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sexta-feira, 18 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26700: Notas de leitura (1790): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: As turbulentas duas primeiras décadas na Guiné, ainda é difícil falar dela como colónia (6) – 1 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2025:

Queridos amigos,
Não surpreendo ninguém quando escrevo, na esteira dos comentários aqui expostos por Philip Havik, que naquelas duas primeiras décadas do século XX a Guiné não era ainda propriamente uma colónia, as tensões eram profundas, havia grupos constituídos, interesses instalados poderosíssimos. Haverá, no entanto, quem se mostrará estupefacto com a leitura que Havik faz do peso cabo-verdiano na Guiné, e certamente determinante no comércio e na administração, merecendo das populações nativas uma desconfiança e uma crescente hostilidade. Não será por acaso que o investigador aludirá à referência de que estas tensões irão pesar no período da luta pela libertação, procurava-se por parte dos guerrilheiros alterar completamente uma história de longa duração de hostilidade, viu-se que o quadro ideológico vitorioso, onde pesavam os cabo-verdianos, foi de curta duração. Toda esta leitura que o investigador faz, rigorosamente documentada, é suscetível de introduzir um elemento novo no estudo da Guiné colonial e pós-independência.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
As turbulentas duas primeiras décadas na Guiné, ainda é difícil falar dela como colónia (6) – 1


Mário Beja Santos

Na publicação Caminhos Cruzados em História e Antropologia, Imprensa de Ciências Sociais, 2010, Philip Havik publicou o ensaio Esta ‘Libéria Portuguesa’: mudanças políticas e conflitos sociais na Guiné (1910-1920), lança um olhar esclarecedor sobre uma colónia que ainda não o era, num tempo em que na própria sociedade portuguesa havia quem opinasse que se devia despachar território tão incómodo, ou entregá-lo a empresas comerciais, com direitos de exclusividade, de modo a não trazer mais inquietações ao erário público. Havik dá-nos um contexto de uma sociedade em permanente tensão, uma conflitualidade que era aproveitada não só por potências estrangeiras, mas pelos interesses económicos instalados.

A cultura do amendoim merecera rasgados elogios, parecia Sol de pouca dura devido às guerras entre sociedades africanas, particularmente no Forreá. As casas de comércio criticavam a intervenção militar, ainda por cima não se traduziam em ganhos territoriais. Quem administrava ou recebia a incumbência de estudar a Guiné punha sempre no papel que era preciso reorganizar tudo antes que as nações poderosas tomassem conta do território. A França chegou mesmo a admitir que a compra da Guiné Portuguesa, ou a sua anexação era a melhor das soluções. As críticas internacionais também se prendiam com a fuga de populações rebeldes do Senegal para a colónia portuguesa, além do tráfico de armas e continuação da escravatura. Era nas missões luso-francesas da delimitação das fronteiras que se tornava bem visível a continuada falta de controlo e de conhecimento das zonas limítrofes por parte das autoridades portuguesas. Ninguém desconhecia que continuava a escravatura doméstica. Na opinião das autoridades inglesas, a Guiné era a colónia com a pior administração em África, a seguir à Libéria. Os militares portugueses também não poupavam críticas ao abandono e inoperância. Qualquer governador recém-chegado denunciava o estado de abandono do território, a falta de ocupação militar e os movimentos de rebelião sempre latentes.

Chegada a I República, não faltaram petições e diatribes contra os governadores nomeados por Lisboa; tudo se agudizou com as campanhas para eleger deputados, o que deu origem a fações. Vem depois o impacto da guerra, o encerramento das casas alemãs, a diminuição da exportação da borracha, amendoim e coconote, cuja produção estagnou, aumentando ainda mais o défice. Os grandes comerciantes locais queriam manter o privilégio de serem eles os intermediários, queriam manter as suas relações preferenciais com os indígenas, vê-los afastados o mais possível das autoridades. Os comerciantes nacionais apelavam para que o Governo proibisse casas estrangeiras com as populações do interior, insinuava-se que a Guiné era mais uma colónia estrangeira do que uma colónia portuguesa, à frente desta contestação também estavam os cabo-verdianos; e os comerciantes franceses queixavam-se que estes intermediários locais colaboravam com os alemães.

Falhou a tentativa do Governo de atribuir grandes concessões a empresas portuguesas. E quando aumentou de intensidade a campanha de pacificação as várias fações envolvidas deram sinais de conflito. Havia dois grupos, os cabo-verdianos que ocupavam lugares de destaque na administração e no comércio, e os grumetes que habitavam os principais portos e serviam como principais intermediários no comércio fluvial. Todo este conflito se manifestou bem vivo até à década de 1930, e virá a ser repescado no contexto da guerra colonial. Como observa Havik, enquanto os cabo-verdianos são tratados como “civilizados”, os segundos eram alvo de uma tremenda desconfiança das autoridades por causa da sua proximidade com as populações nativas. A crítica ao peso cabo-verdiano manifestou-se, por exemplo, quando se deu a substituição de um juiz europeu por outro de origem cabo-verdiana, o governador de então protestou; um outro governador informava os seus superior na metrópole que a Guiné estava contaminada de cabo-verdianos e de muitos pretos que se dedicavam unicamente ao roubo e à vadiagem, mas por outro lado também criticava os Grumetes, que dificultavam a missão civilizadora do europeu. Acusados de jogar com um pau de dois bicos, era questionada a eficácia e a lealdade dos Grumetes, foi notório até à década de 1910. Quando foi nomeado o novo chefe militar para comandar as operações na Guiné em 1912, abandonou-se a aliança com os Grumetes a favor de mercenários vindos das colónias francesas, será esta a estratégia que o capitão Teixeira Pinto adotará até à campanha na ilha de Bissau, em 1915. Houve quem entendesse que se estava a montar uma guerra surda dos Grumetes contra os mercenários, com o apoio dos cabo-verdianos.

Será esta luz que se deve procurar compreender o papel da Liga Guineense, “uma assembleia dos nativos da Guiné”. Campeava o favoritismo, os favorecimentos ilícitos; o chefe da alfândega de Bissau era ao mesmo tempo tesoureiro da mesma e diretor dos correios. Veio a inspeção, só encontrou dificuldades, como anota o investigador. As muitas rasuras nos registos mostraram a facilidade com que se substituía a fórmula do despacho por outro, sendo os valores dos despachos sempre inferiores aos verdadeiros, de vez em quando menos de 50 por cento. Não havia arquivos, favoreciam-se certas casas de comércio que recebiam as suas encomendas sem qualquer fiscalização, só pagando aquilo que declaravam. Até os capitães dos navios que sabiam destas práticas entregavam os documentos incompletos ou em mau estado, sem serem incomodados.
No relatório de inspeção escreve-se:
“A Guiné foi durante muitos anos um feudo de alguns influentes, que dispunham a seu bel-prazer de tudo e todos, e aqueles que não acediam aos manejos eram lançados à margem, sendo inúteis todas as suas reclamações. [...] Nenhum critério, nenhuma justiça havia nas colocações de pessoal, e assim para os piores lugares eram atirados aqueles que não tinham o valimento de algum poderoso.”

