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quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27514: Casos: a verdade sobre... (60): Não se faz a guerra sem álcool (nem tabaco)



Guiné < Região do Cacbeu > Jolmete > CCAÇ 3306/BCAÇ 3833 (Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73)> . outubro / novembro de 1972 > O álcool é euforizante e socializante... O tabaco, ansiolítico... Foto do álbum do ex-fur mil Augusto Silva Santos (vive em Almada).


Foto (e legenda): © Augusto Silva Santos (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra CCAV 2483 (1969/80) : Num mês, talvez atípico, com o de junho de 1970, a escassos, dois ou três meses de mudarem para Tite (sede do sector S1) onde foram acabar a comissão (setembro/dezembro de 1970), os camaradas desta subunidade gastaram 89,4 contos, na cantina (que era comum a oficiais, sargentos e praças). 46% desse valor foi em cerveja e uísque. 89,4 contos (=30,7 mil euros, a valores de hoje) era bastante dinheiro: a dividir por 160 militares, dava 560 escudos "per capita"  (=192 euros, a valores de hoje). (*)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradasa da Guiné (2025)




I. Temos falado aqui aberta, desinibida e francamente sobre o consumo de cerveja, uísque, vinho  e outras bebidas alcoólicas pelos militares portugueses durante a guerra colonial na Guiné, entre 1961 e 1974...

 Tínhamos acesso a bebidas nacionais (cerveja, vinho, brandy, porto...) e importadas (uísque, gin, vodca, conhaque...). Claro que não havia bar aberto...

É difícil, se não impossível,  definir padrões e níveis de consumo, na ausência de estudos sobre o tema (que não os  há, ou são escassos, ou sofrem de limitações metodológicas). 

Quando muito , podemos socorrer-nos de alguns indicadores indiretos: compras nas cantinas, por exemplo. Ou testemunhos de antigos combatentes. Mas nem todas as compras são consumos imediatos de álcool: a maior parte das garrafas de uísque, sobretudo do uísque velho, bem como de conhaque, era para guardar e levar para a metrópole.E em muitos sítios, as cantinas estavam separadas; os oficiais e sargentos tinham as suas messes e o seus bares. Por outro lado, são  raros os registos dos consumos (ou das compras) nas cantinas (*).

Mas também reconhecemos que, do lado dos combatentes do PAIGC, essa prática está ainda pior  documentada. Ou é de todo ignorada. A maior parte parte dos historiógrafos, de um lado e do outro, não valoriza aspetos da vida quotidiana dos combatentes como os "comes & bebes".
 
Ora, o que sabemos da História é que nunca se fez a guerra sem álcool (ou outras drogas). Matar e morrer é a experiência-limite do ser humano. Não imagino o Inocêncio Cani (que eu não sabia que tinha sido catequista!) a matar o Amílcar Cabral, à porta de casa, a sangue frio. Tinha que estar com a "cabeça grande", sob o efeito do álcool. O mesmo para os matadores do Pelundo, os carrascos dos 3 majores e seus acompanhantes  em abril de 1970.

O consumo de álcool, de um e do outro lado da "barricada", na guerra da Guiné (1961/74) está mal documentado. Pelo menos do outro lado, do lado do PAIGC.

 A documentação é desigual, mas o padrão geral é claro: o álcool (e o tabaco)  fazia parte do quotidiano da guerra, com implicações sociais, psicológicas e logísticas. (**)

1. Militares portugueses na Guiné (1961–1974)

(i) Disponibilidade e tipos de bebidas

Cerveja era comum nas unidades portuguesas, especialmente marcas nacionais enviadas pela Manutenção Militar (Sagres e Cristal).  À Guiné não chegava a cerveja angolana nem moçambicana, nem convinha aos cervejeiros metropolitanos.

Aliás, a mobilização de centenas de milhares de homens ao longo do conflito (1961/75) nos 3 teatros de operações (mais o resto do império, de Cabo Verde a Timor), foi uma oportunidade de ouro para a indústria cervejeira nacional.

Uísque, aguardente, vinho e licores eram consumidos sobretudo por oficiais e sargentos, bem aqueles que tinham melhores possibilidades logísticas ou económicas. Por exemplo, bebi-se melhor em Bissau, Bambadinca e Bafatá. A Marinha, por sua vez, bebia (e comia) muito melhor que o Exército...E  também não ouvimos queixas da Força Aérea.

No que diz respeito à tropa do recrutamento local, grosso modo podemos dividi-la em muçulmanos, animistas e cristãos ou assimilados. 

 Regra geral, os nossos militares muçulmanos (nomeadamente fulas) eram "abstémios" por imperativo religioso. Mas o contacto com os "tugas", levou-os a apreciar a "água de Lisboa"... Não bebiam cerveja nem vinho à frente dos "homens grandes", até por que muitos (CCaç 12, CART 11, por exemplo, a quem demos instrução em Contuboel) ainda eram "meninos de sua mãe"!... A guerra fê-los crescer mais depressa, a eles e a nós. (De resto, o argumento para serem desarranchados era não poderem comer  carne de porco nem beber álcool.)

Os restantes (animistas, cristãos, e sobretudo os mais urbanos, de Bissau...) tanto consumiam as bebidas locais (como a aguardente de cana e o vinho de palma) como não desgostavam da "água de Lisboa". E faziam-no publicamente, confraternizando connosco.

(ii)  Funções do álcool
  • Lazer e coesão: beber em grupo ajudava a criar um sentimento de companheirismo (à mesa) e camaradagem (na caserna, no mato...)  em situações difíceis; bebia-se em grupo, os bebedores solitários seriam a exceção à regra.
  • Socialização, ritual social: celebrações, aniversários, outras efemérides (data da chegada à Guiné, por exemplo),  momentos de descompressão entre operações, e até o ritual do “comes & bebes" nos dias de folga, ou ao fim da tarde; ou nas idas a Bafatá...(a "civilização", o "oásis", para a malta do Leste).
  • Claustrofobia, mecanismo de escape: muitos ex-combatentes relatam que o álcool servia para "esquecer" (a guerra, a solidão, as saudades de casa...):  certamente para aliviar a exaustão física, o stress, o medo, as insónias e até o trauma, o que hoje se reconheceria como sintomas de stress pós-traumático; o ambiente nos aquartelamentos e destacamentos, cercados de arame farpado e com o perímetro exterior armadilhado, e vivendo muitos militares em "bunkers", e por vezes sem população,  era claustrofóbicos; um ambiente propenso à depressão, ao conflito, à violência interpessoal, e ao consumo de álcool; já relatámos aqui alguns  acidentes mortais com "arma de fogo", associados ao ao álcool.
  • Ambiente de caserna: o consumo era normalizado e raramente reprimido, exceto em casos de indisciplina evidente; cada uma das 3 "classes" em presença (nobreza, clero e povo,  com eu chamava aos oficiais, sargentos e praças) tinham os seus locais próprios de "libação": messes, bares, caserna, refeitório, escapes citadinos como Luanda, Bafatá, Safim, Nhacra, etc.

(Iv) Problemas derivados

Há relatos de alcoolismo em certas unidades, embora geralmente omitidos nos relatórios oficiais. Pode haver referências nos autos por acidentes de viação ou acidentes com   arma de fogo (suicídios, homicídios, automutilação, ameaças, e outras formas de violência). Mas todas estas situações são tratadas com pinças...

Alguns comandantes tentavam limitar o consumo antes de operações, mas o controlo era difícil e desigual. Aqui funcionava mais o autocontrolo e o controlo pelos pares ( a nível de secção e pelotão). Obviamente, ninguém podia ir "alcoolizado" para o mato ou para uma coluna. 

A verdade é que não havia ainda testes de alcoolémia na guerra, para nenhuma das 3 armas (Exército, Marinha e Força Aérea). Nem sequer os condutores ou  os pilotos sopravam no balão (uma invenção tardia).

O clima tropical, o desgaste físico, o cansaço agravavam os efeitos do álcool. Ao fim de alguns meses, dizia-que o militar "estava apanhado do clima" ou "cacimbado",

2.A tropa do PAIGC

A documentação sobre o consumo de álcool nas hostes do PAIGC é mais escassa. Não há números. A guerrilha valorizava a disciplina, e o controlo disciplinar e ideológico seria mais rígido. Ainda assim, há elementos que surgem por fontes orais e memórias.

