quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Dificilmente se entenderá o comércio de escravos na ampla faixa da Senegâmbia, a partir do século XV, e depois em espaços mais reduzidos, nomeadamente após o período filipino, sem decifrar a narrativa como tão admiravelmente António Carreira desenvolve na sua magna investigação Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878). 

Os primeiros colonos aportaram à ilha de Santiago em 1462, na Ribeira Grande, ali se fundou uma feitoria, daqui emergiu uma sociedade como nunca o português tinha forjado, com base na miscigenação prolongada, três grupos étnicos foram formando este espaço insular: brancos (os reinóis), negros maioritariamente provenientes da costa africana e de Angola, e mestiços, aqui convivem os "senhores" (portugueses, italianos, espanhós, flamengos...), os brancos da terra (os mestiços) e os escravos (a grande maioria da população). 

Começa-se por habitar Santiago e Fogo, só mais tarde se estenderá a ocupação efetiva das outras ilhas. Como Carreira sublinha, a designação de escravos de confissão ou ladinos irá ser atribuídas àqueles que frequentaram a catequese e que ascenderam a um patamar que se aproximava do modelo civilizacional de então. Como escreve Carreira, o papel dos agentes do Cristianismo em Cabo Verde foi decisivo na formação cultural das populações em missões, colégios e escolas de todo o espaço insular, e os seus frutos são visíveis nos dias de hoje.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura, trabalho solitário, que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Atenda-se ao que nos diz na nota explicativa:

“Na redação, como é meu velho hábito, não me preocupei em apurar o estilo. Expressei-me informalmente sem qualquer pretensão de fazer trabalho literário. Fui dominado apenas pela ideia de clareza e da honestidade na exposição e apreciação dos problemas, dando sempre o ‘seu ‘ a ‘seu dono’. 

O tema tratado é ingrato e por motivos diversos não entusiasma a maioria dos leitores. Seja por preconceito próprio de uma educação tradicionalista (no mau sentido do termo), seja por receio descontentar certos setores, tudo quanto envolva a apreciação do tenebroso período da escravatura mexe com a maneira de ser de algumas camadas da nossa sociedade. Todavia é preciso vencer esse sentimento de culpa acerca de um passado para o qual as atuais gerações nada puseram, nem depuseram. E isso só se consegue mostrando as duas faces da questão: a boa e a má, comprovadas por documentação honesta e incontestada. 

É indispensável ver o problema da escravidão no seu próprio tempo e segundo a mentalidade da época.
Neste particular é de apontar o exemplo da Inglaterra. Nenhuma nação negociou tanto como ela em escravos. Com esse negócio amealhou lucros fabulosos. Em certo sentido, e no seu interesse direto, arvorou-se em campeã do abolicionismo. Nessa campanha usou de todos os processos, lícitos e ilícitos. Abusou da sua força. Publicou livros sobre o tráfico, nuns descrevendo os seus horrores e condenando-o; em outros defendendo a sua manutenção. E não parece que haja algum inglês que tenha qualquer sentimento de culpa pelo que os seus antepassados fizeram – e numa escala nunca igualada por nenhum outro povo.”


São incontestáveis os pontos de coincidência, as linhas tangentes nas histórias de Cabo Verde e Guiné. Carreira descreve metodicamente os contratos de arrendamento, o papel exercido pelos mercadores em Santiago; dedica um aprimorado capítulo à figura dos lançados ou tangomaos (em espaço separado aqui se referenciou cuidadosamente o pensamento do autor sobre este fenómeno que acabou por ser marcante sobre a presença portuguesa no continente); situou a atividade de judeus autênticos ou de cristãos novos bem como de fidalgos no tráfico de escravos e tece a seguinte observação:

“As medidas restritivas da fixação de residência de fidalgos e de cristãos novos em Santiago e nos Rios de Guiné, inseria-se no plano manuelino de perseguição de judeus e cristãos novos, e para além da questão religiosa, no receio deles se fixarem e, com o seu conhecido tato comercial, prejudicarem ainda mais o negócio dos cristãos e do próprio monarca.”

Prossegue a exposição sobre as operações de captura e vamos percecionando que o espaço onde se exerce este comércio é inicialmente o correspondente ao da Senegâmbia, mas a área, um tanto aproximada do que é hoje a Guiné, deu um enorme contributo a este tráfico, como ele observa:

“De Arguim ao Gâmbia a melhor mercadoria para a compra de escravos era o cavalo; do rio Gâmbia para Sul passava a ser a manilha de latão. Compreende-se perfeitamente esta preferência. Nas áreas alagadas, na floresta húmida, o cavalo não tinha grandes condições de sobrevivência. A mosca do sono por um lado, o alto grau de humidade, o mosquito e os pastos pouco adequados, por outro, condenavam a sua presença. As populações das rias (do Gâmbia para Sul) não o conheciam nem o sabiam tratar convenientemente. 

Nos primeiros trinta anos de Quinhentos as espécies mais utilizadas e as cotações seguidas variavam consoantes os setores. Assim temos:
- No rio Senegal, terra de jalofos, dava-se 1 cavalo por 10 escravos;
- No rio Gâmbia, ou Cantor, 1 cavalo por 7 escravos. 
- No rio Grande de Buba, terra de biafadas, 6 a 7 cavalos ou 20 a 25 manilhas de latão; ou 10 a 14 cavalos; ou ainda 6 a 7 cavalos por 1 escravo.
- No rio de S. Domingos e na Serra Leoa (1526) segundo os valores estabelecidos nos regimentos dos capitães dos navios do trafico, cada escravo podia ser adquirido por qualquer das seguintes quantidades de mercadorias: 17 ou 18 côvados mouriscos de pano; 38 a 40 alaqueca (pedra semipreciosa); duas mantas de Alentejo; 40 a 50 manilhas de latão; 5 bacias grandes de barbeiro; 1,5 côvados do Reino de pano vermelho (?); 30 a 40 côvados mouriscos de lenço francês.”


E, mais adiante, Carreira refere que em toda a Guiné a valia da cera de 3 quintais por negro era um pagamento corrente (opinião do investigador P. António Brásio). O autor não esquece também do preço dos escravos em moedas quando eram reexpedidos com destino a Lisboa, Antuérpia, Sevilha, Índias de Castela, dá-nos referências de preços até ao fim da escravatura.

Carreira dedica um capítulo para a indicação das diferentes mercadorias levadas à costa africana, que vão desde panos, mantas, contaria e muitas outras. Trata igualmente com cuidado os contratos de arrendamento das áreas dos tratos e regastes. 

O período filipino, abundantemente estudado também no que toca à presença portuguesa na costa ocidental africana, deixa claro como se ia reduzindo a presença comercial, tornara-se precária, cada vez mais distante, a conceção entre Arguim e Cabo Verde, eram holandeses e franceses que usufruíam então a posição vantajosa; aliás, os holandeses irão ocupar a fortaleza de Arguim em 1638. Tentar-se-á animar todo este tráfico com uma sucessão de Companhias e revitalizar a importância de Santiago como placa giratória da reexpedição de escravos.

Vale a pena retomar o discurso de Carreira:

“Cabo Verde e a Guiné atravessaram no final do século XVII aos meados do século XVIII um período difícil, durante o qual se acentuou a decadência: crise de comércio, ausência absoluta de navegação nacional e com tudo isso a progressiva fuga de capitais e de homens brancos, mestiços e pretos, tanto os de Cabo Verde como os de Cacheu.