Havia, é certo, denúncias feitas por comerciantes lesados sobre negócios ilícitos conduzidos por funcionários de alfândega. Tendo ainda em conta o relatório deste inspetor, o único europeu que trabalhava nas alfândegas fora discriminado injustamente com base no ódio de cor. O chefe do círculo aduaneiro da Guiné, que é descrito pelo inspetor como um cabo-verdiano, comprazia-se em aviltar o funcionário que não é da sua cor ou da sua raça.

E Philip Havik termina assim esta leitura sobre as tensões sociais:
“No interior que ainda estava em grande parte sob o domínio das sociedades africanas, os comerciantes também dependeram em larga medida das relações de proximidade e de parentesco que os funcionários com estes mantinham. Porém, para a maioria das pessoas era ‘muito arriscado sair fora da praça, não podendo os negociantes entreter com o gentio outras relações comerciais que não sejam as realizadas em Bissau’.”

Ponte-cais de Bissau, construída pelo governador Carlos Pereira na década de 1910
Um aspeto do porto de Bissau com o Ilhéu do Rei ao fundo, 1908
Imagem da Imprensa Nacional em Bolama, fotografia de Francisco Nogueira, na obra Bijagós: Património Arquitetónico, Tinta da China, com a devida vénia
Quando a capital da Guiné ainda possuía alguns sinais de esplendor
Mapa holandês de 1727 chamando Negrolândia na faixa acima do que seria a Guiné

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 4 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26651: Notas de leitura (1786): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Na Terra do Novo Deus: O general Henrique Dias de Carvalho na Guiné (1898-1899) (5) – 2 (Mário Beja Santos)

Último post da série de 14 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26686: Notas de leitura (1789): "Quebo, Nos confins da Guiné", de Rui Alexandrino Ferreira; Palimage, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26699: Tabanca da Diáspora Lusófona (32): Bom dia, desde a Eslovénia (João Crisóstomo, Nova Iorque)


1. Mensagem de João Crisóstomo (na foto à esquerda com a sua Vilma, na Eslovénia):


Data - sábado, 12/04/2025, 08:33


Meus queridos filhos Cristina e John Jr, caríssimos Rui Chamusco e Luís Graça,

Já estamos na Eslovénia. Fizémos uma viagem sem novidades exceto os "sempiternos atrasos" e estamos já completa e perfeitamente adaptados , sem qualquer vestígios de "jet lag”.

Está um tempo maravilhoso e a Vilma "está nas nuvens” por se encontrar na terra onde nasceu e com os seus queridos, especialmente as suas queridas manas. Como eu que tive nove irmãs mas nem um irmão sequer, ela também só tem irmãs.

O almoço de hoje vai ser o de boas vindas e reunião da família num lugar paradisíaco, aliás como toda a Eslovénia. Este fica junto a um pequeno lago a pouco mais de meia hora daqui, onde costumávamos ir a pé. Agora ainda aí vamos frequentemente, mas só de carro, que as mazelas da idade já não me permitem longas caminhadas.

Até eu, que tenho sempre tanta dificuldade em dormir, hoje consegui dormir a noite inteira. E agora o acordar foi também muito excepcionalmente bom: primeiro vi uma mensagem do Rui -- Obrigado meu caríssimo irmão! ---chegada durante a noite, desejando-nos uma boa viagem e anunciando ter deixado Boebau e suas crianças e a escola que nos é tão querida.

Sei bem o que sente, pois como em telepatia, o meu coração também se foi abaixo das canelas. E como ele tive de dizer para mim mesmo “Corações ao alto”! E que seja o que Deus quiser.

E depois recebi , enviada por e-mail, uma mensagem dum bom amigo e proeminente português na Califórnia, Miguel Ávila, que entre outros lugares de destaque ocupa o de editor do prestigioso jornal bilingue “Portuguese Tribune”/ “Tribuna Portuguesa” e é também membro da "Sousa Mendes US Foundation”, e vice-Presidente do “ Comité Dia da Consciência”.

E porque vocês são meus filhos (e aos outros dois, se fossem meus irmãos, eu não lhes poderia querer mais ou melhor), sem intuitos de ridículas presunções, partilho o que me enviou que não podia ser mais gratificante:

Primeiro um artigo que escrevi e enviei em novembro passado sobre o problema das armas nucleares. Pensei que não o tinham considerado relevante para ser incluido no jornal, mas afinal não só foi publicado como verifico que dele fizeram "artigo de opinião”.

E o segundo, a "reportagem da inauguração do museu que deu origem às nomeações para Melhores do Ano 2024.” Em ambos os casos a minha colaboração e contributo não foram insignificantes pois que me valeram a distinção de "Homem do ano 2024."

Embora o artigo tenha sido publicado em ambas as línguas, eu copio apenas a reportagem em Português.

Um abraço com carinho e saudades,
Dad/ João C





Recorte de dois artigos da "Tribuna Portuguesa" que o João Crisóstomo nos remeteu, e que publicaremos oportunamente na sua série "Tabanca da Diáspora Lusófona".

(...) "Tribuna Portuguesa também conhecido por The Portuguese Tribune é um jornal bilingue português-inglês, quinzenal, editado na cidade de Modesto na Califórnia. É actualmente o único jorna(...) l português da Costa Oeste dos Estados Unidos da América" (Fonte: Wikipedia)

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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26659: Tabanca da Diáspora Lusófona (31): Bom dia, desde Nova Iorque (João Crisóstomo, régulo)

Guiné 61/74 - P26698: In Memoriam (544): Carlos Matos Gomes (1946-2025): o último adeus, anteontem, no cemitério do Alto de São João ... O Hélder Sousa representou condignamente a Tabanca Grande.





Lisboa > 25 de abril de 2020 (?) >  Carlos Matos Gomes (1946-2025) e a filha Carla. Cortesia da página do Facebook do nosso camarada, que se despediu da Terra da Alegria no passado dia 16. A notícia da sua morte, dada pela sua filha, teve mais de 2,5 mil comentários e cerca de 500 partilhas.
 