(i) Consumo existia, mas era vigiado

Em várias regiões da Guiné era comum o fabrico e consumo de vinho de palma, aguardente de cana e outras bebidas tradicionais. Os "chefes" chegavam ter  os seus  "tiradores" privativos!

Guerrilheiros jovens, longe das aldeias, das famílias e em longas marchas, emboscadas, operações, etc., podiam recorrer,  ao álcool em momentos de pausa. (Isso também acontecia no nosso lado, era a ocasião em que se apanhavam os "pifos de caixão às cova").

Grande parte dos guerrilheiros do PAIGC eram balantas e de outras etnias animistas, grandes consumidores de álcool (aguardente de cana, vinho de palma...). Tal como não largaram os amuletos, também não romperam com os seus hábitos, a sua cultura, os seus rituais. Podia era haver era menos oferta de álcool, no mato.

(ii) Disciplina política

O PAIGC (ou  o seu  ideólogo, e comandante-chefe, Amílcar Cabral) desencorajava fortemente o consumo excessivo, associando-o à “fraqueza revolucionária”.

Alguns veteranos referem punições internas ou advertências para quem bebesse antes de ações militares. Mas não sabemos como funcionava o autocontrolo e o controlo  por pares. Rui Djassi, Osvaldo Vieira e outros "comandantes" tinham problemas de álcool..

(iii) Funções do álcool (semelhantes às das tropas portuguesas)

Alívio do stress, convivência, e momentos de pausa nos acampamentos. Afinal éramos todos de carne e osso, pesem embora as diferenças culturais.

Em certas áreas, o álcool fazia parte de cerimónias tradicionais que se mantiveram mesmo durante a luta armada ("choro", etc.)

(iv)  Subregisto histórico

A imagem oficial do PAIGC como movimento altamente disciplinado (cultivado por Amílcar Cabral, para efeitos  de "marketing político")  levou a que estes aspetos da vida quotidiana nas "áreas libertadas" ficassem menos documentados ou na obscuridade, 

Os santos não têm pecados. Os gajos eram moralmente superiores aos tugas, Durante algum tempo vendeu-se essa falsa imagem.

Investigadores da história social da guerra admitem que a dimensão humana e informal da guerrilha está ainda pouco estudada, incluindo "comportamentos desviantes" como  consumo de álcool, rituais, amuletos,  sexo, violência (contra crianças, bajudas, mulheres e velhos...), indisciplina, conflitos,  drogas locais,  relações tribais, etc.


3. Inquérito "on line"

Recorde-se aqui os resultados do inquérito "on line" que realizámos em 2016: "Nunca apanhei nenhum pifo de caixão à cova na tropa ou no TO da Guiné"

Votos apurados: 102
Sondagem fechada em 15/3/2016 | 18h04



(i) Nunca > 31 (30,4%)


(ii) Uma vez, por acaso > 25 (24,5%)


(iii) Duas vezes > 10 (9,8%)


(iv) Três vezes > 4 (3,9%)


(v) Mais vezes > 26 (25,5%)


(vi) Não me lembro > 5 (4,9%)


(vii) Não aplicável: não bebia > 1 (1,0%)


Total > 102 > (100,0%)


Em 102 respondentes só um  disse que não bebia.   Mais de 60% (n=65) respondeu que sim, que apanhou um pifo de caixão à cova, uma, duas, três ou mais vezes.  Só 5% respondeu que não se lembrava.

Tal como hoje,  teríamos basicamente três  perfis: (i) abstémios / não-bebedores  (subrepresentados na nossa amostra) (são hoje cerca de 1/4 da população, dos 15 aos 74 anos); (ii) os 3/4 já consumiram álcool na vida; 1/4 bebe diariamente e outros tantos serão bebedores sociais; (iii) bebedores excessivos ou de risco serão uns 3,5%... Claro que os homens bebem mais do que as mulheres...

Enfim,  não dá para comparar com a nossa pequena amostra de conveniência...





Marca de cigarros, de fabrico soviético, que eram distribuídos aos guerrilheiros do PAIGC, durante a guerra colonial / luta de libertação. "Nô pintcha", em crioulo, quer dizer "Avante!"... 


Foto (e legenda): © Eduardo Magalhães Ribeiro (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



4. “Nunca se fez guerra sem álcool (nem tabaco)"

Esta frase, frequentemente citada por veteranos de ambos os lados, é bastante precisa. Não se faz a guerra, sem álcool nem tabaco... nem com o estômago vazio!

De facto, em praticamente todos os conflitos, o álcool ( e o tabaco) é um ansiolítico não oficial, uma espécie de  "lubrificante psicossocial" para a "máquina de guerra",  uma forma acessível de lidar com o medo, a violência, o risco, a morte...



O fornecimento de tabaco está mais bem documentado (no caso do PAIGC, à sua "tropa" era distribuido o maço de cigarros "Nô Pintcha", fornecido pelos "amigos soviéticos"; não sabemos em que quantidades nem com que frequência).

Na Guiné, com isolamento, clima adverso e desgaste físico e psicológico constante, tornava-se ainda mais evidente a importância do álcool e do cigarro, as duas "drogas legais".

 De um lado e do outro. Muitos de nós começaram a beber e a fumar na Guiné. Por outro lado, tínhamos acesso (generoso) a muito tipo de bebibas, que  não eram correntes na metrópole, incluindo a coca-cola. E o tabaco, não sendo de borla, era relativamente acessível. (O Porto era uma das marcas que mais se fumava, custava 3$00 cada maço.)

(Pesquisa: LG  + Net + IA (Gemini, ChaGPT)

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 6 de dezembro de 2025 Guiné 61/74 - P27499: A nossa guerra em números (47): mais de 2/3 do consumo, do valor de vendas em junho de 1970 (n=89 contos), na cantina, da CCAV 2483, em Nova Sintra, foi em álcool e tabaco (Aníbal Silva / Luís Graça)

Guiné 61/74 - P27513: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 3 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte VI: o guarda-roupa feminino





Fotogramas > "1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente", documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Agosto de 1935 > Damas e cavalheiros dançando a rigor a morna... E trajados a rigor.


Cortesia de Cinemateca Digital, documentário "I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente", realizado em 1936 por San Payo. Disponível aqui:

https://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.aspx?obraid=1378&type=Video



O elogio da "Monte-Carlo Beach", a praia artificial de Monte-Carlo, o sítio mais chique da Europa...Artigo de Maria de Eça, a propósito da chegada da época  balnear, da "elegância da nudez" ( feminina), e dos benefícios do sol e do mar...Estas imagens eram  muito ousadas para a época, num país parolo, provinciano, conservador, e vigiado pelos censores...  Estamos nos primeiros anos do Estado Novo, impante e triunfante.  Mesmo uma década depois, nas praias portuguesas os fatos de banho, femininos e masculinos, obedeciam a uma bitola...e as infrações estavam sujeitas a coimas.



Fonte: Excerto de. Maria de Eça - As praias portuguesas e estrangeiras". Ilustraçáo, nº 232, 16 de agosto de 1935, ág. 25  (Cortesia de Hemeroteca Municipal de Lisboa)

 

1. Voltemos ao nosso "1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente" (*)... Foi há 90 anos... 20 anos depois começávamos nós a ir para as últimas guerras do Império:  Índia,  Angola, Guiné, Moçambique, Timor...

De repente, vendo o filme, as cenas do baile no Liceu Infante Dom Henrique, no Mindelo, dado em honra dos "excursionistas" (maioritariamente "cavalheiros", só 20% é que eram senhoras: duas professoras, seis estudantes, e trinta e uma mulheres entre as “pessoas de família”), veio-nos à cabeça a pergunta: como era a moda, e nomeadamente feminina, naquela época ? O que é que as senhoras vestiam a bordo numa viagem daquelas, de quase dois meses, com escala por Cabo Verde, Guiné, São Tomé, Angola e, no regresso, Principe e Madeira ?

Com a ajuda da IA (Gemini / Google, ChatGPT), e outars fontes (bibliográfcias), apurámos alguns apontamentos interessantes, que passamos a condensar.

Em 1935, as senhoras que faziam essas longas viagens de navio para as colónias portuguesas em África eram, de facto, poucas. Eram maioritariamente esposas de funcionários coloniais (**), militares, médicos, grandes comerciantes ou fazendeiros ricos. (Os missionários, como eram católicas, não levavam esposas; as "irmãs", as freiras, missionárias, ainda deviam ser poucas na África Portuguesa.)