Todo o período decorrido até à instalação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, ficou marcada pela ruína das vilas e das fazendas agrícolas, pela fuga de homens brancos, pela queda vertical das atividades económicas – desde o comércio de géneros e mercadorias até ao de escravos.”


E há as crises de fome e de epidemias, outra via para o despovoamento, Carreira vai anotando as datas destas calamidades até ao século XIX, é indispensável estar atento a estes acontecimentos para se entender a resiliência e a vontade de emigrar do cabo-verdiano. Obviamente que o autor dedica muita atenção à ocupação e exploração das ilhas, ao braço escravo como força de trabalho, refere o algodão e a urzela como os primeiros géneros da economia destes ilhéus, vem depois a cana do açúcar, a tecelagem, as produções de subsistência, os milhos, os feijões, a batata-doce a mandioca, um pouco de vinho. O pescado era economicamente insignificante, um quase recurso alimentar, faltavam embarcações capazes de permitir uma saída para o largo.

Não menos relevante é a narrativa tecida pelo autor quanto à religiosidade, já que datam da primeira década de 1500 as primeiras leis para a ministração do batismo aos escravos. Aparecem assim os ladinos, batizados e ensinados a trabalhar e a falar a língua portuguesa (certamente que o crioulo. Faziam-se batismos em massa, os missionários não escondiam o que pensavam da escravização injusta, daí as tentativas tendentes a obter a ladinização dos escravos, um dos caboucos que irão fundamentar a identidade cabo-verdiana e a sua cultura. Assim se cristianizaram as gentes de todas as ilhas. 

“E de tal forma a semente deu seus frutos desde os alvores de Quinhentos, que no decurso deste quase meio milénio, a doutrina e a moral cristã, se propagaram de geração em geração radicando-se no espírito das atuais 270 mil almas que povoam o arquipélago. E terá havido algo de parecido em qualquer outra terra portuguesa, nos trópicos ou no equador?”

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24813: Historiografia da presença portuguesa em África (392): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)", por António Carreira; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24830: Fotos à procura de... uma legenda (178): Mansabá e a sua placa toponímica, com lista em diagonal, bicolor, encarnada e verde, cores da Bandeira Nacional...

Guiné > Região do Oio > Mansabá > 1970 >  Placa toponímica assinalando a entrada de Mansabá para quem vinha de Cutia

Foto (e legenda):   © Carlos Vinhal (1970). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. A foto acima foi reproduzida no poste P24828 (*) com um lapso: "placa toponímica assinalando o fim da localidade de Mansabá"...

O Valdemar Queiroz, o nosso campeão do passatempo "Veja se é bom observador", não deixou escapar,  como sempre, aquilo que lhe parecia que não bater a bota com a perdigota, e zás, comentou: 

(...) Mais uma fotografia interessante e surrealista. Não só a placa de trânsito está mal colocada, deveria estar colocada no lado esquerdo, como ao contrário virada para a tabanca que ficou para trás." (...) | 7 de novembro de 2023 às 23:04

O Carlos Vinhal, que lá fez umas férias naquele aprazível "resort" turístico da Guiné, Mansabá, entre 1970 e 1972, e que é o dono da foto-recuerdo, veio a terreiro "defender a sua dama":

(...) "Caro Valdemar, tens (e não tens) toda a razão. A placa toponímica, e não de trânsito, da foto, assinala a entrada de Mansabá para quem vinha do Sul, Cutia, e se dirigia para norte, Farim. A fazer fé no Luís, se a legenda é minha, na altura eu devia estar sob efeito de alguma substância ilícita" (...) |  de novembro de 2023 às 10:06
 
E fez um esclarecimento adicional: 

(...) Aquela faixa em diagonal não quer dizer fim de localidade, trata-se de uma lista bicolor encarnada e verde, cores da Bandeira Nacional.(...) | 8 de novembro de 2023 às 10:16

O editor LG comentou, por sua vez,  desfazendo o equívoco:

(...) Valdemar e Carlos, não tenho aqui o livro do Mamadu Djaló (vim a Lisboa), não posso confirmar, mas pelo que vejo na cópia digital que me mandou o Virgínio Briote, a foto tem a seguinte legenda: "FOTO 103: Mansabá, vista aérea da povoação e aquartelamento. Foto de Carlos Vinhal, ex-Furriel Mil."

Trata-se de uma gralha, obviamente, que eu não sei se foi corrigida antes da impressão do livro... A legenda, no poste, era pois da minha autoria ("placa toponímica assinalando o fim da localidade de Mansabá")...  

Devia ter visto com mais atenção a foto, e  consultado o Carlos Vinhal, mas ele já fez o favor de corrigir, e muito bem: "Guiné > Região do Oio > Mansabá > Placa toponímica assinalando a entrada de Mansabá para quem vinha de Cutia" (...) .8 de novembro de 2023 às 12:50


2. Mas agora é altura de lançar um desafio aos nossos leitores: 
  • alguém mais tem fotos destas, de placas toponímicas com lista em diagonal, bicolor,  encarnada e verde, cores da Bandeira Nacional...?  
  • qual o seu significado? 
  • nasceu de uma bizarria das autoridades locais, civis e/ou militares?
  • era uma reafirmação do portuguesismo das gentes da terra? 
  • ou uma provocação aos "vizinhos" do Morés? 
Talvez o Carlos Vinhal possa dar mais um eslcarecimento adicional... (**)


Carlos Vinhal (ex-fur mil, at art, MA, CART 2732, Mansabá, 1970/72)  junto à placa toponímica que assinala a entrada de Mansabá para quem vem de Cutia. Na placa, em diagonal, a lista com as cores encarnada e, supostamente, verde, representativas da Bandeira Portuguesa. E na coluna pode ler-se: "CART 2732"...


Foto (e legenda)  © Carlos Vinhal  (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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(**) Último poste da série >  25 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24586: Fotos à procura de... uma legenda (177): Foto do Abílio Duarte, tirada talvez pelo Cândido Cunha, em Fasse, Paunca: (i) "Furriel com um bebé ao colo"; (ii) "O capitão pode ser o chefão disto tudo, mas é o furriel que me dá a pica cá no sitio"; (iii) "Os furríeis podem ser os mais garbosos, mas quem me trazia as sobras eram os da ferrugem", etc. (Valdemar Queiroz / Chernmo Baldé / Carlos Vinhal / Eduardo Estrela / Luís Graça)

Guiné 61/74 - P24829: S(c)em comentários (12): As (des)ilusões de Luís Cabral... (António Rosinha, ex-topógrafo, TECNIL, Bissau, 1979-1993)


Guiné-Bissau > Região do Boé  (?) > 24 de Setembro de 1973 > Foto (e legenda) da revista PAIGC Actualités, nº 54, Outubro de 1973

"O Camarada Luís Cabral, secretário geral adjunto do nosso Partido, eleito Presidente do Conselho de Estado, seu representante nas relações internacionais, sendo igualmente o comandante supremo das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP)"...

No Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum, estas e outras fotos do dia 24 de setembro de 1973, o da proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau, por parte do PAIGC, partido revolucionário que se intitulou único e legítimo representante de todo o povo da ex-Guiné Portuguesa (!), são alegadamente  tiradas na  "região libertada de Madina de Boé" (sic), uma ficção que se mantem até hoje, 50 anos depois, mesmo contra toda a evidêncial factual... 

O PAIGC sempre foi um partido que viveu, no plano interno e externo,  da propaganda, do "show-off", do cinismo, da mentira (a começar pelos comandantes da guerrilha e dos comissários políticos que engavam o Amílcar Cabral com números fantasiosos de retumbantes vitórias militares,e alguns eram racistas e violentos para com a sua própria população), para não dizer até da capacidade de  sedução,  da basófia  e da "lata" (nomeadamente dos seus "diplomatas"... reclamando-se, nas instàncias internacionais,  do controlo, por exemplo, de 2/3 do território e de 400 mil habitantes, com estruturas que seriam as futuras bases do novo Estado independente: escolas hospitais, armazéns do povo, granjas, forças armadas, tribunais, gestão local, etc.).

 Já falámos, "ad nauseam", da ajuda sueca (alegadamente "desinteressada", "humanitária", "solidária",  etc.), que atingiu valores que chegaram aos 2,5 mil milhões (!) de coroas suecas [c. 269,5 milhões de euros] durante o período de 1974/75-1994/95 (sendo de 53,5 milhöes de coroas suecas, ao valor actual, ou sejam, cerca de 5, 8 milhões de euros, o montante correspondente ao período da "guerra de libertação", de 1969/70 até 1976/77)... 

Enfim, essa ajuda chegou a representar 5 a 10% do total do valor das importações da Guiné-Bissau...Ao fim destes anos todos, os suecos fecharam a torneira, ao descobrirem que estavam a mandar o dinheiro dos contribuintes para o lixo... 

A administração de Luís Cabral e, depois, do golpista  e tribalista'Nino' Vieira, dois heróis da liberdade da Pátria, infelizmente não conseguiram trilhar com sucesso os caminhos da liberdade, da justiça, da paz, da reconciliação e do desenvolvimento com que sonhara e por que lutara o "pai" da Pátria, Amílcar Cabral, hoje tão mal-amado e esquecido na sua própria terra, talvez  por ser meio-guineense e meio-cabo-verdiano...




Antº Rosinha , ex-fur mil em Angola, 1961/62, topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93, ex-"colon" e retornado, como ele gosta de se intitular com a sabedoria, bonomia e o sentido de humor de quem tem várias vidas para contar... por que já as viveu (as "Berças", Angola, Brasil, Guiné-Bissau, Portugal pós-25 de Abril...)



Antº Rosinha disse (*)...

"Declarações de Luís Cabral que deplorava ter encontrado os cofres vazios, uma administração sem quadros", quer dizer, o aprendiz de colonialista, Luís, irmão de Amílcar, estaria à espera de uma passadeira vermelha e um abre alas com banda de música.

Depois de andarem 13 anos a dizer que não precisavam de nada do 'colon', que nós sabemos governar melhor e os nossos amigos vão-nos ajudar, admira a desilusão de Luís Cabral, com a debandada dos funcionários colonialistas.

De facto até parecia fácil governar as colónias portuguesas para quem conhecia bem aquela "paz colonial", por dentro e por fora, com a colaboração de funcionários como Luís Cabral, Amílcar Cabral, Aristides Pereira... em geral.

Para alguns correu bem, outros nem tanto. (**)


7 de novembro de 2023 às 19:10

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24828: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXVIII: um centro de instrução de Comandos em Mansabá, nas barbas do PAIGC, às portas do Morés


Guiné > Região do Oio > Mansabá > Placa toponímica assinalando a entrada de Mansabá para quem vinha de Cutia


Guiné > Região do Oio > Mansabá > c. 1970/72 > Vista da tabanca.  

Fotos (e legendas)  © Carlos Vinhal  (1970). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região do Oio > Farim > c. 1969 / 71  Nas margens do Cacheu, em Farim.

Foto (e legenda)  © Carlos Silva (1970). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem mais de nove dezenas de referências no nosso blogue. Tinha um 2º volume em preparação, que a doença e a morte não  lhe permitaram ultimar.



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC";

(xxi) saída para o subsetor de Mansoa, onde o alf cmd graduado Bubacar Jaló, da 2ª CCmds Africanos, é mortalmente ferido em 16/2/1973 (Op Esmeralda Negra)M

(xxii) assalto ao Irã de Caboiana, com a 1ª CCmds Africanos, e o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor;

(xxiii) vamos vê-lo a dar instrução a futuros 'comandos' no CIM de Mansabá, na região do Oio, no primeiros meses do ano de 1973, e a fazer algumas extras (e bem pagas) com o grupo do Marcelino, aoi serviço do COE, que era comandado pelo major Bruno de Almeida; mas não nos diz uma única sobre essas secretas missões; ao fim de 12 anos de tropa, é 2º sargento e confessa que está cansado...


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXVIII:

 Um centro de instrução de Comandos em Mansabá, nas barbas do PAIGC, às portas do Morés 

No final de 1972, eu era 2º sargento,
estava com muitos anos de guerra, sentia-me muito cansado

Num dia daqueles entrei no gabinete do major Almeida Bruno, comandante do Batalhão de Comandos, e pedi-lhe que me transferisse para uma companhia africana. Depois de olhar para mim, mandou chamar o 1º sargento e pediu-lhe o meu processo.

Começou a folheá-lo e, uns momentos depois, mandou chamar o tenente Jamanca. Nisto entrou o Marcelino da Mata [1] e, logo a seguir o Jamanca.

O major, dirigindo-se ao Jamanca, perguntou-lhe porque é que ainda não tinha sido entregue o meu processo de promoção. Como o Jamanca ficou calado, o comandante voltou a fazer a pergunta e o Jamanca continuou calado. Nessa altura, o Marcelino disse que no batalhão já se vendiam os postos e que era por isso que não gostava de lá estar [2].

O comandante não ficou muito satisfeito com esta saída do Marcelino e mandou-o estar calado.

Amadu, vais ser oficial. E a questão do vencimento vai resolver-se.

Uma semana depois, talvez, estava na cantina quando me chamaram ao telefone.

−Amadu, sabes com quem estás a falar?

Eu não reconheci a voz e respondi que não, que não sabia quem me estava a telefonar.

− É do Comando-Chefe, é o Ramos[3]!

− Olá. meu capitão, está bom?

E, depois começámos a falar, até que me convidou a ir ter com ele.

Fui sem demora. Quando o vi, ele perguntou-me se eu queria escolher um furriel e dez soldados, que fossem da minha total confiança e passasse a sair com ele[4], para o mato.

Nesse mesmo dia chamei o furriel Facene Sama. Eu gostava do Facene, tanto como se fosse meu filho. Disse-lhe:

− Escolhe dez homens da tua completa confiança e apresenta-te na parada com eles, com as vossas armas e mais dois RPG2 e uma HK 21. Quando estiverem prontos, chama-me. Entretanto, fui buscar a minha arma, os equipamentos e um rádio AVP 1.

O grupo já estava formado quando me dirigi ao encontro deles. Passei-lhes revista, inspeccionei as armas e os respectivos equipamentos e disse-lhes que estivessem prontos para saírem no dia seguinte às 07h30.