Tinha 4,3 mil amigos no Facebook, 230 em comum. Era amigo do Facebook da Tabanca Grande, mas não integrava o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Mensagem do Hélder Sousa, nosso colaborador permanente, provedor do blogue da Tabanca Grande:

Data - 17 abr 2025 18:07

Assunto -O funeral de Carlos Matos Gomes

Caros amigos

Na passada terça-feira foi indicado que o velório desse nosso camarada decorria das 19:00 às 23:00, salvo o erro.

Mas não fui lá, pois estive na tomada de posse dos elementos eleitos para os diversos Órgãos  da minha Ordem profissional, a OET (Ordem dos Engenheiros Técnicos), onde também preenchi um cargo.

Isso decorreu na Sala Macau da Fundação Oriente. Finda a cerimónia, seguiu-se um jantar.

No dia seguinte, tinha sido divulgado que as exéquias iriam ter lugar às 11:00, mas depois veio uma informação que seria a partir das 13:00, finda a qual o corpo seguiria para o Crematório do Cemitério do Alto de S. João.

Desloquei-me então para Lisboa e fui direto ao Cemitério, aguardando por lá, em conversas de circunstância com algumas pessoas presentes, a chegada do caixão, o que ainda demorou algum tempo e sob um tempo de chuviscos.

Foi formada uma guarda honra que disparou três salvas à entrada do caixão. Essas salvas foram de algum modo impressionantes dado o "teto baixo", o que fez ecoar fortemente na parada do Alto de S. João.

Da entrada ao Crematório é uma pequena distância, percorrida atrás da viatura.

Houve uma "encomendação" por intermédio de um oficial padre (não registei a sua patente mas creio que major). Finda a mesma, tomou a palavra o coronel Vasco Lourenço, fazendo o elogio fúnebre e exaltando as qualidades e o contributo que o coronel Matos Gomes deu para a Democracia e depois o Dr. João Soares, na qualidade de "civil", amigo pessoal, relembrando também peripécias vividas em comum.

No final cantou-se a "Grândola, Vila Morena" e depois o Hino Nacional.

Ao despedir-me da filha, disse que estava ali em meu nome e também em nome do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Boa "passagem" para vós.

Abraços, Hélder Sousa

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Nota do editor:

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26697: Álbum fotográfico de João Moreira (ex-Fur Mil Cav da CCAV 2721 - Olossato e Nhacra, 1970/72) (24)

Foto 188 > Abril de 1971 > João Moreira junto ao memorial no destacamento do Maqué, entre Bissorã e Olossato.
Foto 189 > Abril de 1971 > Destacamento do Maqué > João Moreira
Foto 190 > Abril de 1971 > Destacamento do Maqué > João Moreira  junto ao Rio Maqué
Foto 191 > Abril de 1971 > Destacamento do Maqué > João Moreira na ponte do rio Maqué
Foto 192 > Abril de 1971 > Olossato > João Moreira
Foto 193 > Abril de 1971 > Olossato > João Moreira
Foto 194 > Agosto de 1971 > Nhacra > João Moreira
Foto 195 > Agosto de 1971 > Nhacra > João Moreira com um sagui no ombro

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 10 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26672: Álbum fotográfico de João Moreira (ex-Fur Mil Cav da CCAV 2721 - Olossato e Nhacra, 1970/72) (23)

Guiné 61/74 - P26696: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (39): a Páscoa de antigamente























Quinta de Candoz (Paredes de Viadores, Marco de Canaveses) > 10 e 12 de abril de 2025 (exceto a foto da Serra de Montemuro, com neve, que é de 15 de abril) > A primavera, a Páscoa, o eterno retorno... A esperança, sobretudo a esperança.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A Páscoa de antigamente

por Luís Graça


Dantes, quando ainda ninguém sabia a desgraça que aí vinha com a covid-19, não havia Páscoa sem foguetes... nem compasso. E muito menos ainda sem o forno a lenha, aceso, com duas horas de antecedência, e sem o sortilégio do fogo de artifício. 

Não havia Páscoa, enfim, sem o arroz de anho assado no forno.

Não, não havia Páscoa, sem as cerdeiras (ou cerejeiras) florirem, e sem as videiras começarem a sorrir, e sem os abraços compridos e efusivos de quem chegava do Porto e de mais longe
. Ana, Bagana, Rabeca, Susana, Lázaro, Ramos, na Páscoa estamos, já dizia o provérbio popular. 

Na Páscoa estávamos todos. Agora já não, vamos morrendo, hoje uma, amanhã outro.  E será que os filhos e netos vão-nos ajudar e recuperar o saldo demográfico negativo ? Oxalá, Enxalé, Insh' Allah! 

Não, não havia Páscoa, sem os foguetes, nem alegria estampada na cara e  irradiando do coração das gentes de Entre Douro e Minho... 

Não, não havia Páscoa, sem a famosa freima que se apoderava das gentes cá do Norte, na véspera dos pequenos grandes acontecimentos, como os trabalhos coletivos (a vindima, as serviçadas...), ou os festejos (o casório dos filhos, o Natal, a festa da Senhora do Socorro ou a do Castelinho...).

Antes da pandemia, antes da era covid-19, com a crise ou sem ela, e até mesmo depois da proibição do lançamento de foguetes de cana...

Ó vai ou racha, rapazes!, que na Quaresma engordava-se o anho para a grande matança da Páscoa...

Tudo isto, quando o Natal tinha o seu pinhão, e a Páscoa o seu tição, e a salgadeira estava atulhada com o porquinho que era o governinho da casa mas também uma das causas principais dos ACV que matava a gente...

Depois veio a maldita covid, e passaste a ter  a triste Páscoa do confinamento,  do "take away", e das grandes superfícies, com filas à porta, e a malta toda mascarada, guardando a devida distância uns dos outros... 

Mais a autoestrada que te levava ao Norte, vazia e rigorosamente vigiada. E a  GNR a cavalo a patrulhar as praias, as praças e os jardins e o ajuntamento do povo que precisava de apanhar sol como o lagarto. Até a casa de Deus fechou, por precaução. Deus, afinal, também é previdente.

Em 2009, ainda te lembras, cada dúzia de foguetes custava a módica quantia de 30 euros. Mas no domingo de Páscoa (ou na segunda, que no antigo concelho de Bem Viver, a Páscoa eram dois dias e o carnaval no Rio eram três, jurava o brasileiro de torna-viagem), e por ocasião da visita do compasso, o povo perdia a cabeça e armava-se em fino e em rico para provar à Casa do Fidalgo quem tinha porra e cagança...

