Lourinhã > Praia da Areia Branca > Foz do Rio Grande > Uma garça-real (Ardea cinerea)
Fotos (e legenda): © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Anteontem, de manhã, à maré-vazia, quando fui dar os "meus passos em volta" , na foz do rio grande da minha infância, agarrado à minha canadiana, voltei a encontrar a minha Garça solitária (*)
Gosto dela, é resiliente e resistente, lutando contra ventos e marés, indiferente a quem passa pela ponte sobre o rio, desde que não lhe apontem a caçadeira do caçador...
Como eu ia apenas munido de uma pacífica máquina fotográfica (e auxiliado no andar por mais uma estranha perna...), ela não se assustou, não tugiu nem mugiu, lá continuou atenta ao peixe que nessa manhã ela se esforçava para que caísse no seu prato...
Imagino que, como todas as criaturas de Deus, a minha Garça tenha de comer todos os dias como eu que, nessa manhã, já levava a vantagem de ter comido o meu pequeno almoço: uma banana, uma pera rocha, um quivi, metade de um dióspiro, pedaços de nozes e um iogurte natural, sem acúcar,,, Não descobri, claro, qual foi o pequeno almoço da minha Garça... mas talvez alguma incauta taínha,
Digo "minha Garça" sem qualqer sentido possessivo: as aves do céu, da terra e do mar não têm, não devem ter dono... De qualquer modo, ela está aqui há anos, dizem, e é uma excelente pescadora. Não sei se ela tem o certificado de residência legal, nem sei se passou pelo controlo do SEF - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras... Mais: nem sei qual é a sua nacionalidade, sexo, idade...
Gosto de a rever, de quando em vez, alegra-me encontrá-la, aparentemente saudável, nestes dias tristes em que a pandemia de Covid-19 nos obriga a andar mascarados. E sós.
E eu tenho inveja dela, que é mais livre do que eu, não tem horas para trabalhar, comer, descansar, dormir, namorar, acasalar (, admitindo que, de vez em quando, lá encontre um macho ou uma fêmea da sua espécie, que eu por aqui só sei que há, entre os residentes, uma galinhola e um quarteirão de patos reais, e de vez em quando uns maçaricos, enfim, tudo espécies diferentes, logo seres não compatíveis em termos de acasalamento e reprodução).
Sem pedir autorização a ninguém, batizei-a com o nome da minha neta: Clarinha. E espero um dia possibilitar um encontro entre as duas Clarinhas.
2. Mas também me lembrei (, que raio de memória, a dos humanos!) de um poema que escrevi, em finais de julho de 2013, e que tinha justamente por título "À laia de despedida de uma Garça"...
Na altura, na organização onde eu trabalhava, iam cortar um posto de trabalho, por questões, imagino, de "racionalidade técnico-organizacional" ou em consequência de alguma "análise de custo-benefício"...
Na época não havia pandemia nenhuma, mas estávamos estávamos a atravessae o mar das tormentas da tremenda crise económica e financeira de 2008, e, em 2013, depois de conseguir vir ao de cima, bracejar, respirar e nadar, estávamos a tentar não morrer na praia... Aliás, como agora.
E a propósitpo: Crises, crises, crises ?!... Por quantas não passámos já nós, a malta da nossa geração, ao longo destes últimos 70 anos, antes e depois da guerra que nos coube em sorte como combatentes ?!...
Abreviando a história: a minha Garça (Graça, de seu nome próprio, não tendo nenhum laço de parentesco comigo, que sou Graça de apelido...) foi vítima de uma decisão do gestor do departamento de informática (ou da empresa de "outsourcing" que trabalhavapara o departamento de informática, não interessa: foi despedida, ou melhor, "dispensada"...).
Na altura, no último dia de trabalho (era fim de julho e íamos todos de férias, e portanto era a melhor altura para despedir, ou melhor, "dispensar", alguém nas empresa...), escrevi este texto que partilhei com as pessoas da minha organização...
Por razões óbvias, não indentifico nem pessoas nem lugares, nem isso agora e aqui é relevante; e se fui respescar este texto, entretanto revisto, é porque estas situações repetem-se, com demasiada frequência nas nossas sociedades, com ou sem pandemias...
A razão mais imediata para ter ido, não sei como, desenterrar este texto, é porque eu voltei a encontrar, há dias, a minha Garça (, agora Garça Clarinha), que reside na foz do rio grande da minha infância...
Não sendo budista, não acredito na transmigração das almas... Mas há pessoas que, de uma maneira ou doutra, nos tocam, que interagem connosco, nos dizem alguma coisa, de quem perdemos o rasto, e de quem guardamos sempre uma pontinha de saudade...E que gostaríamos de rever um dia...
Esta Garça nem sequer era minha amiga. era apenas conhecida, era colega de trabalho, e sobretudo era gentil... Era uma Garça gentil... E eu gosto da gentileza humana, que é um traço humano distintivo. Os deuses e os heróis não são (nem podem ser) gentis, os homens (e as mulheres) podem sê-lo.
Onde quer que ela esteja, a viver e a trabalhar, a Garça gentil do meu texto poético, gostaria que ela me pudesse ler e reconhecer...