No dia seguinte, começámos a sair com o Marcelino da Mata e com o capitão paraquedista Ramos. Por cada saída eu recebia mil escudos e o furriel e os soldados quinhentos.

Estas acções duraram três a quatro meses, com uma a duas saídas por semana, ao mesmo tempo que me mantinha nos Comandos em Brá e saía sempre que o meu grupo estava escalado.

Tive conhecimento que ia haver um curso em Mansabá, logo nos inícios de 1973. Eu andava muito cansado e, quando vi o meu nome na lista de instrutores, pedi para me trocarem. Quando teve conhecimento do meu pedido, o capitão Matos Gomes mandou-me chamar.

− De que é que eu estou cansado, meu capitão? De tantas correrias, de marchas forçadas!

− Não vais correr, Amadu, quem corre são eles, tu vais mandar, vais controlar as corridas e as marchas.

Três dias depois, lá fui eu, outra vez, numa coluna de viaturas, para Mansabá. Chegámos atrasados, já passavam das 16 horas. Tinha havido um acidente com alguns feridos, na curva de Nhacra, logo a seguir à povoação.

Eu levei a minha mulher e o Braima Baldé e o Bailo Djau também levaram as deles. Depois de chegarmos fomos procurar alojamentos.

No dia seguinte começou o curso[5]. Nos três primeiros dias comemos muito mal, não havia carne. Não estávamos a passar muito bem e, então fui falar com o capitão, comandante da companhia, a ver se nos podia arranjar carne.

Que havia um homem, chamado Malan, que matava o gado e que, quando precisavam de carne, falavam com ele.

Eu, o alferes Carolino Barbosa e os sargentos Braima Bá e Bailo Djau andámos de casa em casa, à procura do homem até que o encontrámos sentado na varanda. Cumprimentou-nos mas não nos mandou entrar.

Quando lhe fizemos o pedido, disse que não, que só mataria com a autorização do capitão. Nós dissemos-lhe que tinha sido o capitão que nos tinha indicado o nome dele, mas mesmo assim recusou, dizendo que o capitão tinha que falar directamente com ele.

Vimos um furriel ali perto, dentro de um jipe e pedimos-lhe que transmitisse ao capitão que estávamos ali por causa da carne, mas que o homem dizia que só na presença do capitão é que o caso se podia resolver.

Não demorou muito, chegou um jipe com um alferes que, a mando do capitão, disse que o homem podia matar vacas para o nosso consumo. No dia seguinte, de manhã, tínhamos a carne que precisávamos. E á tarde, quando estava com o capitão Matos Gomes perguntei-lhe se era possível organizar uma coluna para Farim. Porque eu tinha parentes lá, que tinham muito gado. Arranjava pastor, trazia-o para Mansabá e era capaz de arranjar carne de vaca a 11 escudos o quilo.

Saímos no dia seguinte, de manhã, em coluna, e ainda não eram 11h00 já estávamos em Farim. Contactei os parentes, juntámo-nos à beira dos correios, falei-lhes do que precisava, começámos a negociar e chegámos a acordo. E pedi para eles me arranjarem também alguém, voluntário, que fosse comigo para Mansabá.

O gado estava numa bolanha ali perto. Ajudaram-me a escolher vinte e duas vacas e depois atravessámos o rio, ao encontro da coluna que estava na outra margem do rio Cacheu.

A partir dessa altura, passámos a fornecer a carne à companhia, a uma cantina e à serração. Quando abatíamos uma vaca dividíamos a carne.

No decorrer da instrução de comandos havia quase sempre azares. No curso que estávamos a dar[6], um soldado[7] de meu grupo foi atingido mortalmente por um colega e um outro foi ferido na prova individual[8].

Num dia em que o capitão Matos Gomes se tinha deslocado a Mansoa, saímos para fora do arame farpado e andámos na mata. O nosso capitão ainda não tinha regressado mas, como estava no programa do curso, jantámos à pressa para nos prepararmos para a instrução nocturna.

O alferes[9], que o nosso capitão tinha deixado a substituí-lo, perguntou-nos o que íamos fazer.

− Vamos sair para a instrução nocturna.

− Não me responsabilizo pela saída do quartel, à noite. Só quando o nosso capitão vier[10]!

Contrariados, porque a instrução nocturna fazia falta, fomos aos quartos mudar de roupa. Depois dirigi-me a casa do padre da Mesquita, que era meu amigo. Estivemos a conversar e, quando chegou um homem que o vinha visitar também, despedi-me e comecei a dirigir-me para o quarto. Quando estava quase a entrar na estrada alcatroada, de um momento para o outro vi o céu muito claro e logo a seguir tiroteio à volta do arame farpado. O fogo de armas automáticas e os rebentamentos não me deixavam regressar para o quartel.

Decidi voltar a casa do padre. Quando cheguei, vi-a a arder, de uma ponta a outra. Voltei para a Mesquita e encontrei muita gente lá dentro, militares europeus e outras pessoas. Como não havia bombeiros, alguns militares vieram do quartel com água. Toda a gente tentava apagar o fogo, que tinha tomado conta da casa.

Quando o PAIGC cessou o ataque, soubemos que tinham sido atingidas mortalmente três pessoas, um casal idoso e um rapaz[11].

Voltaram a atacar o aquartelamento quando o curso estava a terminar. Desta vez, utilizaram armas pesadas, mas tiveram pouca pontaria, as granadas caíram todas fora do quartel e da povoação.

No final do curso, regressámos a Bissau e começámos os preparativos para o treino operacional que iria começar com uma das maiores operações de comandos. Quase 500 homens, o batalhão inteiro, comandado pelo major Almeida Bruno. 

(Continua)
_________

Notas do autor e/ou do editor VB:

[1] Nota do editor: Marcelino da Mata, na altura 2º sargento, chefiava o grupo “Os Vingadores”, sediado na Amura, que dependia do COE, comandado pelo major Almeida Bruno.

[2] O ambiente entre nós nem sempre foi o melhor. Havia rivalidades étnicas que se cruzavam com os problemas que ocorriam em qualquer unidade militar.

[3] Nota do editor: capitão António Joaquim Ramos, paraquedista, em missão no COE do Comando-Chefe

[4] A missão era levar a efeito assaltos a acampamentos IN, juntamente com o grupo “Os Vingadores” do 2º. sargento Marcelino da Mata.

[5] Nota do editor: foi o primeiro curso realizado em Mansabá. Os anteriores tinham sido realizados em Fá Mandinga. A ideia de Mansabá partiu do major Almeida Bruno, para marcar a diferença relativamente ao anterior, pois este era o primeiro curso realizado sob a responsabilidade do Batalhão de Comandos da Guiné, criado em 2 de novembro de 1972. A ideia era estabelecer um Centro de Instrução de Comandos e a localização tinha a ver com a situação operacional. Era um desafio ao PAIGC, um centro de instrução de Comandos nas barbas do Morés.

[6] Nota do editor: em 21 abril 1973.

[7] Nota do editor: Saranjo Baldé, durante a limpeza da sua arma, segundo a versão oficial.

[8] Prova individual, numa pista de combate no exterior do quartel, com obstáculos e progressão com tiro real.

[9] Nota do editor: alferes da 35ª CCmds, comandante de um grupo de combate.

[10] A instrução nocturna era feita habitualmente na zona da pista, na direcção da estrada para Bafatá, ou nos terrenos junto à estrada Mansabá-K3-Farim. Aproveitava-se, assim, a instrução para criar instabilidade no PAIGC.

[11] No quartel caíram várias granadas e um foguete de 122 abriu um buraco na parede do bar.

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 22 de outubro de  2023 > Guiné 61/74 - P24780: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXVII: assalto, da 1ª CCmds Afriicanos, com o cap cav 'cmd' Carlos Matos Gomes como supervisor, ao irã da Caboiana, em outubro de 1972

Guiné 61/74 - P24827: Manuscrito(s) (Luís Graça) (240): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte VII

 

Fotograma nº 1 > "De herói a vilão", eis a história do Zé do Telhado, aqui, sargento patuleia, recebendo  a mais alta condecoração do país, a Torre e Espada, das mãos do general Sá da Bandeira, a quem salvou a vida, em combate, na Guerra da Patuleia (out 1846 / jun 1847), que se seguiu à Revolta da Maria da Fonte.

Fotograma nº 2 >  O fantasioso (no filme) assalto à Casa do Carrapatelo, Marco de Canaveses, sita nas faldas da serrra de Montedeiras e na margem direita do rio Douro, a escassos quilómetros na nossa casa em Candoz.


Fotograma nº 3 >    Um destacamento dos Granadeiros da Rainha, em perseguição, mal sucedida,  do Zé do Telhado e do seu bando, em 1852

Fotograna nº 4 >  Um filme "romântico" mas também um "western à portuguesa" onde há de tudo:  amor, perdição, ciúme, traição, nobreza, camaradagem, ação, coragem, assaltos, tiroteiro, loucas correrias a cavalo, duelo,  morte... Foi uma época, a da consolidação da monarquia constitucional, nas décadas de 20, 30, 40 e 50 do séc. XIX, violenta, pautada por sucessivos episódios de guerra civil (as chamadas "lutas liberais": dos liberais contra os absolutistas, dos liberais entre si)... Calcula-se que mais de 20 mil portugueses tenham morrido às mãos de portugueses... Estamos muito longe, portanto, do país de "brandos costumes" dos nossos contos de fadas e príncipes encantados...


Fotograma nº 5 > O "duelo de morte" com o José Pequeno, o "vilão da história", que traiu o bando, e aquem,  diz o Camilo, o Zé do Telhado,  cortou a língua com uma tesoura depois de morto. 

Mas o "ajuste de contas final" entre os dois teria sido na Lixa, e não na serra, como  vemos no filme de 1945 que, de resto, é considerado um "remake" do filme mudo, de 1929, realizado por Rino Lupo, com exteriores filmados no Solar de Beirós, São Pedro do Sul; o guião, por sua vez, tem como fonte  o livro de Eduardo Noronha (1859-1948), "José do Telhado: Romance Baseado sobre Factos Históricos" (1923)(As cenas do exterior deste primeiro filme, o de 1929, foram rodadas em diversos sítios por onde andou o "nosso herói": Amarante, Vila Meã, Lixa, Marco de Canaveses, Felgueiras, Serra do Marão, Sobreira em Caíde de Rei, Lousada, e na casa onde nasceu José do Telhado, em Recesinhos, no lugar do Telhado, Penafiel. Fonte:  Penafiel, Terra Nossa).

Fotogramas do filme "José do Telhado" (1945).  disponível no You Tube, na conta "MusaLusa". 

Uma das raras fotos da época (pormenor) do Zé do Telhado, de seu nome de batismo José Teixeira da Silva (c. 1816-1875), aqui com o seu irmão Joaquim Telhado, também ele bandoleiro, à sua direita. 

Fonte:   Manuel Vieira de Aguiar, "Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses" (Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp).   , 1947,  pág. 273. (Foto extraída do livro de Sousa Costa, " Grandes dramas judiciários: tribunais portuguees", Porto, O Primeiro de Janeiro, 1944)



Contracapa do livro de Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II  Vol,  8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco,  Edição Popular, 54")


1. Comentários de alguns dos nossos leitores sobre estes escritos do editor Luís Graça com referência ao Zé do Telhado, cujo "fantasma" ainda paira pelos vales do Sousa e do Támega e pelas serras à volta (Montemuro, Marão, Montedeiras...) (*)


(i) Francisco Baptista:

Amigo Luís Graça, já poucos escrevem, poucos comentam. Estamos todos a ficar com as pilhas gastas. Tu és dos poucos que continuas a dar grandes provas de vitalidade.

Gostei de saber por ti do Zé Telhado, de quem pouco sabia, como a maioria dos portugueses, sabem o nome e a fama de bandoleiro, que roubava aos ricos e dava aos pobres. Nem sabia que sobre ele já tantos escritores tinham escrito.

É natural que ele também te motivasse a ti pois além do mais era de perto de Candoz a outra terra que tu amas mais. Gostei de ler e espero por mais capitulos. Estou a pensar comprar também " As Memórias do Cárcere", de Camilo.

Obrigado. Grande abraço

22 de outubro de 2023 às 19:15 


(ii) Fernando de Sousa Ribeiro:

Estou um pouco como o camarada Francisco Baptista. No Porto, o Zé do Telhado é uma referência vaga, de uma espécie de Robin dos Bosques à portuguesa, que passou pela Cadeia da Relação da cidade antes de ser deportado para Angola. Só se fala nele quando se visita a cadeia (atual Centro Português de Fotografia) e se espreita a cela onde Camilo Castelo Branco viu o Rio Douro aos quadradinhos. Nessa ocasião fala-se de Ana Plácido, como não podia deixar de ser, e por arrastamento fala-se do Zé do Telhado também.

O encontro entre Camilo Castelo Branco e o Zé do Telhado na cadeia não terá sido o primeiro que eles tiveram. Muito tempo antes, o próprio Camilo foi assaltado pelo Zé do Telhado, numa ocasião em que viajava de diligência entre Vila Real e o Porto! O próprio Camilo fala no assalto num dos seus incontáveis livros (não me recordo de qual) e chama patife, facínora, ou outros nomes equivalentes, ao seu assaltante. Mal sabia ele que iria encontrar-se de novo com o antigo salteador na cadeia e que iria refazer a imagem que tinha feito dele.

Durante a minha comissão militar em Angola nunca ouvi falar do Zé do Telhado, nem uma só vez. Inclusivamente, no meu grupo de combate havia dois militares negros naturais de Malanje e nunca os ouvi fazer qualquer referência a ele. Já os brancos de Angola admiravam outras personagens, que não o Zé do Telhado; admiravam Paulo Dias de Novais, Salvador Correia de Sá, Silva Porto, Norton de Matos, etc.

23 de outubro de 2023 às 02:02

(iii) José Teixeira;

O Zé do Telhado tinha bem demarcada a sua zona de atuação. Do Marco de Canavezes a Vila Real até Cete, Paredes, sobretudo na orla da estrada real. A conhecida estrada Porto a Vila Real com uma variante para a Régua. Era a estrada por onde passavam os grandes comerciantes do Vinho Fino, vulgo, Vinho do Porto. 