O raio da covid não olhava a senhorios e rendeiros, a ricos e a pobres, e, aliada da morte, estava à espreita mas não esperava. Não poupava novos e velhos, rapazes e raparigas, homens e mulheres.

Quando o compasso chegava a uma casa, o fogueteiro sinalizava a sua presença... Os vizinhos, mais à frente, a 100, 200 ou 300 metros,  nesta região de povoamento disperso, preparavam-se, com grande excitação, muita freima,  para a cerimónia... 

Já as portas estavam abertas de par em par, a mesa posta com a melhor toalha de linho do bragal, e o caminho de cabras atapetado de urze e pétalas de flores bravias.... 

Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou!

Todos, mal-enjorcados nos seus fatos domingueiros, os camponeses do Norte, as mãos, calejadas,  sem jeito,  erguidas ao céu quando era preciso rezar a um deus maior. 

Já não importava se a Páscoa era no domingo depois da primeira lua cheia do equinócio da primavera,  que tu, em passando a covid-19,  perdeste a conta aos dias e aos meses e anos do calendário.

 2025, o "annus horribilis" de 2025,  como o tempo passa! Como passou o de 2020, e este também há de passar, figas,canhoto!

Tradição rica de significado socioantropológico, hoje em vias de desaparecer, a tua Páscoa nortenha que adotaste, há meio século. 

Cristo ressuscitou, aleluia, aleluia!, estamos vivos e bem de vida, dizia o da casa, abrindo as portas aos vizinhos, parentes e amigos. 

Bebam e comam qualquer coisinha, carago, que a casa é cheia e farta: há doce da Teixeira e pão de ló dos Lenteirões, e uma cachão de anho e arroz, se a alguém do compasso já der a fraqueza a esta hora da manhã!... 

Domingo da Ressurreição, carne no prato, farinha na mão, que na Santa Feira Santa comia-se o sável do rio Douro. 

Acabava-se o jejum e a abstinência, para os pobres que não tinham bula. Burla, resmungava o padre Mário, expulso da Guiné como capelão. 

Não sejais tolos, que dos pobres será o Reino dos Céus.

Eram, afinal, dias de festa, os últimos da Semana Santa, dias de comes e bebes e foguetório, tudo misturado com a religiosidade pagã e cristã, que durante séculos formatara corpos e almas. 

Folgai, meus filhos,  enquanto puderdes, que noutra hora deveis de chorar, lembrava o padre Agostinho.

À noite, do terraço da varanda de Candoz, assistia-se, de borla, 
ao espectáculo único da largada de fogo de artifício, quando o compasso recolhia, cansado e suado,  depois de andar por montes e vales,  estradões e socalcos, pontões e ribeiros, o homem da cruz à frente, e a seu lado o puto, de sobrepeliz, a tocar a sineta, já meio rachada. E a canalha atrás, para apanhar as canas dos foguetes e as sobras das mesas, os rebuçados dos pobres e as amêndoas dos ricos.

Depois da visita do compasso, e bem arrotado o arroz de anho assado no forno, era o espetáculo talvez mais aguardado do ano, a disputa em fogo de foguetório entre cada uma das freguesias circunvizinhas ali em frente, naquele cenário de presépio. 

Saúde e pouca vida, que Deus não dava tudo, resignava-se o abade.

Olhai, Paredes de Viadores, olhai, Passos de Gaiolo, que eram do Marco!... E já os de Mesquinhata se adiantavam e agigantavam, mais os de Santa Leocádia, Grilo e Ribadouro, ali em frente, mas já do concelho de Baião, que a linha do caminho de ferro do Douro separava...

Todos, afinal, a competir pelas luzes da ribalta do céu, e a mostrarem-se mais cristãos e mais valentes do que no ano anterior. E com um sorriso matreiro, e uma pontinha de vaidade, bem mostrados aos que se sentavam na plateia deste vale de lágrimas que sempre fora aquela terra de camponeses,  rendeiros e cabaneiros, jornaleiros, trolhas, carpinteiros,  ramadeiros, trabalhadores do milho, da vinha e do centeio... 

A natural vaidade humana de quem conseguira sair do círculo da pobreza, e que este ano já se chegara para a frente, com uma nota de conto.

Deus fizera o mundo e as quatro estações de Vivaldi, e os solstícios do inverno e do verão, e os equinócios da primavera e do outono, só não mandara anjos para ajudar a plantar, regar e mondar o milho e a dar de comer ao tourinho, que era metade do patrão (que, ele, "mandjor da tropa", coitado,  também lá andava a mourejar por terras de  África na defesa da Pátria.)

Havia palpites, críticas, comentários, exclamações... sobre a quantidade e a qualidade do fogo de cada freguesia. E no final Paços de Gaiolo era o vencedor...

Alguém tinha que ser o vencedor, garantia o padre Agostinho, que no céu, meus filhos, a seleção sempre fora, desde os primórdios, mui apertada, e nem todos poderiam ficar à direita de Deus Pai, nem ter um anjo à sua cabeceira

Havia filhos e enteados, o mundo já nascera assim,  torto e aleijado, mas porquê não mo pergunteis, que eu não sou papa, nem bispo, apenas um humilde servidor de Nosso Senhor, um pobre pároco de aldeia.

Era a vida que, afinal, na Páscoa, triunfava sobre a morte, naquelas terras de camponeses do vale do Sousa e do Tâmega, que chegaram a alimentar um milhão de portugueses durante séculos e a ajudar a dilatar a fé e o império, sem saber ler nem escrever, e muito menos o latinório aldrabado do padre Agostinho. Bom homem, o que não quer dizer que fosse santo.

Na era da covid-19, deixou de haver  Páscoa, compasso, fogo, forno. Só o fogo do inferno, que esse continuava a arder, por mor dos pecadores, para seu exemplo e temor. 

Nem abraços nem chicorações, só quando muito "abracelos... Uma tristeza, as casas fechadas, mortos os velhos,  cheios de mazelas os menos velhos, tristes e desamparadas as viúvas, desconsolados os órfãos, famílias de desvairadas gentes espalhadas pelas diásporas.

No passado, ao almoço, não podia faltar o arroz de forno, que, em cada ano que passava, estava sempre melhor do que o do ano anterior. Davam-se gabadelas às cozinheiras cuja arte e engenho a idade ia apurando.