À laia de despedida de uma Garça gentil
por Luís Graça
Deixem-me dizer-vos, amigos, uma palavrinha antes que o dia acabe
E passe o verão do nosso contentamento descontente…
Segunda feira começa o agosto, o nosso querido mês de agosto,
Seguramente o mês em que os portugueses ficam mais próximos
Do puro estado de felicidade…
Os portugueses de dentro e os de fora…
Pois, na próxima segunda feira, já seremos menos um nesta casa,
Onde se estuda e se trabalha, qualquer que seja seja o piso.
Pelo menos, a nossa Garça já não estará cá em setembro,
No piso tal, no departamento tal, no gabinete tal,,,
E já não trabalhará cá, para, sempre solícita e gentil,
Poder responder aos nossos SOS
De utentes atrapalhados com as partidas das máquinas
De quem somos cada vez mais tecnicodependentes…
Pois é, a nossa querida e gentil Garça vai-nos deixar
Pela simples razão de que a empresa
Que gere o nosso "back office" informático,
Vai dispensá-la. (Ou, tanto faz, a empresa de "outsourcing"
A que ela pertencia.
Posso não entender,
Mas também não discuto, as razões dos gestores
Que são soberanos,
E que todos os dias têm de decidir da vida das pessoas
Que trabalham nas suas/nossas empresas.
Dir-me-ão que a Garça deixou de caber no algoritmo da empresa
Que a contratou para trabalhar connosco e para nós.
As nossas vidas são simples,
As contas é que são complicadas,
E os contos ainda mais…
Pelo menos, é o que ouvimos dizer todos os dias:
"A economia, seu estúpido!"
Pois seja, a economia, meu estúpido, digo eu para mim mesmo,
Mas não é ela, a estúpida da eonomia,
Que nos vai matar os sonhos!...
Nem as nossas gentis garças que se atravessam, em voo raso,
Na nossa autoestrada da vida, ou nos atalhos
Em que a gente se mete, sem medir às vezes os trabalhos.
Já lá vai quase uma década
Que eu vi a jovem e tímida Garça,
A entrar pela nossa casa adentro,
E a competir, taco a taco,
Com os machos informáticos de barba rija,
No terreno que era (ou tinha sido) o deles.
Era minha vizinha, a Garça, da Estremadura,
Mas podia ser de Trás-os-Montes,
Ou da Ucrânia, ou da Guiné-Bissau, tanto fazia.
E depois habituei-me a vê-la,
No meu querido mês de agosto,
Na minha não menos querida praia das férias de verão,
Já com os rebentos pela mão…
Sim, porque entretanto, também foi mãe,
Como todas as garças deste mundo.
Tinha sido mãe, nestes anos que passaram por ela e por mim,
Assim tão de repente, e sem a gente se dar conta.
Eu sei que a Garça é uma mulher lutadora
E que leva daqui um portfólio, como se diz agora,
De competências cognitivas e não-cognitivas (, que palavrões!)
Competências não só técnicas
Mas também humanas e relacionais,
Que a vão ajudar a voltar rapidamente
Ao mercado de trabalho... das presas e dos predadores.
Mas, perdoem-me a fra(n)queza,
Eu vou ter saudades da nossa Garça,
Da sua voz aguda, e do seu sorriso,
E daquele seu jeito de, mesmo debaixo de stresse,
Me dizer, com a maior gentileza do mundo:
"Professor, deixe aí o seu portátil,
Que a gente já resolve o problema"…
O único consolo que me resta,
Enquanto faço o luto pela sua perda,
Valioso recurso humano da casa de todos nós,
É que eu vou já encontrá-la, na segunda feira,
Na minha querida praia das férias de verão,
E vou convidá-la para tomar uma bica,
E, como diria um bom alentejano,
Tabaquear o caso, com ela…
Ou, por outros palavras,
Dar à íngua, pôr a conversa em dia,
Puxar umas fumaças (ela, não eu que sou ex-fumador há muito…).
Vamos recordar as pequenas histórias
Com que a gente tece, colectivamente,
A malha da grande História…
Mesmo sem direito a retrato institucional,
Que esse é prerrogativa dos nossos maiores
A Garça faz parte da nossa pequena história,
Porque um dia, essa Garça,gentil, franqueou
O portão do nosso casarão que nem sequer tem número de polícia,
E voou até ao departamento de informática,
E porque as nossas organizações devem ter um rosto,
E porque o melhor delas somos nós,
A acreditar nos livros do gurus da gestão,
As equipas e os trabalhadores de equipa, e os seus líderes,
Então eu atrevo-me a falar em nome das garças que não têm voz,
E mesmo sem legitimidade institucional para o fazer,
Para simplesmente lhe dizer:
"Obrigado, Garça, vamos sentir a tua falta.
Mas também sabemos que tens asas e força para voar!
Força e perícia!
E nos teus novos voos por novos céus,
E nos teus passeios, à cata de comida, por novas águas pantanosas,
Não te esqueças de nós,
Que gostamos sempre que os amigos voltem e nos visitem,
Sempre que quiserem e puderem!
Muita saúde e longa vida, porque tu mereces tudo! "
Luís Graça, Lisboa, 31 de julho de 2013, revisto hoje.
PS -Nunca mais voltar a ver a Garça gentil... Oxalá esteja bem ou ainda melhor do que da última vez que a vi, em finais de julho de 2013.
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Nota do editor: