pirada é difícil de trabalhar, pois que não foi mobilizada; nela só há um responsável (?) mas ele tem medo de contactar connosco e até de nos alimentar. Passamos dias seguidos sem comer e por isso dois fulas que vieram connosco recusaram a continuar. Precisamos de dinheiro para a alimentação, precisamos de explosivos TNT e balas de calibre 7,75.

Após a sabotagem os fulas da região [3.ª CCAÇ] mobilizaram-se e entraram para o mato à nossa procura. O Borges pode melhor contar-te a situação. Diz ao senhor Bebiano que o Kouko já chegou e foi cá recebido com grande entusiasmo. A escassez de explosivos deixa-nos uma falta terrível.

P.S. - Espero que não te esqueças de me enviar as botas de lona e as calças americanas. O responsável quer também 1 par de calças. Para mim manda-me o cobertor do Caetano que ele não vem agora.

Sempre esperando, Areolino Cruz e Kanfrandi Ká (Norberto Alves)  



Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36865.

3.3   - PIRADA (?), 14 DE JULHO DE 1963; ASSINA: CHICO TÉ [NOME DE GUERRA DE FRANCISCO MENDES]

Pirada (?) 14 / 7 / 63 (Domingo) – (tradução do francês)

Caro irmão e companheiro de luta Yaya Koté.

Neste momento decisivo da história de nosso povo, onde surgem dificuldades de todos os lados, a acção de cada um de nós é essencial para o triunfo, pois os nossos companheiros já derramaram o seu sangue.

Na última carta que lhe enviei, destaquei as dificuldades que nos cercam, mas até agora não nos conseguimos livrar delas ou, pelo contrário, estão aumentando dia-a-dia. Para isso, é necessário partir sem demora para Dakar para entrar em contacto com a Direcção, expondo concretamente a nossa situação a fim de estudarmos juntos e decidirmos como nos livrar desse impasse. Irmão deve deixar tudo para cumprir esta missão, que é tão importante, caso contrário tudo estará condenado ao fracasso.

Em anexo está uma carta em português para ser entregue à Direcção. Ela transmite tudo o que precisamos aqui e ainda a nossa situação concreta.

Devemos adverti-los de que, para atender às necessidades urgentes no campo de equipamentos, já enviei 40 jovens a Koundara para receber os equipamentos para a região. O seu irmão para sempre - Chico Té [Francisco Mendes]



Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36869.

3.4   - PIRADA (?), 14 DE JULHO DE 1963; ASSINA: CHICO TÉ [NOME DE GUERRA DE FRANCISCO MENDES]

Pirada (?) 14 / 7 / 63 (Domingo)

Ao Secretariado-geral – Bureau de Dakar

Boa saúde. Nós por cá estamos todos bons apesar de estarmos rodeados de dificuldades que tentamos transpor para o triunfo urgente da nossa causa.

Essas dificuldades são as seguintes: devido à grande pressão em que se encontra o povo desta região, a fome coloca-se em primeiro lugar, porque sem alimentação um combatente não pode pegar em armas para fazer combate. Encontramos nesta situação desastrosa. Desde que entrámos no país sentimos falta de alimentação o que obrigou à deserção de vários camaradas fulas. A fome é tão maior que não podemos fazer nenhum combate e resolvemos unicamente defender a nossa pessoa contra os ataques dos colonialistas e dos régulos fulas. Na fronteira a cotização rareia devido à situação económica dos militantes.

A outra dificuldade é a falta de munições que no princípio não era suficiente porque para cada metra só havia munições para os carregadores.

Os medicamentos que alistei na presença do camarada Bebiano e que ele prometeu que desde que chegasse a Dakar faria todo o possível para que cheguem às nossas mãos, tal não aconteceu. A decisão dele era simplesmente para se desembaraçar de nós. Há camaradas que saiem por falta de comprimidos para febre ou outra crise parecida.

O Yaya Koté exporá tudo quanto nos é preciso aqui pois a fome não me deixa prolongar a carta. Até breve. Chico Té.

Para responder às necessidades da luta já enviei 40 jovens para Koundara com o fim de receber material para a Região porque estamos num momento difícil para nós. O camarada Koté explicará tudo. Chico Té. 



  
Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36873.