Em 1935,  os "africanistas" propunham-se  desmistificar África, tornando-a apelativa para as senhoras... A colonização portuguesa até então era maioritariamente masculina. Não ficava bem as senhoras serem... doutoras ( nem muito menos esposas de colonos). Em 1914, no início da I Guerra Mundial, e sendo governador-geral o general Norton de Matos, Angola tinha 11 mil brancos (6 mil em Luanda). Com a mobilização militar para África (Angola, Guiné, Moçambique), nas "campanhas de pacificação" e I Grande Guerra, houve militares que se fixaram naqueles territórios.

Em 1935, as senhoras que embarcaram no vapor "Moçambique", eram sobretudo familiares dos estudantes e professores a quem se destinava o cruzeiro (de lazer, turismo, educação e propaganda). (Repare-se apenas 6 eram estudantes, num total de 79, o que representava menos de 8%.)

"Uma lição portuguesismo", diria, no fim, embevecido e em jeito de balanço, o jovem professor Marcello Caetano, responsável da parte cultural. 

De um modo geral, estas  viagens em si, num paquete da Companhia Nacional de Navegação (CNN) ou da Companhia Colonial de Navegação (CNN), não eram vistas como um  verdadeiro "cruzeiro" de férias no sentido moderno do termo, mas sim como um evento social, de grande formalidade. 

A roupa (masculina e feminina) refletia isso mesmo.

Falando das senhoras, o guarda-roupa para uma viagem que podia durar várias semanas ( conforme o destino),  tinha de ser vasto, funcional e, acima de tudo, elegante, cobrindo diferentes momentos do dia e a transição para o clima tropical ( incluindo a praxe da travessia do Equador para os novatos). Claro que o guarda-roupa também dependia do poder de compra.

(i) O contexto: a moda de 1935

Temos de esquecer as "flappers" de 1920. Em 1935, a moda era muito mais curvilínea, feminina e elegante, influenciada pelas estrelas ou "divas" do cinema de Hollywood (como Greta Garbo ou Marlene Dietrich).

Silhueta: a cintura voltava ao seu lugar natural; as  saias eram compridas (a meio da perna ou mais longas para a noite) e fluidas. O corte em viés (bias-cut) era a grande inovação, fazendo com que os tecidos (como o crepe de seda) se moldassem ao corpo de forma elegante (e, inevitavelmente,  erótica).

Ombros: os ombros eram frequentemente realçados, por vezes com pequenos enchumaços, mangas com folhos ou detalhes.

(ii)  O guarda-roupa a bordo (em alto mar)


A vida no navio era pautada por regras sociais rígidas. O que obrigava uma senhora a trocar  de roupa várias vezes ao dia. E nisso esgotando-se a sua energia. De resto, não tinha mais nada que fazer. As diversões a bordo eram limitadas. O navio, ainda a vapor, de 57 mil toneladas e 112 metrpos de comprimento estava em fim de vida; construído na Escócia em 1908, seria desmantelado em 1939.

  •  De Dia (manhã e tarde no "deck")

O vestuário de dia era "prático" (para os padrões da época), mas sempre impecável.

Vestidos de dia: eram feitos de tecidos mais robustos mas elegantes, como crepe, lã leve (na saída da Europa) ou seda, tinham mangas (curtas ou a três-quartos) e saias a meio da perna; os padrões  eram discretos ou de cores lisas (como azul-marinho, bege, bordeaux);

Conjuntos (fatos de saia e casaco): muito populares; um casaco cintado com uma saia a condizer; era um visual muito "arranjado" para passear no convés ou almoçar.

Acessórios essenciais:

Chapéu: absolutamente obrigatório para sair ao sol no convés; podiam ser cloches (ainda em uso) ou chapéus de aba mais larga, que se tornavam populares;

Luvas: quase sempre usadas, mesmo de dia; de couro leve ou algodão;

Sapatos:
fechados, de salto baixo ou médio, frequentemente de duas cores (estilo "spectator");

Desporto (ou "sport" como então se dizia) (para atividades no convés): os navios tinham áreas de lazer (jogos de "shuffleboard", ténis de convés); para isto, existia o "traje sport", que era o mais informal que se usava em público;

Pantalonas (calças): a grande novidade, os  "pijamas de praia" (calças largas e fluidas, de cintura subida) eram o auge da moda chique para relaxar no convés; eram feitas de linho ou algodão e muitas vezes com padrões náuticos (riscas, âncoras); 

Vestidos-amiseiros: de algodã,  mais simples, muitas vezes de riscas azuis e brancas (o estilo "riviera" ou náutico).

  • Noite (jantares e bailes)

Este era o ponto alto (tal como nós cruzeiros modernos): o  jantar era um evento de gala, especialmente na primeira classe, já de si reservada a uma.minoria privilegiada.

Vestidos de noite: eram longos, arrastando-se muitas vezes pelo chão;

Tecidos nobres: seda, cetim, veludo (para as noites mais frescas no Atlântico Norte) ou crepes pesados;

Corte:  o  "corte em viés" era rei; os vestidos eram fluidos, marcando a silhueta; as costas decotadas eram muito comuns e consideradas o cúmulo da elegância.

Acessórios:

Estolas: de pele (raposa) ou seda, para cobrir os ombros;

Joias: brincos compridos, pulseiras, colares;

Luvas compridas: de seda ou cetim, quase sempre acima do cotovelo;

Pequenas malas de mão ("pochetes"): elaboradas, de metal ou tecido bordado.

(ii) A chegada aos trópicos (Cabo Verde, Guiné, São Tomé, Angola)

À medida que o navio se aproximava do Equador e o calor aumentava, o guarda-roupa mudava drasticamente; as lãs e sedas pesadas eram guardadas nas "malas" (baús de viagem).

O que predominava:

Branco e marfim: estas eram as cores dominantes; refletiam o sol e eram um símbolo de estatuto (mostravam, por exemplo, que se tinha criados para lavar a roupa, que se sujava facilmente);

Tecidos leves: o linho era o tecido de eleição, apesar de amarrotar facilmente;  algodão piqué e a seda crua ("shantung") também eram muito usados;

Vestidos "safari":
embora o "safari suit" fosse mais masculino, a influência era vista em vestidos-camiseiros de linho branco ou bege, muitas vezes com cintos e bolsos utilitários;

Proteção solar:
esta era a maior preocupação;

Chapéus de aba larga
: essenciais; de palha ou tecido leve;

Capacete colonial ("pith helmet"): embora hoje seja um símbolo controverso (associado ao colonialismo europeu e aos sangrentos safaris), em 1935 era comum tanto para homens como para mulheres em certas situações, como uma forma prática de proteção contra o sol intenso; as senhoras usavam versões mais leves e elegantes, muitas vezes forradas a seda;

Óculos de sol: tornavam-se um acessório de moda, além de funcionais;

Em suma, as senhoras (uma minoria) que em 1935 viajavam para a África, ainda negra,  misteriosa, exótica,  levavam um guarda-roupa que projetava elegância europeia, estatuto social e uma tentativa (nem sempre eficaz nem confortável) de adaptação ao clima tropical, mantendo sempre a máxima formalidade. 

Por outro lado, as senhoras  das classes alta e média-alta, que faziam estas viagens nos navios da CNN ou da CCN, com destino a África (e neste caso, o 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente) (***) poupavam-se, evitando o sol, a poeira, a terra batida, os insetos, etc., nem sempre saindo para "visitas de estudo" que só interessavam aos homens (neste caso, alunos e professores).

 Imaginamos que ficavam, resguardadas (nos hotéis), a beber chá, a cavaquear, a jogar  às cartas...  Enfim, o culto da frivolidade...

Nessa época, elas ainda não tinham um papel ativo na sociedade, na economia, na política, na cultura...E não trabalhavam. A mulher que  trabalhava (nas fábricas e nos campos) não tinha direito ao tratamento... de "senhora".

(Pesquisa: LG + Net + IA / Gemini Google)

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do editor LG;


(**) Vd. poste de 15 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26268: Timor Leste: passado e presente (29): Uma viagem de mais de um mês de Lisboa a Díli, no N/M holandês Sibajac, em agosto/setembro de 1936 (Cacilda dos Santos Oliveira Liberato, "Quando Timor foi notícia: memórias", Braga, Pax, 1972)

(***) Último poste da série > 7 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27398: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 3 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte V: preços só para meninos ricos ou gente da classe média-alta... Hoje daria para dar a volta ao mundo em 100 dias.