Ou então era tudo devido simplesmente à saudade destes sabores da infância e da tradição. E a conversa girava, no fim do repasto,  sobre o anho e o arroz dos idos anos em que a gente era canalha de pé descalço, no tempo em que se vendiam os ovos aos da cidade para comprar a sardinha para três. E o osso era disputado à mesa. 

Oh meu pai, chuche-o e dê-mo!

Depois até o raio da covid-19, diziam, tirava o olfacto e o paladar  às cozinheiras...O tal segredo, o dedo pró cozinho!... E já o pito não era pito, era frango de aviário, desconsolado, diziam-os homens, matreiros e galhofeiros.

Podia chover, que em abril águas mil, mas a água que brotava das minas e da levada de Covas, e que regava os campos de milho, não apagava o fogo da paixão da vida, nem estragava o gosto pelo folgar dos corpos, e o rebolar na cama de palha de centeio, o forno aceso, o folar para os afilhados, sua benção, padrinho!, o pão de ló dos Lenteirões, o doce da Teixeira,  a aletria, os foguetes a estalar no ar, alto e longe, a caneca de porcelana, que luxo!, por onde se emborcava o vinho, verde tinto, da Carreira Chã, com o travo adstringente do jaqué.

Os parentes e os amigos, alguns vindo de longe, da terra dos mouros, o vinho verde novo que jorrava da pipa e alegrava os corações, a canalha numa correria para apanhar as canas dos foguetes...

E os cães a ladrar!... 

Mas até os cães havia morrido. Tal como o padre Agostinho. E as velhas casas de granito se cobriram de musgo e as janelas de teias de aranha e as silvas galgaram os telhados. E os castanheiros secaram...E as japoneiras galgaram o telhado.

O compasso era tradição minhota e duriense, diziam-te. Tenderá a acabar, há muito profetizavam os sociólogos da desgraça e da mudança.

A sua origem remontaria à época dos jacobinos, mata-frades,
à desarmotização dos bens de mão-morta que não poupou os passais, provocando a pobreza do senhor abade,  que, sendo filho de Deus, também tinha de comer... e "boer". E se ele comia e bebia, que nem um abade!...

Bem pregava, afinal,  frei Tomás, fazei o que ele diz, não o que ele faz.

O compasso pascal seria a forma expedita de compensar a perda de rendimentos do pároco. As parcas esmolas que as famílias punham no saco do compasso, no final da visita, revertiam originalmente para o pé-de-meia do padre...

Ah!, mas até os padres e as freiras morriam, em tempo de peste e de covid-19, lia-se na gazeta de Lisboa. E o teu vizinho da porta da frente, que vivia na Paris dos portugueses, coitado, também lá se foi, telefonou-te, chorosa, a viúva. E mais o fulano e o sicrano. E mais este e aquele outro. 

Reuniam-se a desoras no Tasco do Alto, entrando furtivamente pela porta traseira. Para uma disputada partida de dominó, ou uma suecada, um petisco e uns tintóis. Que um home dava em doido trancado em casa,  ou a trabalhar sozinho no campo, dias e dias sem trocar uma palavra com ninguém,  nem com a cara-metade, que só chorava e rezava por mor dos  filhos, lá longe, pró Porto, Lisboa, Suíça. 

Já nada era como dantes, desde que o mundo que tu conheceras, começara a soçobrar.

A visita pascal era um pretexto também para a afirmação social, o exibicionismo dos vizinhos e parentes mais ricos, alguns que haviam retornado de França, se não ricos, remediados, pensionistas  das "mutuelles" e da "sécurité sociale", e que eram capazes de gastar uns bons contos de réis em foguetório...

Já não havia contos de réis, é verdade,  nem lendas e narrativas de brasileiros que haviam feito  fortuna no Novo Mundo.

Naquele  ano da desgraça de 2020 restava-te a saudade, a ti e à famelga!... E as fotografias e os vídeos de antanho que se partilhava pelas redes sociais... Valeram-nos, ao menos, o Zoom e o Skype e outras plataformas que ajudaram a gente a iludir a solidão... em plena
covid-19 que nos confinava e nos emboscava a todos. 

Mas também valeu-nos a esperança de que, no fim, iríamos, coletivamente, de  mãos dadas, triunfar sobre aquela maldita pandemia, como triunfámos, dolorosamente embora,  sobre a a lepra, a varíola, a cólera, o tifo, a pneumónica...

E a peste de que Deus nos livre!... 

E como triunfámos e triunfaremos sobre todas as ditaduras impostas em nome de Deus, e do Diabo, pelos seus alegados representantes na terra. 


© Luis Graça (2021). Revisto 18 de abril de 2025.
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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26665: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (38): Às vezes este país quase perfeito e sem mácula

Guiné 61/74 - P26695: Histórias de vida (59): O meu amigo A..., do Café Cenáculo, no Porto, e depois alferes da Cheret no QG/CCFAG (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

 


Praia de Vila do Conde, 1963...


Vila do Conde, Av Brasil, 17/3/2020...


Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2025). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar de: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Histórias de vida > O  meu amigo A...,  do Café Cenáculo, no Porto, e depois alferes da Cheret no QG/CCFAG

por Virgílio Teixeira



O Café ainda existe, 64 anos depois de abrir. Abriu portas no dia 11 de novembro de 1961, já com início da guerra em Angola, e um mês e tal antes da invasão do Estado Português da Índia em 18 de dezembro de 61.

Esse amigo, 3 anos mais novo que eu, era de boas famílias, burguesia do Porto, mas ele próprio era um bocado desbocado, diferente de todos nós que ali frequentávamos o Café para estudar, tendo ainda hoje várias placas nas paredes dos diversos cursos universitários que por lá fizeram em parte a sua vida, tal como havia em muitos cafés do Porto, sem esquecer o Piolho, o Progresso, o Ceuta, o Avis, e tantos outros.

O A...  (omito o seu nome por razões óbvias) estudava engenharia no ISEP (Instituto Superior de Engenharia do Porto), e já tinha a sua panca acentuada antes de chegar à Guiné.

Era o alferes miliciano A... L... que pertencia à Cheret – para quem não sabe, como eu não sabia, estava ligado a encriptação e desencriptação de menagens – e tem muitas histórias de conseguir pôr as transmissões do IN à volta da cabeça, com sucessivos códigos novos
. (Cheret é o acrónimo de "Chefia do Serviço de Reconhecimento das Transmissões".)

Isto porque um "cheret" anterior a ele, mas furriel miliciano, teria sido capturado, e isso significava  que o mais provável era ter passado tudo para os seus carcereiros. 