A minha avó falava muito do Zé do Telhado, dado que o meu visavô foi contemporâneo dele. O Lugar da Árvore em Caíde, um entroncamento de estradas,  era um dos sítios onde ela costumava fazer as emboscadas. Recordo-me de em criança passar por lá várias vezes a caminho de Vila Meã. Havia sempre uma história contada pela minha avó sobre o meliante. A admiração que os mais velhos tinham pelo Zé do Telhado ia assim passando para os mais novos. Para a minha avó o Sr. José do Telhado tinha sido um grande homem. Ele roubava aos ricos para dar aos pobres e havia sempre mais uma história para contar.

20 de setembro de 2023 às 22:42 

(iv) Valdemar Queiroz:

Quanto ao apelido/alcunha "do Telhado", há três versões.

A mais conhecida é a de ser um salteador que entrava pelo telhado, outra que a casa do pai era a única com telhado de telhas em vez de colmo como as outras e a que parece mais lógica era de ser natural do aldeia/lugar de Telhado e assim ser conhecido quando foi viver para os lados de Lousada.

Antes de ser assaltante era castrador de animais e já lhe chamavam o Zé do Telhado.

No filme "Zé do Telhado", com Vergílio Teixeira, há uma cena em que ele, numa taberna, aperta a mão a outro bandidolas provocando-lhe dores.

Foi uma grande treta, o outro bandidolas era Juvenal Araújo que eu conheci, já dentro dos cinquenta anos, mas quando fez o filme era um matulão que ganhava apostas por rasgar uma lista telefónica fechada, o que deixaria o Vergílio Teixeira com as falanginhas e falangetas partidas.

15 de setembro de 2023 às 14:49

(v) Luís Graça:

O mito do país dos brandos costumes é uma invenção do salazarismo: "antes de nós o dilúvio, depois de nós o caos"... Não é por acaso que o séc. XIX era pura e simplesmente ignorado na escola (e na universidade, pouco ou nada investigado pelos historiadores)...

O que é que a gente sabia sobre o século em que a liberdade e a justiça passaram a ser também uma bandeira, pela qual muitos portugueses se bateram e morreram?!... Afinal, o século em que passámos a ter uma constituição, se consolidou a monarquia constitutucional, se derem passos importantes no processo de "modernização", se aboliu a escravatura e a pena de morte...

13 de outubro de 2023 às 12:37

Em 1945 fizeram um "western" à portuguesa em que o nosso Zé do Telhado (interpretado pelo galã Virgílio Teixeira) é um perfeito oficial e cavalheiro. (Só dei uma rápida vista de olhos ao filme disponivel no You Tube, parte dos exteriores terão sido rodados na nossa serra de Montedeiras.)

O filme está disponível aqui, na conta : https://www.youtube.com/watch?v=i_6MmOOrDh4

O cinema também serve para falsificar ou reinventar  ou reescrever a história... (O filme de 1945 não pretende ser  "uma biografia, mas  uma obra livremente inspirada na vida do célebre salteador"...)




Cartaz do filme "José do Telhado" (1945), a preto e branco, 98 minutos: produzido e realizado por Armando de Mirando, e contracebado por Virgílio Teixeira e Adelina Campos, nos dois principais papéis. Os exteriores foram filmados em Vouzela, em 1945. O filme foi estreado no Porto (Coliseu, em 15/12/1945), e emLisboa (Polteama, 16/1/1946). Fonte: Cinept / UBI (com a devida vénia...)



2. Vamos reproduzir mais alguns excertos das "Memórias do Cárcere" (1ª edição, 1862), em que o Camilo Castelo Branco traça um retrato-robô, lisonjeiro, quase hagiográfico, sobre o seu  companheiro de infortúnio (mas também precioso "guarda-costas" ...), nos calabouços do Tribunal da Relação do Porto, retrato esse que de algum modo ficou, acriticamemte, para a posteridade, criando-se assim o mito do "Robin dos Bosques português"... Afinal, também temos direito a ter um... A tradição popular, outros escritores, menores,  o cinema e a televisão (veja-se a série da RTP, "João Semana")  têm contribuido para reforçar o mito do "banditismo social"..  (Convém lembrar que Camilo não era historiógrafo, era um ficcionista, um "folhetinista", que escrevia muito, em pouco tempo, e em função do seu "nicho de mercado", que era uma clientela urbana ou urbanizada, letrada, que lia jornais,  "folhetins" e alguns livros,  com poder de compra, em suma, a pequena e a média burguesia liberal socialmente em ascensão.)

Os excertos aqui reproduzidos são os da 8ª edição (Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II  Vol,  8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966)

(...) “Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote, quando as manifestam e apontam a extraordinários destinos (...) (pág. 83)

(…) "Na noite de 22 de Maio [de 1852] (**) deu José do Telhado batalha campal à tropa no local denominado Eira dos Mouros [freguesia de Santa Cristina de Figueiró, concelho de Amarante, distrito do Porto] (**)

O destacamento de infantaria 2  (***) conseguira capturar dois salteadores e descera com eles a uma estalagem,  para descansar. Aí o surpreendeu a horda com o chefe montado em fogosa égua. Chegou ele ao terreiro da estalagem, e exclamou: "Carregai com quartosn (****),  rapazes, que está aqui José do Telhado." 

Saiu fora a tropa, e empenhou-se um tiroteio,  que rematou pela retirada do destacamento. O chefes sustentou sempre a vanguarda da avançada, fazendo fogo de pistola e clavina. 

Estavam os dois saltadores prisioneiros na cavalariça da estalagem: um fugira logo que rompeu o fogo, o outro ficara na impossibilidade de erguer-se sobre as pernas cortadas de balas.

− Vem!   − disse o capitão ao salteador ferido.

− Não posso; matem-me que eu estou sem pernas.

− Faz o ato de contrição  − retrucou o chefe.

 O ferido resmuneou o acto de contrição ,  e a estalajadeira verteu lágrimas piedosas. 

José dos do Telhado  estirou-a com uma bofetada, e  desfechou contra o peito do camarada, dizendo;

− Acabaram-se-te os teus trabalhos,  e os meus  estão em  começo. Adeus!    

O cadáver não podia responder a este saudoso vale do seu chefe. (pp. 95/96)


(…) Noutra noite, cercou-lhe a  tropa a casa, estando ele no primeiro sono. Despertou-o  a mulher, e ajudou-o a vestir muito de seu vagar. Caminhou para uma porta transversal, e retrocedeu a ir buscar o  relógio esquecido, e a dar ordens ao criado para lhe conduzir de madrugada o cavalo a designado sítio. Abriu uma janela,  e disse para os soldados:

− Que tal está a noite, rapazes ? 

Retirou da janela, e  abriu a pequena porta, que defrontava com uma cortinha para a qual relevava saltar por cima de um quinchoso.  Aí estavam postados três soldados. José Teixeira aperrou a clavina  de  dois canos, e disse: 

− Agachem-se, que quero saltar.  Os dois primeiros que se moverem, passo por cima deles mortos. 

Os soldados agacharam se, e ele saltou.  Já de dentro da cortinha, atirou dois pintos (*****) aos soldados, e e disse-lhes:

−  Tomai lá para matar o bicho à saúde do José do Telhado.