Guiné 61/74 - P27512: Parabéns a você (2441): Fernando Barata, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2700/BCAÇ 2912 (Dulombi, 1970/72) e Mário Santos, ex-1.º Cabo MMA da BA 12 (Bissalanca, 1967/69)

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Nota do editor

Último post da série de 5 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27496: Parabéns a você (2440): Manuel Carvalho, ex-Fur Mil API da CCAÇ 2366/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, Jolmete e Quinhamel, 1968/70)

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27511: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (4): Albino Silva, ex-Sold Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845

1. Mensagem do nosso camarada Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70) com data de 5 de Dezembro de 2025:

Olá Carlos Vinhal
Finalmente e aos poucos lá vou recuperando a vontade de fazer alguma coisa como dantes o fazia e para a Tabanca Grande.
Passei um mau bocado com minha Esposa que infelizmente faleceu.
Hoje decidi escrever umas coisinhas para a Tabanca, retomando assim, aquilo que vinha fazendo.

Desejo a Todos Boas Festas
Um Abraço.
Albino Silva
011004/67



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2. Comentário do editor CV:

Caro amigo Albino Silva,
Lamentamos profundamente a triste notícia do falecimento da senhora tua esposa.
Aceita o nosso mais sentido pesar e crê-nos solidário com a tua dor.
Claro que a partir de agora o Natal da família jamais será igual aos anteriores, porque falta a matriarca, mas pensai que a vida também é composta pela ausência e saudade dos nossos entes queridos que nos vão deixando.
Recebe o nosso abraço
Carlos Vinhal

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Nota do editor

Último post da série de 9 de Dezembro de 2012 > Guiné 61/74 - P27509: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (3): Carlos Filipe Gonçalves, Praia, Cabo Verde

Guiné 61/74 - P27510: S(C)em Comentários (83): Armazéns do Povo nas "regiões libertadas!": mais um mito para Sueco ver (Cherno Baldé, Bissau)



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74) > População sob controlo do PAIGC, no subsetor do Xime, capturada no decurso da Acção Garlopa, em 19 de julho de 1972, num total de 10 elementos.

 Seguramente que os suecos nunca puseram aqui os pés, nas "áreas libertadas" do Xime, na margem direita do rio Corubal...E lá não devia chegar a sua ajuda humanitária...

Foto (e legenda): © Sousa de Castro (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Novembro de 197' > Possivelmente numa base do PAIGC,  no sul, na região fronteiriça, ou mais provavelmente em território (mais seguro) da Guiné-Conacri  > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas >  

Transporte de sacos de arroz em viaturas soviéticas. Segundo a inteligência militar portuguesa, o PAIGC dispunha, na Guiné-Conacri, de cerca de 40 camiões russos (havia dois modelos, o Gaz e o Gil) , que faziam o transporte dos abastecimentos de Conacri até a Kandiafara e, depois de queda de Guileje, em 22 de Maio de 1973, até mesmo para lá das fronteiras... 

De acordo com a propaganda do PAIGC (depois ampliada pelos seus aliados nórdicos...), "o grande celeiro do sul abastecia de arroz as populações sob controlo do PAIGC; os excedentes eram exportados, nomeadamente para a região norte. Havia uma rede de Armazéns do Povo que ia de Conacri até ao interior das regiões libertadas".

Essa rede, mal ou bem, funcionava e terá permitido o desenvolvimento de uma "economia de guerra" (sic), que muitos de nós, antigos combatentes portugueses, conhecia mal ou  desconhecia de todo...O que muitos de nós, operacionais, sabemos, é que por sistema todo o arroz encontrado em áreas sob controlo do PAIGC era destruído. O mesmo acontecia com outros víveres, a começar pelas vacas, porcos, cabras, galinhas, etc. 

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI) (As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda. Legendagem de LG).



1. Comentário de Cherno Baldé, nosso colaborador permanente (vive em Bissau),  ao poste P23609 (*):

 

(...) Como em tudo que diz respeito ao PAIGC e a sua "gloriosa luta de libertação", os Armazéns do Povo não passou de mais um mito para Sueco ver. 

A rede que, aparentemente, funcionou durante a luta nas chamadas zonas libertadas, eram postos ou depósitos móveis para a distribuição das ajudas dos países Nórdicos,  com especial destaque para a Suécia,  que contribuía com ajuda humanitária. 

Estou em crer que, embora a propaganda do partido fale do povo e da comercialização através da permuta, a realidade dos factos diz-nos que os principais destinatários seriam os guerrilheiros das barracas do interior que, como se sabe, tinham muitas dificuldades de abastecimento.

Caso os famosos Armazéns tivessem funcionado bem no mato em plena guerra, era suposto o sucesso ser maior nas condições do pós-guerra, mas na verdade, os vícios do consumo gratuito e da gestão danosa e irresponsável não permitiram o florescimento desta rede de comércio nacional que estava destinada para substituir o comércio das lojas das casas Gouveia e Ultramarina em toda a extensão do território. 

Quando ocorreu o golpe de 14 de Novembro de 1980, embora os Suecos ainda continuassem a fornecer auxilio "humanitário" já com algumas contrapartidas, na verdade, já não restava nada destes Armazéns para além de prateleiras vazias e, de tal maneira que o regime que surgiu do golpe de 'Nino' Vieira foi obrigado, para além de solicitar a ajuda do FMI, uma instituição do capitalismo outrora abominado, a proclamar a abertura ao comércio privado para que o país não morresse de fome.

De salientar que o Consulado do gen Spinola na Guiné tinha criado alguns hábitos de consumo, mormente, no meio da população urbana e não só, que os dirigentes do PAIGC queriam extirpar de raiz, o que criou uma situação de fome e um ambiente explosivo de mal-estar que acabou por desembocar na mudança do regime de Luís Cabral. (...) (**)

(Revisão / fixação de texto, itálicos, negritos, título: LG)
________________


(**) Último poste da série > 4 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27493: S(C)em comentários (82): a filha da mãe da guerra que não desgruda... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72)

Guiné 61/74 - P27509: Prova de vida e votos de boas festas 2025/26 (3): Carlos Filipe Gonçalves, Praia, Cabo Verde


1. Mensagem natalícia de Carlos Filipe Gonçalves, ex-fur mil amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74), radialista, jornalista, escritor, natural  do Mindelo, a viver na Praia, Cabo Verde:


Data - domingo, 7/12/2'025 13:28
Assunto - Potrva de vida e votos de boas festas 2025/26

Olá, caro amigo:

Obrigadíssimo. Que Deus nos conceda vida e saúde.

Boas Festas e Feliz Ano Novo.

Forte Abraço

Carlos Filipe Gonçalves

Jornalista Aposentado

______________

Nota do editor LG:

Guiné 761/74 - P27508: (D)o outro lado do combate (69): O "herói do Como", o Pansau Na Isna (1938-1970), em registo de "conto popular africano"“: tuga ka pudi anda na lama (M'bana N'tchigna)




A Pátria não se esqueceu do seu herói,  Pansau na Isna (Ilhéu de  N' Fanta, 1938 - Nhacra, 1970) (*). O verdadeiro herói da "batalha do Como" não foi 'Nino' Vieira, mas este  balanta carismático, camponês, analfabeto, excêntrico. 

Morreu cedo, aos 32 anos, em combate. Já não viu estas notas de 50 pesos,  emitidas pelo Banco Nacional da Guiné-Bissau em 1976 (mas com data retroativa de 24 de setembro de 1975, segundo aniversário da proclamação unilateral da independência), e que circularam entre 1976 e 1997.  O Banco Nacional da Guiné-Bissau resultou da nacionalização do BNU - Banco Nacional Ultramarino, e foi o antecessor do Banco Central da Guiné-Bissau, segundo nos relata  o australiano Peter Symes, especialista em emissões bancárias (**).

Até ao fim do peso, em 1997 (que deu lugar ao franco CFA), circularam as seguintes notas (ao longo de 3 emissões) (1976, 1983 e 1984):  notas de  50 (com a efígie de Pansau Na Isna), 100 pesos (Domingos Ramos),  500 pesos (Amílcar Cabral), 1000 (Amílcar Cabral),  500 (Francisco Mendes) (1983), 5000 (Amílcar Cabral)  e 100000 (Amílcar Cabral).