Estes combatentes não usavam armas, nem faziam serviços, estavam ligados ao QG/CCFAG– Rep não sei quantos,  das transmissões ou informações. Nem lhes era permitido ir em colunas ou outros meios de transporte terrestes ou fluviais, só por avião. 

Esteve em Bissau, depois em Catió e finalmente em Piche, quando aquilo já estava muito feio, já não era nada como no meu tempo, em que ia a Piche em colunas à boleia, só para conhecer melhor o que era a terra que me viu de G3 e farda camuflada.

Este colega e amigo, como estamos numa de "piadas de caserna", tenho dele uma de partir a moca. 

Quando o encontrei em Bissau, talvez dezembro de 67, eu não sabia que ele tinha ido para lá, encontro-o na Pensão da Dona Berta, acompanhado com a sua jovem esposa.

Conta ele que, depois de mobilizado, nada disse em casa, nem nem ele nem a namorada, os pais eram austeros e gente de dinheiro. Ele namorava a rapariga, e antes de sair, casou sem conhecimento de nenhum dos familiares de ambas as partes, não souberem de nada, só quando lá estavam em Bissau deram notícias.

Então ele não esperou pelo seu embarque gratuito, comprou bilhetes da TAP e lá foram eles para Bissau, onde passaram a sua Lua de Mel na Pensão da Dona Berta.

Andou assim uns 15 dias e nunca se apresentou no QG,  como seria normal. Conta ele que passeava na marginal com a mulher, e encontrou um militar muito zangado e com muita raiva, e dizia ele, que estava há mais de um mês à espera do seu substituto, e ele não aparecia nem ninguém sabia dele

– Possivelmente já desertou e eu aqui à espera dele!

Logo se desfizeram as dúvidas quando o outro disse que estava à espera de um alferes da Cheret!... Disse o A...:

 – Sou eu!!!

O resto não sei, mas foi uma alegria para o outro, e o A... nunca contou o que lhe aconteceu no QG.

Quando chegou aos 15 meses arranjou forma de ir parar ao HM 241 em Bissau, para a Psiquiatria, lá para maio ou junho de 69. Encontrou lá o outro A..., o F... da Companhia de Transportes, que vivia lá com a mulher e filha E..., que eu levava comigo a passear de mota, quando ia a Bissau. Tinha 3 anos, tem hoje 60.

Nessa altura estaria eu também na mesma zona da Psiquiatria. Eles foram mais espertos e lá conseguiram vir embora de avião militar, com destino ao Hospital da Estrela.

Mas em vez disso, resolveram ir para o Algarve e desenfiaram-se uns dias. O A... F....  já tinha mandado a mulher e filha para cá, e o A... L... já tinha mandado a mulher para a metrópole, a mulher tinha vindo muito antes. Como não ficou em Bissau, penso eu que ela veio recambiada.

O F...,  depois de cá chegar,  uns anos depois volta a frequentar a FEP (Faculdade de Economia do Porto) e acaba o curso e passa a ser um quadro importante do antigo BPA, depois BCP. Saiu reformado muito cedo com a pensão completa.

Ainda fiz alguns negócios com ele – com o Banco – em contratos "leasing" quer para mim quer para clientes. Não sei porquê, separou-se da mulher, que lá em Bissau trabalhava na Farmácia. Ficou solteiro. A mulher que casou com um juiz de Ovar, veio a falecer há um ano atrás.

Somos amigos e temos o nosso blogue – uma conta no WhatsApp com 7 amigos.

Em Bissau o F.... morava numa casa junto com o cunhado, o P... G...,  da CC e com a mulher dele,  a Ac..., irmã da mulher do F... Parece que não correu muito bem esta convivência conjunta.

Agora as irmãs já morreram, com um mês de diferença. O P...G... também aparece nos almoços do grupo, junto com o cunhado F...

A E.... casou e tem dois filhos, netos do F..., e encontramo-nos apenas nos
funerais das mulheres. Ela quase não me conhece, não se lembra, era muito miúda, é arquiteta e apresentou-me o marido, que tem como virtude ser mais um fanático do FCPorto, e que convida o sogro para ir ver os jogos do Porto na TV. O F... não gosta de futebol, mas puxa pelo Porto. O genro agradece.

Estou a fugir da conversa do A...L... da Cheret. Passaram à peluda, os dois A... (têm o mesmo nome). Eu e eles somos amigos do Café Cenáculo, desde os anos de 60. (Fica na Rua Antero de Quental.)

O A...L... perdi-lhe um bocado o rasto pois entretanto venho para Vila do Conde trabalhar numa multinacional sueca, e depois casei e mudámos para cá, e assim se foram perdendo lentamente os nossos amigos mais importantes, "longe da vista, longe do coração", quer para mim bem como para a minha mulher que já não tem amigas da infância e adolescência.

O A... entretanto divorciou-se, teve um filho da primeira mulher, que já adulto acabou com a vida, foi um rude golpe. Foi o A... que me contou cá em Vila do Conde, numa garrafeira de um amigo dele, onde nos encontramos. Fiquei chocado.

Entretanto ele vai abrindo o cofre e começa a contar a sua vida, com 3 casamentos e 3 divórcios à mistura. Tem filhas das duas últimas mulheres mulheres,   encontrando-se a viver em diversos países da Europa.

Ele ainda mantém relações de amizade com todas as suas mulheres e os filhos, mesmo a mãe do falecido, a sua primeira mulher que eu conheci em Bissau.

Há uns anos, cinco talvez, juntou-se com outra mulher, 5 anos mais nova do que ele, que era divorciada de um tal Virgílio – não sou eu – que também passou pela Guiné.

Alugou aqui uma casa, a 500 metros da minha, e está a viver com a dita – chamamos- lhe H...L... Passado um ano mais ou menos casaram pelo civil. O A... tem uma quinta em Entre-os-Rios , que tem um caseiro e está à venda mais ninguém lhe pegou ainda.

A atual mulher vivia no Porto, na Rua de Camões,  e tem um filho, que é surdo-mudo, casado com outra mulher com a mesma deficiência. O filho, que não conheço, não gostou deste ajuntamento da mãe e durante uns anos não se viam. O A... não se importava, porque não sabia como falar com ele em linguagem gestual, e assim festas e natais era tudo separado. 

Depois do último Natal, onde o A... foi passar com um amigo em Viseu, a mulher recebeu o filho em casa deles. Agora já se conhecem e tiveram nos anos de algum deles.