E foi seu caminho pacífica e detidamente como se andasse espreitando a toupeira no seu meloal.  Teria ele tempo de palmilhar um oitavo de légua, quando lhe deram uma descarga. (...) (pág. 97)

(...)  José Teixeira folgava de entremeter incidentes cómicos nas suas assaltadas. A uma dama de Carrapatelo dera ele um beijo de despedida, e à mulher do senhor Camelo perguntara de que lhe servia o dinheiro, se não podia comprar uma cara mais nova e menos feia

O senhor Bernardo José Machado, muito conhecido comerciante  do Porto, ia um dia para Cerva [Ribeira de Pena, no Alto Tâmega] , sua terra natal , e alcançara,  a distância curta do Torrão, um cavaleiro bem posto no seu corpulento cavalo, e acamardou-se com ele na jornada. Falavam vários assuntos, e caiu a propósito os perigos de jornadear por tais sítios infestados pelo terrível  Zé do Telhado. 

O cavaleiro mostrou-se também horrorizado pela hipótese de o encontrarem,  e ouviu da bocado  senhor Machado a história dos flagicídios do célebre bandoleiro.  Apearam  numa estalagem, e jantaram o mais lautamente que podia ser.  O cavaleiro mudara de estrada.  e despediu-se do senhor Machado, que lhe ofereceu os seus préstimos. Pediu o comerciante a conta à estalajadeira,  e soube que o outro sujeito pagara a despesa. Perguntou o viajante, quem era aquele cavalheiro, e a mulher respondeu que era o José do Telhado. 

É bem de ver que o senhor Machado, em vista do panegírico com que o brindara,  não foi muito a seguro de o topar adiante com outra cara, ocasionando lhe um facto novo para realçar a história. (...) (pág. 99),


(...) O libelo cerra a meda dos crimes do José do Telhado om a tentativa de evasão para reino estrangeiro sem passaporte. 

A morte de José, denominado o pequeno, por antifrase, não vem incluída na acusação.

José Pequeno era agigantadado de estatura, e  o mais cruel da malta, comandada por José do Telhado.

Custava muito ao chefe refrear-lhe o instinto sanguinário; mas com melindre o fazia,  porque o parceiro era o único de quem  ele se receava em luta de braço a braço.

Andava José Pequeno cogitando no expediente mais azado a livrar-se de perseguições,  e tentou-o o demónio a atraiçoar os companheiros. Foi a malta surpreendida, estando  ausente o denunciante. Comandava a força o destemido Adriano José de Carvalho e Melo, Administrador do Marco de Canaveses. 

Carregou tão brava a polícia sobre a chusma dos ladrões,  que lhes foi remédio a fuga. Aí recebei José Teixeira uma bala nas costas a qual, segundo ele diz, o fizera saltar dez passos avante contra sua vontade. A bala  produziu-lhe  na coluna vertebral um choque elétrico meramente. 

Ao outro dia, José Teixeira teve de evidência que seu companheiro o denunciara.  Ao anoitecer foi à Lixa [concelho de Felgueiras]  onde pernoitava o traidor, entrou-lhe em casa,  e disse-lhe:

− Não te quero matar â traição; previne-te  como quiseres, que um nós há de morrer aqui.

− Ou ambos!  − disse o José Pequeno, lançando mão da faca.

−  Ou isso ! −  redarguiu o José do Telhado,  sacando de uma tesoura. E acrescentou:

−  Hei de  cortar-te com ela a língua. 

A primeira arremetida que se fizeram, apagaram a luz da vela,  e arcaram peito a peito. Revolveram-se na escuridade um quarto de hora, rugindo alternadamente injúrias e pragas ferozes. 

José Teixeira já tinha um braço rasgado; mas José Pequeno expedira o último rugido pela fenda que a tesoura lhe abria na garganta. O chefe ergueu o joelho sobre o peito do cadáver, quando  os dois gumes da tesoura se encontraram ao través da língua que o denunciara. 

O homicida aparecer na Lixa ao outro, e disse a multidão parada à porta do morto:

− Se não sabem quem matou este traidor, aqui o têm.

 E passou adiante. obrigando o cavalo a garbosa upas. 

Coisa é digna de reparo, que o ministério público não desse querela contra o assassino. Bem pensada a irregularidade, dá de si que a moral pública, representada pela polícia criminal e administrativa, propôs um voto de gratidão ao matador do formidável celerado da Lixa. (...) (pp. 100-102)

In: Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II  Vol,  8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco,  Edição Popular, 54")~

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos / parênteses retos: LG)

Este obra está disponível em formato pdf, no sítio da Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa, 2020, 232 pp, edição de Ivo Castro e Raquel Oliveira,  distribuição gratuita. (Segue a 2ª edição, revista pelo autor, Porto, 1864.)

https://imprensanacional.pt/wp-content/uploads/2022/03/Memorias-do-Carcere.pdf?btn=red

__________


(**) Vd. José Manuel de Castro - José do Telhado- Vida e aventura, a realidade. a tradição popular. Ed. autor, 1980, 193 pp., il. (Tipografia Guerra, Viseu).

(***) Vd. Wikipedia: Na época(1852) era conhecido por Regimento de Granadeiros da Rainha, unidade de elite criada em 1842, responsável pela guarda pessoal da Rainha D. Maria II; em 1855, o regimento adopta a actual designação de RI2 - Regimento de Infantaria 2, com sede em Lisboa. Quando Camilo escreveu as "Memórias do Cárcere" já era RI 2,

(****) O "quarto" era um equena bala de chumbo, de forma angular.

(*******) Na época o "pinto" valia cerca de 480 réis. Também era conhecido como "cruzado novo".

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24826: Notas de leitura (1631): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Insiste-se que a entrevista concedida por Carlos de Matos Gomes se mantém como peça modelar para analisar o processo de descolonização da Guiné a partir da formação do Movimento dos Capitães e depois do MFA na região, o entrevistado explica as razões por que se ofereceu para ir para o Batalhão dos Comandos africanos, pretendia conhecer a estratégia spinolista que lhe estava subjacente no contexto da africanização da guerra e numa lógica conducente à possibilidade de algo com o PAIGC. 

Fala-se da rotina das operações, da complexidade dos problemas pluriétnicos dentro desta tropa de elite, retoma-se a génese e a estruturação do MFA, esclarece que havia uma demarcação entre um grupo contestatário de que ele fazia parte e a linha spinolista, muito pouco presente depois de Spínola sair da Guiné, em agosto de 1973; fala-se do que aconteceu em 26 de abril e da descolonização que envolveu os Comandos e os Fuzileiros. É sem margem para dúvidas um documento que merece ser compulsado com diferentes testemunhos de Carlos Fabião e com o livro de Sales Golias, sobre esta temática.

Um abraço do
Mário



Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Li pela primeira vez este texto que vem integrado na obra Vozes de Abril na Descolonização, com organização de Ana Mouta Faria e Jorge Martins, uma edição do CEHC – IUL, 2014, provavelmente no ano seguinte, e fiz texto para o nosso blogue. Correu muita água debaixo das pontes, não se podia imaginar que a questão tivesse arrumada, é obrigatório que haja outras perspetivas sobre a descolonização da Guiné, mas o facto é que esta entrevista se mantém modelar e de indiscutível historicidade. 