São relativamente raras as versões, públicas, disponíveis na Net, de antigos combatentes do PAIGC sobre a "luta de libertação".  E menos ainda sobre a mítica "batalha do Como"...Não vamos aqui, para já,  comparar versões dos acontecimentos.  Os combatentes de um lado e do outro (incluindo todos os "cabra-.machos") têm direito a contar e a publicar a sua história, sujeitando-se naturalmente ao contraditório (***)

No nosso blogue temos já cerca de 90 referências sobre a Op Tridente, incluindo o testemunho de quem lá esteve e lutou como os nossos camaradas Mário Dias,   Armor Pires MotaJosé Álvaro CarvalhoVassalo Miranda e outros (sem esquecer o J. L. Mendes Gomes,  os "bravos do Cachil", da CCAÇ 557, o José Colaço, o Rogério Leitão, o José Augusto Rocha, etc.).





Lisboa > Forte do Bom Sucesso > 24 de setembro de 2005 > Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, um pelotão comandado pelo alf mil Maurício Saraiva, fotografados  durante o convívio dos Grupos de Comandos do CTIG (1964/66).

Da esquerda para a direita, (i) sold João Firmino Martins Correia; (ii) 1º cabo Marcelino da Mata; (iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo;

Em cima, (iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; (v) fur Mário F. Roseira Dias; (vi) sold Joaquim Trindade Cavaco. (Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham em 1964).


Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A História de Kpänsau Na Ysna: Como combatente N’tchaagň Conta a Uma Criança


por M’bana N’tchigna


− Vem cá, meu filho, senta aqui pertinho. Vou te contar a história de um homem muito corajoso, um daqueles que a gente não encontra todo dia. O nome dele era Kpänsau Na Ysna, mas muitos o chamavam de Pansau na Isna.

Kpänsau nasceu lá no ano de 1938 [no Ilhéu de N’fandá], numa família camponesa da etnia B’ráassa [Brassa] , os Balanta, gente trabalhadora e forte. Ele era um homem alto, de pescoço bem firme, e que gostava de deixar o cabelo crescer, porque tinha muito, muito mesmo. Quando o vento soprava, parecia até que o cabelo dele dançava.

Ele vivia no sul da Guiné-Bissau, ajudando a família e aprendendo a vida do campo. Mas, um dia, ele percebeu que o seu povo sofria injustiças do colonialismo português. E, olha, M’bana…, quando Kpänsau via injustiça, o coração dele esquentava como fogo. Ele não gostava de ver ninguém oprimido, não.

Então decidiu entrar para a luta armada, bem jovem ainda. E sabe o que aconteceu? Ah, meu filho… ele logo mostrou que era daqueles que não se escondem. Era valente, corajoso, decidido. Eu estava e lutei lado ao lado numa das batalha, Köm [ilha de Como, Op Tridente, jan-mar 1964] . Quando Kpänsau entrava numa batalha, até os mais medrosos se enchiam de força só de olhar para ele.

A maior prova disso aconteceu na batalha de Köm, a ilha de Como, que ele ajudou a libertar. Naquele tempo ele tinha só 26 anos, imagine! Tão jovem… Mas já era visto como um grande combatente.

Passaram-se alguns anos, e Kpänsau continuou a defender o seu povo com o mesmo coração firme de sempre. Até que, em 1970, quando tinha apenas 32 anos, ele morreu em combate, lá em Nhagkrá-Mores na vila de Bumar [sector de Bissau] . Morreu lutando, como viveu.

E você sabe por que eu te conto essa história? Porque homens como Kpänsau Na Ysna não vão embora de verdade. Eles ficam na memória do povo, ficam no peito da gente. Ele lutou para que hoje vivêssemos num lugar mais livre, mais justo.

Então, sempre que você ouvir alguém falar de coragem, lembre-se de Kpänsau. Ele foi um herói de verdade. E heróis assim… ah, meu filho M’bana, esses nunca são esquecidos.


O Significado do Nome Kpänsau Na Ysna na Língua Brassa

Mas afinal, qual é o significado do nome Kpänsau Na Ysna na língua B’ráassa?

Como quase todos os nomes B’ráassa, Kpänsau carrega em si um sentido profundo. Ao pé da letra, significa “Morança acabou” ou “Desmoronou”, e pode ser estendido para expressões como: “a geração acabou”, “minha gente acabou”, “meus parentes acabaram”.

É um nome que evoca o desaparecimento, a perda e, ao mesmo tempo, a força de quem resiste diante da morte ou da destruição.

A preposição “Na” tem papel especial na língua de B’ráassa. Ela equivale às preposições portuguesas “de”, “da” ou “do”, e serve para apontar o clã a que o indivíduo pertence.

Entre os B’ráassa de Ñakrá, raramente se usa o nome do pai junto ao próprio nome; o filho é do clã, e não do pai. Essa escolha revela a horizontalidade e o espírito de democracia e de harmonia de nosso povo.

Um exemplo disso é Dába Na Walna, uma das grandes referências intelectuais da Guiné-Bissau, embora ele próprio não se vê como tal. [É hoje brigadeiro-general.]

Eu nunca conheci o nome do pai biológico dele, e, que eu saiba, “Na Walna” não se refere ao pai. A preposição indica o clã, a morança ou a tabanca à qual a pessoa pertence. O mesmo se aplica ao meu sobrenome, “Na Tchigna”, e a muitos. outros.

Assim, o nome Kpänsau Na Ysna não é apenas um conjunto de palavras: é história, memória e identidade. Ele lembra a coragem, a luta e a resistência de um povo que enfrentou a opressão e o perigo com coração firme.

Faço questão de homenageá-lo neste mês de janeiro de 2018, quando a libertação de Köm completa 54 anos. Foi nesse mês, em 1964, que Köm viu seu valente filho defendê-la como terra indivisível entre guineenses e colonialistas.

E eu o homenageio não apenas porque seu nome batiza uma avenida de Bissau, onde hoje se situa o Hospital Simão Mendes, mas porque sua vida e sua memória merecem ser celebradas, lembradas e honradas para sempre.

Quando criança, sempre fui um menino curioso e amante de histórias. Mas não de qualquer história: gostava de ouvir fatos verídicos, aqueles que carregam sangue, suor e coragem.

Foi assim que, ainda pequeno, fui contado sobre a batalha de Köm, quando Kpänsau Na Ysna, em vida, era comandante de Baraka Garandi [barraca grande] , o quartel-general daquela ilha.

Eu tinha apenas 10 anos, em 1980, quando ouvi, hipnotizado, meu tio N’tchaagň, um dos guerrilheiros e testemunha ocular da batalha, relatar-me os acontecimentos de Köm. Minha pergunta foi simples, mas carregava a curiosidade de uma criança:

− N’tchaagn, abala a ba hër a Köm? (“N’tchaagň, como foi a guerra de Köm?”)

Depois de um jantar simples, numa cabana, com arroz e peixe, ele tomou seu vinho de cíbi [cibe, palma] , feito artesanalmente pelos anciões B’ráassa, e retrucou-me com voz firme:

− M’bana Bláthë, Köm key won nhunthë! (“Bláthë, não deve lembrar-se de Köm.”)

Olhou para o espaço, como se carregasse toda a fúria e a dor da memória. Ficou alguns segundos em silêncio, pensativo, e então começou o conto.

Com seu sotaque Brassa, disse:

− Köm... Köm e Kation...[Como e Catió]

Percebia que precisava de explicação: ele continuou, com paciência:

− Como você ainda não sabe, Köm é um dos setores de Kation. Ou seja, Catió. Do porto de Köm até aos nossos esconderijos distam apenas 7 km.

Durante os combates, alguns portugueses descreveram Köm como uma ilha maldita; para outros, uma ilha que fazia os cabelos de qualquer um ficarem em pé, disse tio N’tchaagň, com olhar distante, lembrando-se dos horrores e da coragem vivida.

− De Kation até a ilha, eu não sei ao certo. Mas imagino que seja uma distância de 15, 20, no máximo 30 km. E… como os portugueses estavam aquartelados em Catió, não podiam tolerar a presença de ‘terroristas’ — como nos chamavam, nós do PAIGC, naquela época pelos portugueses − prosseguiu o tio N’tchaagň.

Era uma afronta para o exército português conviver lado a lado com um inimigo indesejável. Além disso, Brandão [Manuel de Pinho Brandão] , um comerciante português, tinha um comércio florescente, quase sem concorrência, ao contrário dos comerciantes libaneses que dominavam boa parte da Guiné-Portuguesa. Portanto, era interesse dos portugueses nos expulsar de Köm definitivamente, para assegurar sua hegemonia.

