Queridos amigos,
A viagem, por definição, é interminável, nós é que, como baratas tontas, nem sempre acertamos no destino. Tenho promessas de visitar o parque do Montesinho, voltar a Miranda do Douro e percorrer o planalto mirandês, calcorrear todo o Alto Minho, e muito mais, tudo na lista de espera, mas a mandriice é mais pesada, a que chamamos falta de tempo. Acabo de fazer uma reparação, e de falta grave, conhecer Leiria, o que me surpreendeu profundamente, isto quando as cassandras andam para aí a dizer que o desenvolvimento é espúrio e que estamos num plano inclinado, Leiria tem qualidade de vida à vista, os arredores são impressionantes e os tesouros da cidade aparecem valorizados, como aqui se procurará mostrar. Não quero esconder que gostei ver bem tratado Eça de Queirós, que aqui teceu uma das suas obras-primas, enquanto foi administrador de concelho, e não posso esconder a minha admiração pelo pulsar cultural da cidade, profusamente ajardinada, isto a despeito de lhe chamarem cidade industrial.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (124):
Em Leiria, pedindo muita desculpa por lhe ignorar os tesouros (1)
Mário Beja Santos
Fiz a linha do Oeste, teria 8 ou 9 anos, a minha mãe pôs-me numa colónia de férias num sítio chamado Gala, bem perto da Figueira da Foz, uma ranchada de miúdos numa viagem de comboio que me pareceu bem bizarra, havia uma mudança de comboio logo no Cacém, era um nunca mais acabar de campos agrícolas, nunca tinha visto o castelo de Óbidos nem o pinhal de Leiria. E de repente descubro que passei a vida a ver Leiria de raspão, houve para ali umas conferências a que chegava ao entardecer e regressava a Lisboa pela meia-noite. Mão amiga fez-me chegar um pequeno roteiro do que a cidade oferece, não só aquele castelo com vista obrigatória de autoestrada, mas as igrejas com novos aproveitamentos, logo o Museu de Leiria, ainda por cima com o invejável prémio auferido em 2017, museu europeu do ano; e a renovação do velho casco histórico, fiquei a saber que Eça de Queirós, que foi administrador do concelho de Leiria e a li encontrou substância para uma das suas obras magistrais, “O Crime do Padre Amaro” era agora motivo de um roteiro em busca dos indícios da sua presença.
E assim se decidiu a viagem, qual a minha surpresa quando descubro na CP que viajando ao fim-de-semana, os velhotes pagam cerca de 5€ viajando até Leiria, havia que encontrar poiso, foi fácil e económico, os dados estavam lançados. E nem se sentiu qualquer obstáculo em sair do comboio e não haver transporte público, lá se foi calcorreando a caminho do centro, com alguma desconfiança, muita casa arruinada pelo caminho, em contraste com o que vai ser dado ver à entrada da cidade, marcada com o gigante estádio construído para o campeonato da Europa de futebol de 2004. Arrumada a mochila no quarto, avança-se para a Sé Catedral, monumento nacional. Gostos não se discutem, é obra do período maneirista, de uma frieza arrepiante, nem o tamanhão causa impressão, anda-se por ali à volta, contempla-se o altar-mor, é entrada por saída.
No átrio avista-se café e um conjunto a tocar umas toadas brasileiras, pareceu-me coisa insípida. Nisto, avisto uma fachada azulejada em prédio ao abandono. É a farmácia de Leonardo da Guarda e Paiva, não sei que destino lhe estará reservado. Que haja um proprietário condoído, mesmo que aqui se queira pôr construção moderníssima que ofereçam este espetáculo azulejar ao Museu da Farmácia ou mesmo ao Museu de Leiria, Esculápio agradece.
Sou tanto queirosiano como camilista, gosto de os justapor, em Eça interessa-me profundamente como intelectual de uma monarquia constitucional em declínio, que ele escalpeliza com ironia e crueza; mas Camilo é uma outra riqueza da língua, com morgados, quadrilhas, noivados do sepulcro, amores de perdição, as primorosas Novelas do Minho. Adiante, estou em Leiria e vou fazer uma parte do itinerário deste Eça, bem precisávamos de um para o nosso tempo. Tenho uma coleção de inícios de grandes obras literárias, e do Eça não conheço mais luminoso arranque que o do “Crime do Padre Amaro”, perdoem-me a extensão da citação, mas em Leiria é-se leiriense:
“Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sanguíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica — que o detestava — costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:
— Lá vai a jiboia esmoer. Um dia estoura!
Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe — à hora em que defronte, na casa do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado.
Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos nos ouvidos, palavras muito rudes.
Nunca fora querido das devotas; arrotava no confessionário, e, tendo vivido sempre em freguesias da aldeia ou da serra, não compreendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao princípio, quase todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de lábia!
E quando as beatas, que lhe eram fiéis, lhe iam falar de escrúpulos de visões, José Miguéis escandalizava-as, rosnando:
— Ora histórias, santinha! Peça juízo a Deus! Mais miolo na bola!
As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no:
— Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, criatura!
Era miguelista - e os partidos liberais, as suas opiniões, os seus jornais enchiam-no duma cólera irracionável:
— Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu enorme guarda-sol vermelho.
Nos últimos anos tomara hábitos sedentários, e vivia isolado — com uma criada velha e um cão, o Joli. O seu único amigo era o chantre Valadares, que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo, numa quinta do Alto Minho. O pároco tinha um grande respeito pelo chantre, homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovídio — que falava fazendo sempre boquinhas, e com alusões mitológicas.
O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hércules.
— Hércules pela força — explicava sorrindo, Frei pela gula.
No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava oferecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa de ouro, disse aos outros cónegos, baixinho, ao deixar-lhe cair sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro torrão de terra:
— É a última pitada que lhe dou!
Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o cónego Campos contou-o à noite ao chá em casa do deputado Novais; foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre, e afirmou-se com respeito — que sua excelência tinha muita pilhéria!
Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praça, o cão do pároco, o Joli. A criada entrara com sezões no hospital; a casa fora fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portais. Era um gozo pequeno, extremamente gordo, — que tinha vagas semelhanças com o pároco. Com o hábito das batinas, ávido dum dono, apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz Joli; enxotavam-no com as ponteiras dos guarda-sóis; o cão, repelido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manhã apareceu morto ao pé da Misericórdia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguém tomou a ver o cão, na Praça, o pároco José Miguéis foi definitivamente esquecido.
Dois meses depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro pároco.”
Sem compromissos de agenda, enterro-me no casco histórico, descubro a homenagem a Afonso Lopes Vieira e logo a seguir Francisco Rodrigues Lobo, que estudávamos no sexto ano, sobretudo por causa de a “Corte na Aldeia”, o padre António Dias de Magalhães bem o exaltava por desvelar o Portugal sombrio, supliciado pela presença de rei estrangeiro, e enfatizando que este leiriense no estava a abrir as portas ao barroco literário.
Escultura de Afonso Lopes Vieira. Nasceu em Leiria, em 26 de janeiro de 1878, tinha casa perto, em Cortes, e vivia em Lisboa, onde faleceu
O fim de tarde acode à lembrança que se comeu pelo caminho uns pãezinhos e peças de fruta, não se paga 5€ num comboio regional à espera de encontrar um vagão-restaurante do tipo do Expresso do Oriente. Eis senão quando numa rua pedonal um letreiro chama a atenção, fora hostel, virara agora restaurante multiétnico, pergunta-se a um passante o que por ali se pode comer, a resposta é entusiástica, a comida é boa e não há em Leiria ambiente como aquele. E sobem-se as escadas para entrar no Atlas. Comeu-se de pelo menos dois continentes, mas aquele ambiente faiscante prende a valer, houve por ali mão hábil a decorar todos aqueles espaços e recantos que vão até ao terraço. Aqui se deixa a lembrança que se gostou e haja oportunidade aqui se vai voltar.
Chegou a hora de fazer o passeio de regresso, ir para a deita, o dia de amanhã promete, mete museus, igrejas e algo mais, já se fez as contas e há mesmo que voltar, não haverá condições de visitar o castelo e outros monumentos. É nisto que se capta a imagem de Leiria à noite com o castelo ao fundo, temos depois o contraste com a Leiria de manhã e vamos agora a caminho da antiga delegação do Banco de Portugal transformado em centro de artes, temos o aliciante, entre outros, de visitar uma exposição de Sofia Areal. Que Leiria me perdoe tê-la ignorado tanto tempo.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 7 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24734: Os nossos seres, saberes e lazeres (594): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (123): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (14) (Mário Beja Santos)