3.5   - PIRADA, 15 DE JULHO DE 1963; ASSINA: KANFRANDI KÁ [NORBERTO ALVES]

Comunicado

Na madrugada do dia 15 de Julho de 1963, 2.ª feira, um grupo de guerrilheiros do nosso Partido, comandados pelo camarada Kanfrandi Ká, atacou por força o quartel de Pirada. Do ataque resultou da parte inimiga um morto. Não puderam os guerrilheiros apoderar-se da arma do inimigo morto por aquele se encontrar nas traseiras do quartel que é rodeado de arame farpado. Kanfrandi Ká (Norberto Alves)



Citação: (1963), "Comunicado [Região 4]", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40527.

3.6   - PIRADA, 17 DE JULHO DE 1963; ASSINA: AREOLINDO CRUZ

Pirada, 17 / 7 / 63 (4.ª feira)
Caro [Pedro] Pires~

Saúde é o que te desejo. Nós vamos indo menos mal. Há dias escrevi-te uma carta tendo por portador um camarada doente, o Borges.

Já não vale a pena enviares as minhas correspondências pois que elas podem extraviar-se. Terei alguma carta do Fernando? Não estará ele já em África?

Na madrugada de 15 deste mês [Julho], 2.ª feira, fizemos um ataque ao quartel de Pirada e incendiamos a casa de um tipo da Pide. Morreu 1 soldado europeu. Os soldados têm agora medo de sair à noite e mesmo depois das 6 da tarde. Formaremos de agora em diante um só grupo comandado pelo Chico Té [Francisco Mendes] com aproximadamente 22 homens. Com saudações imensas, Areolind
o Cruz-

Cumprimentos ao Paulo, Caetano, José Araújo, e Bebiano. Quando o Borges tiver de voltar, dá-lhe o que tiveres para mim. Obrigado.



Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36881.

3.7   - PAUNCA, 20 DE JULHO DE 1963; ASSINA: KANFRANDI KÁ [NORBERTO ALVES]

Paunca, 20 / 7 / 63 (sábado)

Camarada Yaya Koté

Desejo-te saúde e felicidades em companhia de todos.

Comunico-te que o Chico Té [Francisco Mendes] está mal, 10 dias sem comer e não sabemos o paradeiro dele, chegou cá o Umaro, onde ele informou o estado dele. Ele teve que vir à frente, porque ele confessou que não podia resistir, e alguns dos camaradas fugiram. Comunico-te que dos meus camaradas alguns desistiram e alguns doentes.

Tive que vir colaborar com o Domingos, que é para trabalhar melhor, é único plano.
Comunico-vos que de facto o camarada Pulo desistiu da luta, onde que ele disse que não podia aguentar a maçada do mato, fui informado mesmo pelos militantes do Domingos e alguns responsáveis. Dos meus camaradas são 3 doentes e dois que desistiram. Vocês que arranjem dinheiro para nós de alimentação e para mandar ao Chico Té e mandar uma pessoa à sua procura.

Manda dinheiro urgente, estamos mal, não temos apoio do povo principalmente em Pirada, passamos 5 dias sem comer.

Tive que procurar o camarada Domingos, o Demba [será o criado do Mário Soares, P20904?) e o Cruz, foram para Açadung (?) porque eles estão doentes.

Comunico-te que o camarada Umaro chegou fraco. Veja se arranja um montiador [caçador] que conheça bem o mato para ir à procura do Chico Té, porque ele não pode ficar a padecer dentro do mato.

Diga ao Bebiano que nós aqui estamos no meio de dois inimigos: Colonialistas e fulas. Estamos com faltas de munições e da alimentação. À noite quando fizemos emboscada para Colonialistas, de dia os fulas também fizeram as suas emboscadas contra nós. Manda procurar o Chico no mato na área de Contuboel na Tabanca Sama.

Sou, Canfrandim Cá.




Citação: (1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36885, co m a devida vénia.

► Em resumo:

1.    Em função da análise documental, não é possível confirmar a execução do ataque ao quartel de Pirada, no dia 15 de Julho de 1963 [informação de Kanfrandi Ká (Norberto Alves), simultaneamente autor do comunicado e comandante do ataque].

2.    Quanto ao incêndio provocado na casa de um elemento da PIDE, em Pirada, na sequência do ataque indicado no ponto anterior, e referido por Areolindo Cruz na carta enviada a Pedro Pires dois dias depois, também não foi possível confirmar. Não se entende, porém, como é que o comandante da missão se tenha "esquecido" de o mencionar no seu comunicado.

3.    Há "peças" que não encaixam neste "puzzle".

► Fontes consultadas:

Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).

Ø  Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
04MAI2020
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Guiné 61/74 - P20993: Historiografia da presença portuguesa em África (210): Boletim do Arquivo Histórico Colonial - Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Tudo começou numa pesquisa na Biblioteca Nacional. Encontra-se num documento universitário referência a uma publicação totalmente desconhecida, a revista do Arquivo Histórico Colonial, de que jamais se ouvira falar. Salvo indicação em contrário, e depois de se bater a várias portas, constata-se que não passou do número 1, publicado em 1950. Talvez com a mudança política, em 1951 as colónias transformaram-se em províncias ultramarinas e o Arquivo Histórico Colonial passou à designação de Arquivo Histórico Ultramarino, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
O diretor da revista, Alberto Iria, escreve um interessante artigo acerca das vicissitudes que acompanharam a criação do Arquivo Histórico Colonial, a última edificação ainda está de pé, no cimo do Jardim Botânico Tropical, aqui funcionou até há poucos anos o reputado Instituto de Investigação Científica Tropical. E vem a primeira parte de um artigo sobre a "Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné". Do que se encontrou, aqui se faz um resumo, diga-se em abono da verdade que o autor trabalhou afincadamente e não merecia ficar com o artigo amputado.

Um abraço do
Mário


Vista da Praça de Cacheu, Guiné. À direita, a fortificação portuguesa.
Gravura, J. C. Silva, s.d, (séc. XIX). 
Acervo: Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa.


Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné

Beja Santos

Tudo começou numa pesquisa nos descritores da Biblioteca Nacional, apareceu uma tese intitulada “Do Rio Senegal à Serra Leoa (1580-1656), Espaço e estratégia, poder e discurso”, Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1997, tendo como autor Orlando Miguel Pina Gonçalves Martins da Gama. Suscitou a curiosidade e por ela se passearam os olhos, entre as notas guardou-se a referência de que o autor fizera a transcrição paleográfica da obra do jesuíta Manuel Alves “Etiópia Menor e descrição geográfica da província da Serra Leoa”, bem se procurou, nada se encontrou. E numa referência bibliográfica aludia-se a um trabalho efetuado por um funcionário do Arquivo Histórico Colonial, Cândido da Silva Teixeira, com o título “A Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné”, publicada no Boletim do Arquivo Histórico Colonial, volume I, 1950.

Acontece que, salvo indicação em contrário, este boletim apareceu e não mais se publicou. É bem provável com as mudanças de 1951, em que as colónias passaram a ser denominadas províncias ultramarinas que a passagem do Arquivo Histórico Colonial para Arquivo Histórico Ultramarino, bem à portuguesa tudo se terá feito para apagar o nome e os conteúdos, e no caso em apreço do trabalho de Cândido da Silva Teixeira, só se publicou uma parte. Aqui segue o resumo.

O autor fala da fundação da Companhia em 1589, período que estende até 1671. A povoação de Cacheu foi fundada na margem esquerda do rio com o mesmo nome pelo cabo-verdiano Manuel Lopes Cardoso, obteve licença do rei dos Brames ou Papéis. Em 1594, a povoação tinha mais de 800 habitantes, a avaliar pelo número de pessoas que se confessavam na Quaresma.

Os portugueses que então viviam no Cacheu percorriam com lanchas e outras embarcações os diferentes rios e uma parte da costa da Guiné, onde também traficavam com os ingleses e franceses, permutavam-se couros, cera e marfim. Aos Jalofos, que habitavam a margem esquerda do rio Senegal, vinham escravos em troca de ferro. Note-se que Cacheu não foi a primeira povoação fundada pelos portugueses na região de Farim. O Sargento-Mor da Ilha de Santiago, Francisco de Andrade, combinou com Masatamba, rei do Casamansa, levar os portugueses para um porto do seu reino, chamado Sarar, situado a montante do rio de Farim, feitoria que teve de ser abandonada pela insalubridade e a permanente hostilidade dos naturais. Presume-se que a primeira povoação portuguesa da Guiné tenha sido a do Porto da Cruz, em Guinala, que foi abandonada a seguir à Restauração de 1640. Observa o autor que no rio de S. Domingos havia mais escravos do que em todos os outros rios da Guiné.

Todo o comércio da Guiné se fazia então por intermédio da Praça de Cacheu, e Cabo Verde deve o seu primitivo desenvolvimento agrícola aos escravos em troca de mercadorias provenientes daquelas ilhas e do Reino. Além de mão-de-obra para as suas culturas, os moradores da ilha de Cabo Verde traziam da Guiné marfim, cera, arroz e milho. A partir de 1513, a navegação entre Cabo Verde e Guiné intensificou-se.