Tio N’tchaagň deu uma pausa, tomou um gole do seu vinho de cíbi, e se calou. Eu, criança curiosa, olhava para ele ansioso, esperando que continuasse o conto. Ele percebeu meu olhar e, com um leve suspiro, retomou:

− E, o comandante Kpänsau Na Ysna sabia disso. Além dos informantes que nos alertavam sobre os movimentos e intenções dos tugas na ilha, ele próprio era um homem inteligente, estrategista de guerra, guerreiro nato, corajoso como poucos que já conheci e intransigente quando se tratava de defender nossa posição. Não gostava de perder.

Eu, N’tchaagňs, nunca conheci igual. Cada um dos nossos comandantes tinha seu jeito de comandar, mas Kpänsau permanece uma lenda em minha mente até hoje − disse, com a voz sufocada, tentando disfarçar as lágrimas que brilhavam entre suas pálpebras avermelhadas de emoção.

Eu, sensível como sempre, ao vê-lo tomado pela emoção, senti minhas próprias lágrimas brotarem.

− Bláthë! — chamou-me carinhosamente pelo codinome e prosseguiu:

− Kpänsau não estava dentro de Köm no pré-anúncio da batalha. Estava em missão fora da ilha. Pelo que sei, não muito claro, ele se encontrava próximo a M’brüi (Caboxanque), Tchüm-Kpáss (Cadique) ou Yembrém [Jemberém].

De lá, sabendo que Köm seria atacada pelo exército português, apressou-se a voltar, andando na maioria das vezes à noite, atravessando Tchüm-Kpáss (Cadique), Flágck-N’ñandy (Ilhéu de N’fandá), Kybíl, Katün e, ainda, pântanos e bolanhas — os campos agrícolas — até chegar dentro de Köm.

Quando Kpänsau finalmente chegou, M’bana, a guerra já havia começado, no dia 14 de janeiro, uma terça-feira. Comandante N’Dìnè Na Abarrna já foi atingido e morto. Mas comandante Guádn Na Ndamy e Biohctá Na M’bátcha, asseguraram as rédeas da guerra como líderes de grupos que já estavam na ilha.

Mas, misteriosamente, Kpänsau caiu enfermo. Suas pernas incharam, e ele não conseguiu andar por duas semanas. Para não criar alarde ou pânico entre os soldados — e muito menos entre os inimigos — ninguém sabia da sua doença. Apenas Biohctá Na M’bátcha e alguns outros líderes conheciam o segredo do lendário comandante.

Perguntaram a ele se seria melhor evacuá-lo de Köm, mas ele esbravejou com voz determinante:


− N’keia yânta. Bitën luza. Bbürtikìz tën luza. Köm ka wínbu. (“Não saio daqui. Quem tem que ir embora são os portugueses. Köm é nosso.”)

Pouco depois de duas semanas, recuperou-se do inchaço e estava pronto, invicto, para uma missão que parecia quase impossível de realizar.

Não podemos dizer que Kpänsau fez tudo sozinho, M’bana. Reconhecemos três nomes que foram fundamentais: o próprio Kpänsau, Guádn Na Ndamy e Biohctá Na M’bátcha — bravos colegas que sempre estiveram por perto, obedecendo ou questionando quando necessário. Contudo, as decisões partiam dele, como comandante em chefe.

Ao entardecer, quando o crepúsculo começava, chamava Biohctá Na M’bátcha para tomar vinho de palma, aliviar a tensão do dia trabalhoso, analisar as ações já desencadeadas e preparar-se para o dia seguinte.

Tio N’tchaagn parou e me pediu que levasse vinho de cíbi ao seu primo, na varanda da casa ao lado. Fui e voltei rápido. Já tinham se passado 16 anos desde que a batalha havia ocorrido, mas o homem combatente, N’tchaagň, como contador nato de histórias, lembrava com detalhes cada episódio dirigido por Kpänsau Na Ysna.

Continuou, com a voz firme:

− O exército português batizou a guerra contra Köm de ‘Operação Tridente’. Nas suas imaginações, queriam recuperar não só Köm, mas também Katugn, Cayar — onde ficava o batalhão da força portuguesa, fornecendo reforços a qualquer pelotão — e até se instalaram em Kônghan.

Estrategicamente, posicionaram-se no porto de Köm, Katchil, N’komny, Kônghan — onde se instalou o general português que dirigia a operação. Mas nada disso intimidou o lendário, pois os portugueses desconheciam, e ainda subestimavam, o poderio e o grau de organização de Kpänsau Na Ysna com seus homens, já bem posicionados, sobretudo na tática móvel, que ele dominava como poucos.

Tio N’tchaagň já estava cansado. Passavam das 23 horas, e, tomado pela embriaguez, pediu para interromper o relato. Parou, e eu fui dormir. Empurrei a porta e minha mãe perguntou:

− Você ainda não dormiu, M’bana?

Não respondi, com medo de levar um açoite, e passei silencioso para o quarto. Minha mente ruminava todas as palavras, percorrendo a história inteira, até que o sono me venceu.

Dois dias depois, tio N’tchaagň pediu que eu relatasse novamente tudo o que havia ouvido sobre Kpänsau. Repiti tudo. Ele aprovou e disse:

− Ótimo, bom menino. Guarde bem, para que ninguém te conte outra história que não seja esta.

Prosseguiu:

− Kpänsau organizou seus homens em dois grupos diferentes.

O primeiro grupo era armado de guerrilha e fixo em áreas territoriais específicas. Esse grupo defendia o espaço aéreo de Köm, instalava a defesa antiaérea e improvisava um hospital subterrâneo. Possuíam armamentos sofisticados que os tugas não imaginavam que tivéssemos.

Ao todo, éramos 300 guerrilheiros contra mais de 800 homens da força portuguesa. Uma desigualdade evidente, claro, com vantagem para os tugas. Além de números superiores, eles tinham armas de maior quantidade e qualidade, aviões, navios e pequenas embarcações para se deslocarem à vontade — facilidades que nós não possuíamos.

− Nós tínhamos armas que começavam a se igualar a algumas deles. Mas a distância entre nós e as armas, que ficavam na fronteira de Conakry, era enorme. Transportá-las até nós era uma dificuldade enorme. O único transporte disponível eram pessoas dispostas — ou obrigadas — a ir a pé buscar armas e munições na fronteira com a Guiné-Conakry.

A viagem para buscar munições durava quatro a cinco dias, se o grupo não encontrasse tugas no caminho. O percurso saía de Köm e passava por: Wedë-Kaya ou Kantônaz, Ndin-Welgglè, Kandjóla, Kan, Kangnha-Ley, Katché, Kambíl, N’gháfu, N’thâne, Banta-Silla, N’dala-Yèll, Sambassa, Linga-Yèll, N’tchintchedaré, Yeng — até a fronteira de Conakry.

Essa distância em linha reta é de aproximadamente 160 a 200 km, mas, como os viajantes precisavam contornar rios, pântanos e territórios hostis, acredito que percorram 200 a 230 km.

Imagina, M’bana, percorrer essa distância carregando munições pesadas na cabeça… às vezes com fome, apenas bebendo açúcar cubano dissolvido em água? Não posso deixar de mencionar Kidèlé Na Arítchgň, herói desta história. Devo contar um pouco sobre ele, nessa situação das munições.

Quando as munições chegavam ao porto, introduzi-las na ilha era ainda mais difícil do que a própria luta. Os tugas vigiavam toda a volta de Köm, dia e noite, atentos a qualquer tentativa de reforço. Literalmente, ninguém se atrevia a atravessar o mar para a ilha.

Foi aí que surgiu Kidèlé Na Arítchgň. Ele carregava as munições numa B’sahë Në Brassa — a canoa tradicional Brassa/Balanta — e remava atravessando um mar perigoso, vigiado incessantemente pelas tropas inimigas.

Kidèlé conseguiu atravessar o mar várias vezes, sem jamais ser flagrado pelos tugas. A pergunta que não se cala até hoje é: “Como nunca encontrou tugas?” Será milagre? Coincidência? Talvez. Não é à toa que seus pais o chamaram de Kidèlé, que em Brassa significa literalmente 'Milagre'. E, de fato, um verdadeiro milagre aconteceu no abastecimento da guerra da ilha, graças a ele.

Kpänsau sabia da força do inimigo. Admitia a inferioridade numérica e material antes de encarar a batalha, mas soube provocar os tugas, desgastando-os física e materialmente. Até mesmo simples silhuetas de soldados falsos, colocadas na escuridão da noite, faziam os tugas gastarem munições desnecessárias.”