Primeiro, porque este oficial do Exército não foi desmentido minimamente quanto ao processo organizativo na Guiné do Movimento dos Capitães/MFA; nenhuma opinião veio contrariar o que ele escreve sobre os acontecimentos do dia 26 de abril, fenómeno inédito comparativamente ao que se passou em Angola e Moçambique; e numa altura em que se retoma a questão polémica dos Comandos Africanos, com alardes de mentira descarada e de escamoteamento do rigor dos factos, até em pretensas teses de doutoramento, este oficial do Exército relembra tudo quanto se passou ao nível da desmobilização do Batalhão de Comandos Africanos e das duas unidades de Fuzileiros Africanos, preto no branco. Razões, parece-me, que justificam voltar ao texto da entrevista de Carlos de Matos Gomes.

Prosseguindo o teor da entrevista, e já contextualizado o tempo e o modo da génese da formação do Movimento dos Capitães e da MFA na Guiné, Carlos de Matos Gomes é questionado sobre o percurso de Marcelino da Mata, responde sem hesitações:

“O Marcelino da Mata é uma pessoa superiormente inteligente, uma pessoa informada, reage sempre em busca do seu interesse, sempre! Ele sabe que foi utilizado de determinada maneira, por determinadas pessoas, para fazer determinadas coisas, fê-las e foi, sempre, obtendo recompensas. Ele age, claramente, como um homem que sabe que está envolvido numa guerra que o ultrapassou, e vai procurar os aliados que lhe são mais convenientes em cada momento. Como era um homem superiormente inteligente e também corajoso, não tem as lealdades deles e a admiração e respeito é por aqueles que ele considera iguais ou superiores a ele. Por vezes, diaboliza-se o Marcelino da Mata, mas ele é exatamente igual aos comandantes de guerrilha, porque vem exatamente do mesmo sítio, tem as mesmas lógicas, os mesmos comportamentos”.

Desvela seguidamente os tipos de operações em que esteve envolvido, destaca a reocupação do Cantanhez, a ida às matas da Caboiana, a operação Ametista Real. A partir da retirada de Guileje quando o Batalhão de Comandos intervinha já era em situações críticas, afirma, tornava-se imperativo levar o batalhão inteiro. Era a resposta ao agravamento da situação militar, passar-se de operações com 50 homens para operações com várias centenas. Tece observações aos aspetos da etnicidade no recrutamento das tropas africanas, os Comandos e os Fuzileiros africanos tinham por base as milícias, os pelotões de caçadores, as companhias étnicas e caçadores locais.

“Havia tipos que chegavam aos Comandos já com vários anos de permanência, iam aprendendo, iam falando, ganhando uma consciência de militares portugueses que era a tentativa que nós fazíamos. Nós integrámo-nos nessa corrente de fazer o Estado através das Forças Armadas, isto aconteceu em quase todos os países africanos e era também a ideia do general Spínola”.

Os entrevistadores procuram apurar se as diferenças étnicas se esbatiam nessas unidades de elite, obrigatoriamente pluriétnicas, o entrevistado responde:

“Era uma gestão feita em cima do gume da navalha. Tivemos esse problema, mas o PAIGC também o teve e acabaram por se matar uns aos outros. Por exemplo, tínhamos o primeiro grande comandante de uma unidade de Comandos, o João Bacar Djaló, que era Fula. Fez exatamente esse percurso, foi comandante de milícias, foi depois militar e depois foi para os Comandos. O esquema de uma companhia de Comandos comandada por João Bacar Djaló tinha alguma coisa que ver com a organização militar portuguesa, com as Forças Armadas portuguesas, mas tinha muito que ver com a organização da sociedade islamizada.

Ele funcionava como comandante de Companhia, mas também como mestre, tinha um conjunto de discípulos que depois ia premiando. E como premiava? Promovia-os a furriel e depois promovia os furriéis a sargentos. Discípulos esses, que lhe pagavam, como se pagava na idade média, como nas corporações, e isso era assim em vários lados”
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Depois de expor a sua visão sob a composição étnica existente no seio de batalhão de Comandos Africanos, e depois de recapitular a génese e a estruturação do MFA na Guiné, chegamos ao 25 de abril, as Forças Armadas na Guiné aderiram maciçamente:

“O 26 de abril estava previsto e pensado para, caso houvesse um problema grave aqui em Portugal, a ação de alternativa teria de ser na Guiné. Estou convencido de que, claramente, o general Spínola não estava interessado naquela ação na Guiné. Fizemo-lo sabendo isso, porque assim tornávamos irreversível o processo da descolonização e marcávamos uma posição no processo”.

E elenca as diligências efetuadas nas alterações dos Comandos, e abre espaço para a reflexão sobre as tropas africanas:

“A grande questão que se colocou logo desde o início era: há aqui dois exércitos. Há um exército africano da Força Africana de Spínola, que tinha um batalhão de comandos, as companhias africanas, as milícias, havia à volta de 12 mil homens e o PAIGC tinha menos. A questão era que estes homens não tinham perdido a guerra militarmente, combatiam de igual para igual. Eles, os nossos, não se sentiam, de modo nenhum, derrotados no campo de batalha. E nós, oficiais dos comandos – depois até fiquei como comandante – sabíamos disso e sabíamos que era muito difícil e seria sempre muito difícil estabelecer uma forma de convivência.

Eu penso que nos acordos, no Acordo de Argel está referida a situação dos militares e nós confiávamos que isso iria correr bem. Confiámos! Foi sempre dada a oportunidade a esses militares, principalmente aos quadros e aos tipos que tinham mais impacto, que tinham combatido mais anos contra o PAIGC de que, se quisessem, vir para Portugal. O que é curioso é que não optaram por isso e a mim não surpreendeu, porque sabia mesmo no Batalhão de Comandos, que era a elite das elites, 60 ou 70% daquela gente tinha contactos com pessoas do PAIGC”
.

Havia o entendimento entre os responsáveis portugueses e as principais figuras dos comandos africanos, que a convivência seria possível no futuro. E segue-se a conclusão dramática: 

“Daí que o processo trágico e dramático da eliminação destes homens, militares portugueses guineenses, penso eu, tenha sido uma fuga para a frente da elite dirigente do PAIGC. Esta elite vai encontrar sempre um inimigo externo para justificar as lutas pelo poder interno”

Foram o bode expiatório naquela tensão permanente entre cabo-verdianos e guinéus. O entrevistado recorda declarações de Luís Cabral que deplorava ter encontrado os cofres vazios, uma administração sem quadros, isto quando tivera oportunidade de negociar um período de coabitação com Portugal, até ganhar foros de autonomia, não quiseram, queriam ver-se livres da entidade colonial por pura ambição da chegada ao poder.

O Batalhão de Comandos foi extinto, ficara escrito que iriam ser reintegrados numas novas Forças Armadas, houve quem recusasse, caso do tenente Jamanca que foi pouco depois abatido.

E aqui se dá por concluído o essencial do texto da entrevista de Carlos de Matos Gomes a uma equipa de universitários que quiseram ouvir protagonistas que tinham estado na primeira linha no processo da descolonização nos 3 teatros africanos.


Carlos de Matos Gomes
Entrada do aquartelamento do Batalhão de Comandos da Guiné
Insígnia do Destacamento de Fuzileiros Especiais 21, a que pertencia Domingos Demba [Ensá] Djassi, 2.º Sargento
2.º Sargento Domingos Djassi
Capitão João Bacar Djaló em Catió, ainda tenente. Foi o 1.º comandante da 1.ª Companhia de Comandos Africanos
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24820: Notas de leitura (1630): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (1) (Mário Beja Santos)