O autor é minucioso nas referências às obras, sempre urgentes, na fortificação de Cacheu. D. João IV ordenou essas obras em 1644, socorreu-se de um malabarismo tributário. Todo o seu reinado foi de penúria financeira com os pesados encargos da guerra da Restauração, que incluiu a remoção dos holandeses de pontos vitais como Angola e o Brasil. Assim se pode compreender que na consulta de 19 de outubro de 1652, respeitante ao comércio efetuado pelas nações do Norte da Europa na costa e portos da Guiné, o Conselho Ultramarino tenha sugerido a criação de uma companhia de particulares. A ideia não teve seguimento e o estado de decadência da praça de Cacheu era cada vez mais lastimável. A nossa soberania naquela “conquista” (termo usado na época para falar na nossa presença no que mais tarde será uma colónia) era tão precária que o Conselho Ultramarino em 26 de setembro de 1670 punha assim à consideração do Príncipe Regente (o futuro D. Pedro II) o estado deprimente da praça:
“E ultimamente Vossa Alteza se intitula Senhor da Guiné não tendo em toda aquela costa mais que uma pequena parte de terra e o pior é que a conserva Vossa Alteza à custa da sua reputação, vendo-se içadas as bandeiras de Vossa Alteza porque paga um tributo ou feudo ao rei negro, por mão do Capitão de Cacheu.”

Apesar das providências propostas pelo Conselho Ultramarino, aprovadas pelo Príncipe Regente e mandadas executar, o comércio de Cacheu e rios da Guiné parecia enfraquecer inexoravelmente. A praça persistia desmantelada, com falta de munições, pólvora e infantes.

Segue-se um período de tentativas de criação para a Companhia do Cacheu, diligências que abarcam o período entre 1671 e 1676. Em 1671, um ex-governador de Cabo Verde propôs a organização à sua custa e de outras pessoas uma companhia que metesse em Cacheu todas as fazendas imprescindíveis para o resgate de escravos, de modo a impedir-se o comércio que os estrangeiros faziam naquela praça. Cacheu era cobiçada por todas as nações do Norte da Europa por ser um porto de escala obrigatória para o resgate de escravos na costa da Guiné. Em 1673, a fortaleza da Mina encontrava-se ocupada pelos holandeses, de onde auferiam milhões no comércio do ouro, marfim, âmbar e cera, que exportavam para os seus países. Por toda aquela dilatada costa, Portugal apenas possuía a Praça do Cacheu, mal fortificada e mal provida. A questão da Companhia e dos seus proventos e tributos mexia com muitíssimos interesses. Moradores e oficiais da Câmara da ilha de Santiago protestaram contra a criação da Companhia de Cacheu, sentiam que a possibilidade de transporte direto dos negros para outras paragens, sem passar pelo arquipélago, se saldaria num desastre económico e financeiro para o arquipélago. Seja como for, a Companhia foi criada por alvará de 19 de maio de 1676. Aqui acaba a parte do artigo que teria continuidade no número 2 da revista.

Na ausência do texto deste autor, lembramos aos interessados o que se pode encontrar em qualquer motor de busca. Primeiro, a Companhia sucedeu à Companhia da Costa da Guiné, era de constituição monopolista e acabou por ser a fonte principal do comércio de Cabo Verde, ao contrário do que pensavam os céticos e reticentes, foi através desta companhia monopolista que os navios portugueses vinham obter os escravos. Como havia ameaça dos franceses no Senegal, fundou-se uma capitania em Bissau. Quinze anos depois da sua fundação a Companhia do Cacheu foi refundada com a designação de Companhia de Cacheu e Cabo Verde, o seu negócio principal era a escravatura. O forte construído em Bissau foi arrasado depois do abandono desta praça em 1707, mais tarde D. João V ordenará a construção da fortaleza de São José de Bissau.

Planta da Praça de São José de Bissau, 1778, Arquivo Histórico Ultramarino.

Vista de Amura, Guiné-Bissau. 
Gravura in: VALDEZ, Francisco Travassos. "África Ocidental : notícias e considerações : dedicadas a Sua Magestade Fidelíssima El-Rei O Senhor Dom Luiz I". Lisboa : Imprensa Nacional, 1864. 406 p., gravuras.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20969: Historiografia da presença portuguesa em África (209): “Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (2) (Mário Beja Santos)