− Conseguiu colocar muitos combatentes inimigos fora de combate com apenas dois ou três guerrilheiros. Seduzia e deslocava a marinha portuguesa para desembarcar de um lado, quando, na verdade, nós, homens de Kpänsau, estávamos posicionados do outro.

No tabuleiro de guerra, procurava sempre deixar as peças do adversário vulneráveis, para obter vantagem. Por exemplo, fazia com que os fuzileiros tugas desembarcassem ilusoriamente em pântanos enlodados, que dificultavam sua movimentação, ou em caminhos estreitos de mata densa, através de alarmes falsos. Quando os tugas caíam nessas armadilhas, era hora de nós, homens de Kpänsau, tirarmos vantagem, derrotando e danificando o maior número possível de inimigos ou de seu armamento. Daí surgiu a expressão: “tuga ka pudi anda na lama” — os tugas não sabem andar no lodo.

Kpänsau conhecia todos os espaços favoráveis a nós. Por isso, não admitia que a marinha portuguesa se aproximasse ou controlasse esses locais. Sempre atraímos os tugas para o lado do lodo, mangue, traves fechadas e clareiras seguidas de mato denso, onde os homens de Kpänsau estavam fortemente armados.

Sua firme postura na luta de Köm encorajou até as mulheres a dispararem contra embarcações portuguesas que ousassem avançar pelos rios da floresta adentro.

O céu da ilha estava coberto de fumaça, resultado dos disparos de canhões a partir de Kayar, Kônghan e Kambontõ contra nós em Köm. E por terra, homens, mulheres, jovens, crianças e, claro, 300 guerrilheiros liderados pelo lendário Kpänsau Na Ysna, não arredavam pé de onde estavam.

A população de Köm sofreu. Mães com crianças de colo amamentavam enquanto tentavam sobreviver. Quando os bebês choravam, a força portuguesa respondia sem piedade, metralhando ou lançando morteiros e bombas napalm contra o local, matando civis indiscriminadamente.

O povo de Köm viveu situação desumana por 75 dias. Djigân (bicho de pé) e lêndeas de piolhos infestaram pés e cabelos das pessoas. Muitos abandonaram a ilha, desacreditados, chamando Kpänsau de “Balanta teimoso”, acreditando que não venceria a guerra contra os brancos.

Chegaram relatos dizendo que Amílcar Cabral pediu que Kpänsau e os guerrilheiros em Köm abandonassem a luta, para poupar a população civil do massacre que as tropas coloniais praticavam. Mas Kpänsau, intransigente, meneou a cabeça e dizia: “Wisaguë Kanã” (não acredito nisso). Ignorou a ordem e prosseguiu seu trabalho, certo de que a vitória estava próxima.

Como se não bastasse, M’bana, um dos nossos soldados recebeu informação triste no dia 19 de fevereiro, quarta-feira de 1964: os tugas queimavam deliberadamente o arroz do Brassa, para impedir a persistência dos guerrilheiros do PAIGC. Sabiam que nós, Balanta, éramos mais de 90% da guerrilha, e produtores de arroz de excelência, essenciais para alimentar os combatentes.

− O que eu, N’tchaagň ?!− esbravejei com lamento.

− ‘Hack N’ghala, biotë bìg impanpan ni Bifilá, Biafadá kinë a binalú… bë thëd malu ni Brassa tida! Hack, Bëbábm match bu! Weñan miin yá ki Brassa a bi ka hera.’ ("Meu Deus! Ignoraram impanpan de Fulas, Biafadas de Quinára e de Tombaly… só queimam arroz dos Brassa! Então, os tugas nos detestam! Já está claro que declararam guerra a nós, Brassa!") [Impampan ou pampan, em crioulo, arroz de sequeiro] − dizia N’tchaagň, horrorizado, lembrando daquele episódio.

No dia 20 de março, sexta-feira de 1964, quatro dias antes de terminar a guerra, recebemos mais uma informação: os tugas estavam matando bois e vacas em Katün, a tiro, deliberadamente, sem levar a carne. Era destruição clara, com a intenção de causar prejuízo ao nosso povo.

Sempre, durante a guerra, as vacas e os bois dos Brassa serviam de alimento para eles. Sempre que invadiam terras Brassa, pilhavam, saqueavam, matavam, mas escolhiam os melhores animais para consumo em seus quartéis. Agora, ao perderem a guerra, matavam sem levar nada. N’tchaagň se horrorizava contando isso para mim.

Nunca foram aos povoados de outros grupos étnicos para cometer tal destruição, pois representavam pouco valor para o abastecimento dos guerrilheiros do PAIGC.

Mas, num só dia, M’bana, antes mesmo de você nascer, o exército português queimou arroz nas tabankas de: Kablôn, M’brüi, N’ñaaé Thúe/Tchuguê, Kátche, Kângha-lei, Kibumbän, Kambyl, N’thäny, Saráck-Djaty, Saráck-Cull, Sambassa, Botche-Thãnthä, N’dala-Yièll e até o arroz do pai de Kpänsau em Banta-Sillá.

Ou seja, 14 aldeias dos Brassa sofreram perdas enormes, por serem tabancas que abrigavam armazéns e produzam arroz em larga escala para abastecer os guerrilheiros.

Isso chegou aos ouvidos de Kpänsau, que permaneceu em silêncio por um instante antes de responder ao informante:

−Wìì biotte Bin hera ki bo? Wil wólo kei bo tchóhg-na sifá kë sif-bu. Be mada thedá, bë kite thët, wetè kher ka herë kantë be-fida buidn ya bitën lusa ka botchi-bu. ("Por que não vêm nos combater? Nada vai nos fazer desistir do nosso trabalho. Que queimem arroz da nossa população, mas a guerra vai prosseguir até que entendam que têm que sair da nossa terra.")

O abuso que as tropas coloniais cometiam ao matar civis doía profundamente em Kpänsau. Mas ele sabia que era guerra psicológica, pregada pelos homens de Salazar, para intimidá-lo e fazê-lo abandonar as armas.

Kpänsau não se abateu e manteve firme seu propósito de libertar o povo. Circulava pessoalmente pela linha de frente, observando cada detalhe da batalha. Não era um comandante que apenas dava ordens do quartel-general. Ao chegar à linha de frente, via alguns combatentes famintos, que não comiam há dias, misturando apenas açúcar cubano com água para continuar entrincheirados.

Encorajava-os com palavras de coragem:

− ‘Herá, botche-bo win! ("Lutemos, a terra é nossa!")

O dia de Kpänsau começava entre 5h e 6h da manhã, quando toda movimentação para mais um dia sangrento se iniciava. Instalado na Baranka Garandi — quartel-general do PAIGC — elaborava planos e decretava ordens para missões quase impossíveis.

No plano espiritual, Kpänsau era animista. Reuniu anciãos, anciãs, sacerdotes e sacerdotisas na Baraka Garandi, buscando proteção e vitória. No centro de adoração (Baloba, guardião da ilha de Köm), os sacerdotes faziam sacrifícios e consultavam o Baloba, enquanto as sacerdotisas, ladeadas por seu povo, murmuravam palavras inaudíveis, pedindo proteção para Kpänsau e seus guerrilheiros, que combatiam os tugas ferozmente.

As árvores, M’bana, testemunharam durante 75 dias tudo o que hoje te conto. Assim foram os dias de 14 de janeiro (terça-feira) a 24 de março (terça-feira) de 1964, na ilha de Köm.

Antes de terminar, [eu, M’bana N’tchigna] faço um pequeno esclarecimento.

Vamos escrever a nossa história como ela realmente aconteceu. Já ouvi muitas pessoas tentando associar a vitória de Köm ao ex-presidente Nino Vieira. Uma coisa é verdadeira: general Nino Vieira foi comandante de frente Sul, sim, por um período.

Mas, de acordo com relatos de vários combatentes, Nino não lutou na batalha de Köm. Estava em Conakry. Perguntei a N’tchaagň, que confirmou: realmente não viu Comandante Nino Vieira em Köm durante os 75 dias de combates, e não soube precisar o que Nino estava fazendo em Conakry, afirmando apenas que ouviu dizer que ele estava internado por motivo de doença.

Com todo respeito aos meus leitores: não sou dono da verdade absoluta. Se alguém tiver outra versão sobre Köm, em que Nino realmente participou e dirigiu a luta, entre em contato comigo. Eu, M’bana N’tchigna, transferirei essa homenagem a ele, pois o justo é justo.