Quando o A... se juntou com a H...L...  foram mudar para casa alugada para os lados de Monte dos Burgos, perto do RI6, da Senhora da Hora.

Depois mudaram-se  para Vila do Conde, e hoje estamos todos os domingos de tarde, juntos, os quatro, em cafés cá em Vila do Conde.

Assim a minha mulher já tem com quem falar, pois entendem-se bem. Mas ela já vai dizendo que está cheia do A..., não sabe até quando o vai aturar.

 O A... tem apenas as filhas que estão ausentes, e os dois irmãos , um mais velho que "deu o salto"(para fugir da tropa) e já morreu recentemente, e o outro mais novo, que também ‘se safou da tropa’ por cunhas do pai dele, também já morreu. O A... andou também fugido, mas voltou ao serviço, não eram muito do sistema, nem o seu próprio pai e mãe, já falecidos.

O A...é bom rapaz, só tem dois defeitos:

(i) é do Benfica e abominava o Pinto da Costa, mesmo quando eles eram vizinhos nas Antas no mesmo prédio;

(ii) tem uma paixão, são os livros e vai a tudo que seja relacionado com a literatura e afins, pelo que só fala disso, e pouco se importa com a conversa dos outros: conhece os maiores nomes da nossa literatura, os mortos de os ler, e os vivos de conviver, o que não agrada nem à mulher, e muito menos a mim.

Mas lá vamos continuando com os nossos encontro, e agora que se juntou também o nosso Padre Bártolo, antigo capelão-mor na Guiné, Angola e Moçambique, e que depois viveu 30 anos em Genebra e tem altíssima cultura, e por isso agora eles falam um com o outro,  eu vou ouvindo sem nada perceber sobre as pessoas que falam.

O A... é de uma grande inteligência, formou-se em engenharia de sistemas digitais e afins, mas nunca pegou num computador e muito menos num "smart phone", tem apenas um telemóvel desses antigos da Nokia como tem a minha mulher, que não se deu com os outros.

Quando formamos o grupo do WhatsApp – Os veteranos da Guerra da Guiné – partilhamos mensagens e tudo o mais que vem à cabeça, especialmente coisas do outro mundo, fotos e vídeos de fazer corar um santo.

Como ele não tinha esse dispositivo, ficou associado ao da mulher, pois ele nunca tem o seu telefone ligado, nem servia para integrar o grupo WhatsApp.

Assim a partilha destas coisas todas que nós falamos e publicamos,  quem as via era a sua mulher,  a H...L, , até que um dia viu algo que não gostou mesmo, e telefona-me a perguntar o que era aquilo, por que razão recebia aquelas coisas obscenas... 

Lá lhe expliquei o engano e acabou-se a sua participação. Tudo o que tenho de lhe comunicar,  faço, diretamente a ele, para o telefone dela, mas jamais houve contactos, ninguém sabia disso e era tudo a abrir.

Não tem estes dispositivos nem quer, ele diz que nunca abriu um computador!...
Foi sempre professor universitário e chegou a sê-lo do meu genro, em algumas
disciplinas, ele formou-se em engenharia civil.

Para a Cheret só iam dois tipos de pessoas e com características bem vincadas:

  • quem era muito afecto ao sistema salazarista e agora até chamam de fascistas;
  • ou quem tinha inteligência excecional, especialmente ligada a números, para a função de encriptar mensagens.

Na primeira não cabia, mas sim na segunda e assim passou a ser um homem do sistema e bem controlado, digo eu.

Agora o que resta é esta quinta mulher, mas não têm filhos em comum, obviamente.

Ele é muito perfeccionista, tanto anda com uma T-shirt do Che Guevara, como um blusão camuflado, e tem como defeito principal, na perspetiva da mulher, o de comer muito e a toda a hora, e nós vemos isso nos lanches de domingo.

Fazem as despesas a meio, ela era bancária e recebe a sua reforma e a do falecido. Ele, dizem eles, que nem sabe quanto ganha, porque nunca consulta as contas!

A mulher, entretanto, arrendou a sua casa da Rua de Camões, e quando dá por ela, "já lá viviam dois gays: não pagam a renda e os advogados não veem maneira de os por de lá para fora, além de que são perigosos"...

Acho que, se ela recuperar a casa dela, vai acabar com tudo. Isto é  a nossa versão.

E assim vão as coisas.

Muito mais poderia aqui acrescentar, mas para já chega de conversa. Fim da novela, ao fim de um mês de a começar.

Em, 27 de março de 2025

Virgílio Teixeira

(Revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26693: HIstória de vida (58): Henrique Pereira Rosa (Bafatá, 1946- Porto, 2013): o fur mil OE, CCAÇ 2614 (Nhala e Aldeia Formosa / Quebo, 1969/71), católico praticante, luso-guineense, que chegou a presidente da república, interino (2003-2005), da Guiné-Bissau

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26694: Historiografia da presença portuguesa em África (477): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1913 e 1914 (31) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,
Dir-se-á que o acontecimento dominante de 1913 foi a campanha do Oio envolvendo o comando do capitão João Teixeira Pinto, teve os seus êxitos, digamos que temporários, mas a presença portuguesa em Mansoa, Mansabá e Bissorã tornou-se mais visível, reduziram-se os ataques. Oliveira Duque, à semelhança de outros governadores, lançará quesitos aos administradores coloniais e comandantes militares, pretende ter para seu uso uma radiografia de pendor etnológico e etnográfico, mas também como suporte económico. Um seu antecessor, Carlos Pereira, tivera procedimento semelhante, irá produzir um livro sobre a Guiné, redigido em francês, apresentado numa reunião internacional, quando se lê tal obra, sente-se prontamente que ele soube ler a documentação que lhe foi enviada. O busílis, para quem investiga, é que a generalidade destes relatórios não foi publicado no Boletim Official, no caso do meu trabalho, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, tenho tido o acesso a relatórios que estão na secção dos Reservados, mas são pouquíssimos, e grande parte deles chegaram por via dos descendentes; posso admitir que há outro acervo documental até maior no Arquivo Histórico Ultramarino. O sucessor de Carlos Pereira viu a sua nomeação anulada pelo Senado, está para se perceber porquê.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1913 e 1914 (31)

Mário Beja Santos

É só no mês de agosto que dá conhecimento público da atividade do capitão João Teixeira Pinto. No Boletim Oficial n.º 33, de 16 de agosto, publica-se uma portaria do seguinte teor:
“Tendo-me hoje sido presente pelo chefe de Estado-Maior, comandante da coluna móvel da polícia às regiões do Alto Mansoa e Oio, o relatório dessas operações;
Considerando que dos feitos realizados, já muitos do domínio público e constatados agora em toda a sua evidência pelo referido relatório, se mostra que a heroica ocupação das mencionadas regiões foi levada a cabo pelo esforço, valentia e pertinácia do seu comandante, João Teixeira Pinto, secundado brilhantemente por alguns dos seus colaboradores e subordinados;
Considerando que as recompensas, a que os julgo com direito, não são da minha competência;
Considerando, porém, desde já pública e oficialmente, devo deixar consignado preito da minha homenagem pelos serviços prestados à província e ao país; serviços que estou certo foram tomados na consideração que merecem por sua excelência o ministro das colónias, a quem vou propor as recompensas que julgo de justiça;
Hei por conveniente:
Louvar o capitão de Infantaria, João Teixeira Pinto, pelo atos heroico praticados como comandante de uma diminuta força de tropas regulares, apoiada por uma pequena força de auxiliares, que operou nas regiões de Mansoa e Oio, conseguindo estabelecer, apesar da grande resistência do inimigo, um posto militar, repelindo com toda a energia os diferentes ataques que lhe foram feitos, e obrigando-o a aceitar a nossa autoridade, entregando o seu armamento e fazendo o pagamento do imposto e, bem assim, pela valentia, valor e coragem inexcedíveis e atos de verdadeiro heroísmo com que levou a cabo o estabelecimento de um posto militar em Mansabá (capital do Oio), submetendo à obediência aqueles povos considerados invencíveis e tendo para isso de tomar debaixo de fogo violentíssimo dezasseis tabancas de guerra, onde o gentio bem armado e municiado se defendeu corajosamente devido à sua enorme superioridade numérica, considerando, depois de inúmeros trabalho e perigos, quebrar o valor guerreiro do já lendário Oio.”


Segue-se uma lista de louvores a outros intervenientes, tenentes de Infantaria e da Marinha, Vasco Calvet de Magalhães, um 2.º sargento da 1.ª companhia indígena de Infantaria e o 1.º cabo das secções de Artilharia; os louvores estendem-se ao comandante da canhoneira Flecha e seus colaboradores.

Estamos em 1914 e no Boletim Oficial n.º 28, de 11 de julho, outro governador, José de Oliveira Duque, que sucedeu a Andrade Sequeira, promulga uma portaria onde se diz o seguinte:
“Hei por conveniente, atendendo à conveniência de ter as regiões ultimamente batidas pela coluna de operações a Cacheu submetidas a um regime militar, determinar que essas regiões constituam o comando militar de Basserel, com os limites: ao Norte, o rio Cacheu; a Oeste, o rio Cacheu; a linha que passa por Capó, Pacau e Mata de Cacheu (que ficam pertencendo a Cacheu), rio de Cacheu e Oceano; a Sul pelo canal de Caió, canal entre as ilhas de Jata e Pecixe, canal entre a ilha de Pecixe e canal continental de Mantambua, rio de Mansoa até rio Baboe; a Leste, pela região dos Brames de Gó, Brame Grande e Naga, compreendendo as regiões de Churo, Biange, Cubiane, Jol, Pantufa, Pelundo, Costa de Baixo, Canhoba, Tame, Bugulha, Cajegut, Caió, Jata, Basserel e povos Felupes com três postos militares, um em Basserel, sede do comando, um em Churo e outro em Caió e que o comandante militar fique com todas as atribuições de administrador da circunscrição, ficando as regiões que compõem este comando militar desanexadas das circunscrições de Cacheu e Bissau.”

Em portaria seguinte, é também constituído o comando militar de Nhacra.

No Boletim Oficial n.º 33, de 15 de agosto, e na sequência de procedimentos anteriores de governadores que pretenderam saber por meio de inquéritos os usos e costumes dos indígenas guineenses, o governador Oliveira Duque envia uma circular aos administradores das circunscrições e comandantes militares justificando que é conveniente, para difundir o mais possível o conhecimento desses usos e costumes, que podem ser muito diferentes de região para região, reuni-los num só diploma, determinando a todos a quem dirige a circular que procedam no prazo máximo de dois meses a conscienciosa investigação desses usos e costumes, tendo em vista especialmente estes pontos concretos: a raça ou raças que habitam a área da sua jurisdição, se tais raças são aborígenes ou imigrantes, qual a sua organização social e política, se existe respeito pelos velhos, como se procede com os delinquentes, qual o valor dos contratos que celebram, quais as relações destes povos com a vizinhança, se são guerreiros ou pacíficos, como se constitui a família, que formalidade e festas precedem o nascimento, se praticam as cerimónias do fanado, como se considera a mulher em geral, se há cuidados especiais com a mulher grávida, quais as formalidades que precedem ao casamento, se o adultério é frequente, quais as cerimónias que se têm com os mortos, quem administra a propriedade da família, qual a religião que professam; e este rol de quesitos estende-se ao vestuário, a possíveis indústrias à construção de habitação, à dança, canto e música, à existência de instituições escolares, à natureza da alimentação, as práticas agrícolas, quais os géneros coloniais existentes, quem se dedica à agricultura, quais os principais utensílios de uso doméstico…

E termina assim a portaria:
“Além destes quesitos deverá cada um, segundo o seu bom critério, ocupar-se de quaisquer outros não mencionados, que julguem dignos de menção especial, tendo em vista que nenhum, por insignificante que pareça, pode considerar-se sem valor para o fim que se tem em vista, o conhecimento mais completo possível da vida, usos e costumes, enfim do modo de ser especial dos indígenas da província.”

Pede-se às autoridades que obtenham exemplares autênticos de todos os artigos (armas, utensílios, instrumentos diversos, vestimentas e outros quaisquer) fabricados pelos indígenas da região, bem como amostras dos diferentes produtos da mesma região, a fim de, em Bolama, poder organizar-se um mostruário, ou museu provincial, que muito pode contribuir para difundir o conhecimento das aptidões especiais dos mesmos indígenas.
Acontecimento insólito: o nomeado governador interino José António de Andrade Sequeira vê a sua nomeação anulada no senado, anulação ratificada pelo presidente Manuel de Arriaga
A vida dos governos da I República era cada vez mais precária
Mandingas, Guiné, 1910
A cabeleireira, Guiné, 1910
Porto de Bafatá, 1910
(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 9 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26668: Historiografia da presença portuguesa em África (476): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1911 e 1912 (30) (Mário Beja Santos)