Conclusão:


Mbana Ntchigna,
Brasil, 2018

Enquanto isso, só posso concluir, em breves linhas, que render homenagem a Kpänsau Na Ysna é mais do que homenagem. É devolver louros a quem realmente merece. E é, sobretudo, um olhar profundo em direção ao resgate da nossa história.


M’bana N’tchigna, Mestre em Políticas Públicas.

Fonte: página pessoal de M’bana N’tchigna, no Facebook > 6 de dezembro de 2025.

(Revisão / fixação de texto, links, itãlicos, parênteses  retos, edição de imagem: LG)


2. Comentário do editor LG:

M'bana N'tchigna é um "intelectual balanta da diáspora", que estudou e vive no Brasil.

(i) Perfil académico e profissional: formação: possui licenciatura  
em Filosofia, bacharelado em Teologia e mestrado em Políticas
 Públicas (Dissertação de 2017: "A educação no processo de libertação 
da Guiné-Bissau: a percepção de Amílcar Lopes Cabral");

(ii) Atividade Principal: é (ou foi professor do ensino secundário, onde leciona(va) a disciplina de Filosofia;

(iii) Residência: vive em Vila Velha, Espírito Santo, Brasil. 

(iv) Temas de interesse: etnia Balanta: é um notável representante da etnia Balanta na diáspora, sendo autor do blogue "Intelectuais Balantas na Diáspora"; tem escrito sobre o tribalismo, a cultura,a  história, e as questões sociopolíticas que afetam os Balantas e a Guiné-Bissau.

(v) História e memória: M'bana N'tchigna tem procurado preservar a história e as histórias, não escritas, do seu povo, como esta, sobre Kpänsau Na Ysna  ou Pansau Na Isna (1938-1970),  um dos  "heróis da liberdade da Pátria" cujos restos mortais repousam no panteão nacional, na Fortaleza da Amura, em Bissai. (A sua principal fonte de informação sobre este caso foi o  seu tio N'tcháagnň, que lutou ao lado de Pansau na Isna, na ilha do Como, faleceu em 2006).

(vi) Questões nacionais: tem escrito sobre temas cruciais para a Guiné-Bissau, como a produção agrícola (nomeadamente o arroz) e a necessidade de erradicar a fome e a pobreza.

M’bana N’tchigna  tem utilizado as redes sociais  para dizer o que pensa do  futuro e d os desafios políticos, económicos e sociais do seu país. Tem página no Facebook, Mbana Ntchigna (donde reproduzimos esta versão, mais recente, sobre o  "herói do Komo",   em registo de "conto popular  africano") (*****)
_________________

Notas do editor LG:

(*)  Vd. poste de 12 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (1938-1970) (Luís Graça)


(**) Vd. Symes, Peter (2000). «The Bank Notes of Guinea-Bissau») (ogionalmente publicado nio International Bank Note Society Journal, .Volume 39, No.1, 2000). (Revisto e atualizado em novembro de 2000).

Guiné 61/74 - P27507: Tabanca dos Emiratos (17): Prova de vida renovada (Jorge Araújo)















Seixal  > Corroios  > Alto do Moinho > Pavilhão Gimnodesportivo Municipal do Alto do Moinho > 18 de outubro de 2025 > Sessão de lançamento do livro de Jorge Alves Araújo sobre a história dos  50 Anos do Centro Cultural e Recreativo do Alto do Moinho (1975 - 2025), 2º volume

Fotos (e legendas): © Jorge Araújo (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].





Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); a viver há uns anos entre Almada e Abu Dhabi, Emiratos Árabes Unidos; e é um dos nossos coeditores; como autor, tem 345 referências no nosso blogue; anima várias séries: "Tabanca dos Emiratos", "Memórias cruzadas...", "(D)o outro lado combate"...


I. Mensagem do Jorge Araújo:


Data - domingo, 16/11/2025, 16:52
Assunto - Prova de vida renovada


Caro Luís, boa tarde, desde as Arábias (aqui são mais 4 horas).

Antes de mais, esperamos que estejas bem, ao mesmo tempo que agradeço, em particular, a tua mensagem de parabéns.

1 - Como deixei expresso no espaço reservado a "comentários", nesse fim-de-semana viajamos até Doha, no Qatar, que durou 50 minutos, com o objectivo de romper com as rotinas negativas e/ou cansativas, para usufruir, o melhor possível, de outras ofertas culturais de um país que nos está próximo.

Aqui procurámos gerir a estadia de 3 dias, andando percursos a pé, de metro e de táxi, conforme os locais e os objectivos das visitas.

Mas o ponto alto da viagem era, e foi, a de comemorar uma efeméride, ou seja, a comemoração das minhas setenta e cinco "primaveras" (no Outono)... ainda faltam mais vinte e cinco para o centenário.

2 - Uma vez que possuo algumas dezenas de imagens, como seria natural, peço-te que me digas quantas devo incluir em cada uma das partes? Ou apenas uma só reportagem?

3 - Quanto à minha fraca participação no fórum, ela tem sido influenciada pelas sucessivas mudanças de actividades, algumas delas bastante problemáticas, onde se incluem as ocupações profissionais dos mais jovens, ao facto da minha filha ter ficado viúva, e de outros factos de pequenos/grandes detalhes que o destino faz questão de nos presentear. 

Não estou a desculpar-me, mas a situação de andar aos "saltos" de um lado para outro (Almada-Abu Dhabi-Almada) não ajuda.

4 - Acresce referir que, em função de me ter voluntariado para escrever, e editar, a história dos «50 Anos do Centro Cultural e Recreativo do Alto do Moinho» (P-24254, de 26.04.2023), que será constituído por cinco volumes, um por cada década, só no passado mês de Abril me foi comunicada a aprovação do patrocínio do 2º. Volume (década 1985-1995). 

Este atraso obrigou-me a ficar retido em Portugal, para acompanhar a respectiva composição de 320 páginas até ao seu lançamento, que ocorreu em 18 de Outubro último, com voo agendado para o dia 21.



Qatar> Doha : Museu Nacional > Um candeeiro tipo petromax


5. Pelo exposto, sugiro a seguinte metodologia de publicação:

(i) Reportagem sobre a publicação do 2º livro;

(ii) Tema - Petromax, na sequência dos P-27384 e P-27425, pois encontrei vários exemplares no Museu Nacional do Qatar, em Doha, mas estes eléctricos (com lâmpada);

(iii) Retrospectiva temática da viagem.

Aguardo um feedback sobre a proposta acima.

Agora vou anexar algumas fotos do ponto (i) para selecionar, e do petromax, a enquadrar na visita ao Museu Nacional.

Boa semana e até breve.
Um abraço.
Jorge Araújo e Maria João.


II. Resposta do editor LG:

Data - domingo, 16/11/2025, 22:22

Jorge (e Maria João): Folgo em ter notícias vossas. Ao fim de bastante tempo, e com mares (e guerras) a  separar-nos nem tudo o que me contas são coisas boas. A morte do teu genro (ainda novo, presumo) abalou a família, e sobretudo a tua filha (que deve ter filhos, teus netos).

Já todos passámos por diversos "lutos". A minha mulher, por exemplo, ainda não ultrapassou a perda da sua irmã mais querida, e já lá vão dois anos e meio. A vida nunca mais é como dantes,
quando a morte bate à nossa porta.

Mas temos de tratar dos vivos e fingir que somos... "imortais". Por isso, tu é que vais definir
as tuas prioridades (em relação ao blogue). E, se quiseres mandar-nos colaboração (que será sempre desejada e bem vinda), segue a tua "bússola" e o teu "mapa de navegação".

Mandas as fotos que entenderes (com boa resolução, como estas que anexas), de preferência com 0,5 MB ou superior. Não edites nada em pdf, dá-te uma trabalheira a ti e a mim. Prefiro que mandes o texto em word. As imagens, numeradas (com as legendas) no texto, devem vir em anexo, como estas que mandaste por mail. Desde que tenham  legendas (incluindo local e data), eu oriento-me. E depois edito, texto e fotos...

Carpe diem. E parabéns pelos 75 anos "resilientes".  Chicorações para os dois. Luís

_________________

Nota do editor LG:

Último poste da série > 4 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26552: Tabanca dos Emiratos (16): Visita nas férias de Natal ao antigo Ceilão, a Taprobana de "Os Lusíadas", hoje Sri Lanka (Jorge Araújo) - Parte IV