sexta-feira, 2 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18373: Notas de leitura (1045): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (24) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Estamos em plena guerra, a economia e o sistema financeiro da colónia entraram em retração. Data de 23 de Setembro de 1940 um documento espantoso enviado para Lisboa sobre um serial killer que deixa bem claro que a ideia feita sobre a pacificação tinha profundas fissuras, os Papéis ainda sonhavam em liquidar o poder dos brancos na ilha de Bissau, andavam também acirrados com os Mandingas e o documento termina numa completa hilaridade, quando um grupo veio reclamar o corpo do régulo, vinham de camisas castanhas, o administrador mandou uns tiros para o ar e quis prender gente, julgava tratar-se de uma arruaça do tipo nazi, os tais camisas castanhas que espancavam opositores e destruíam os estabelecimentos dos judeus... enfim, um episódio de ópera bufa.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (24)

Beja Santos

Aproximamo-nos da II Guerra Mundial, certos assuntos que irão ser versados na correspondência entre o BNU da Guiné para Lisboa prendem-se com o entendimento das modificações que foram ocorrendo desde a governação de Leite de Magalhães (1927-1931). Viu-se como a chamada “revolta da Madeira”, de Abril de 1931 teve ressonância na Guiné, os republicanos em 17 de Abril tomaram conta do quartel e de outras instalações públicas de Bolama. Fazemos uso do que escreve João Freire na sua obra “A Colonização Portuguesa da Guiné 1880-1960”, edição da Comissão Cultural de Marinha, 2017. Leite Magalhães e alguns militares não aderiram, foram presos e metidos no navio Maria Amélia com destino ao Funchal e Lisboa. Em Bissau, os insurretos tomaram conta da fortaleza e da estação da TSF. Fizeram proclamações, expediram telegramas, tentaram mesmo, sem êxito, aliciar Cabo Verde para que aderisse ao movimento insurrecional. Isolados pela derrota ocorrida na Madeira a 2 de Maio, os revoltosos aceitaram negociar. É nesta atmosfera que o Major de Artilharia João Soares Zilhão chegou às funções de governador de colónia e toma medidas administravas interessantes, a Guiné passa a ter uma nova orgânica, os concelhos de Bolama e Bissau e as circunscrições civis de Canchungo, Bissorã, Farim, Bafatá, Gabu, Buba e Bijagós. Recorde-se que no ano seguinte entra em vigor a “Carta Orgânica do Império Colonial Português”. Em 1934, Soares Zilhão é substituído por Carvalho Viegas. Aparece o serviço militar dos indígenas a quem serão fornecidos um calção de caqui, um jaleco de caqui, uma camisola e um barrete. No limiar da guerra, o governo de Lisboa determinou que a Guiné tivesse três Companhias de Caçadores, uma Companhia de Engenhos (pequenos veículos motorizados a lagartas, para todo-o-terreno, abertos e geralmente armados de metralhadora) e uma Bateria de Artilharia. O investigador João Freire refere que se manteve rotina na atividade administrativa-financeira, lançaram-se novos impostos sobre o património, os orçamentos da colónia mantiveram-se equilibrados. É a época em que aparece o transporte aéreo, chegaram os hidroaviões da Pan-American Airways, Carvalho Viegas era um extremo defensor destas linhas aéreas internacionais, considerava-as decisivas para o progresso da colónia.

A correspondência de Bissau, neste tempo, afina por outro diapasão, cuidando sempre de quem chega e de quem parte, lançando alertas quanto aos aspetos económicos e recriminando o funcionamento dos serviços. Veja-se um documento confidencial datado de 1 de Agosto de 1939 que tem por assunto “Autoridades – Tribunal Judicial” onde reza o seguinte:
“O Tribunal Judicial vai de mal a pior. Sem juiz de carreira há quase dois anos, têm passado por ele vários juízes interinos que, como é natural, apenas fazem o menos que é possível fazer-se. Há dias um escrivão desrespeitou e insultou o juiz interino e este, para não se incomodar mais, pediu a demissão informando o governo da colónia da vergonha que suportara, mesmo dentro do tribunal.
Foi chamado o segundo o substituo que, vendo o que de vergonhoso se está passando e não querendo ligar o seu nome honesto ao suspeito e rápido andamento que se está dando a um processo célebre e escandaloso, só para o criminoso ficar sem castigo para os seus gravíssimos crimes, se negou a entrar em funções.
Foi então nomeado juiz interino o senhor capitão do porto o que, e com razão, Bissau achou simplesmente espantoso, por muitos motivos.
Mas, para cúmulo de tudo e para o delegado efetivo não intervir no tal processo, nomeou-se delegado substituto um cabo-verdiano aqui conhecido pelo “Pé de Cabra”, nome este que o classifica. Trata-se de um indivíduo ainda há pouco não nos deixava à porta a pedir um lugar de praticante e que não nos podia merecer atenção devido a não nos merecer confiança, o nome o dizia.

É isto que o tribunal da Guiné chegou e, dando este aviso, queremos dizer a V. Exas. que se nós ou qualquer cliente tivermos necessidade de recorrer à justiça é melhor esperarmos que ela exista e expulse a desvergonha que vai naquela casa.
O tribunal, tal como está, é por e simplesmente uma extensão do gabinete do senhor governador.
À hora de fecharmos esta, soubemos que as forças vivas de Bissau, cheias de repugnância pelo que se passa no tribunal, quiseram telegrafar a Sua Excelência o Ministro e pedir providências, mas resolveram nada fazer com receio de vinganças absolutamente de esperar neste regime de meio terror em que aqui se vive e para que já não há nenhum apelo, ao que parece”.

Os relatórios anuais dão informações preciosas sobre os mercados, convém não perder de vista que a filial de Bolama mantém-se igualmente ativa e dá as suas informações de acordo com o território que cobre, mas já não ilude a apagada tristeza para que foi encaminhada. As informações económicas são de quem está muito atento, vejamos alguns exemplos:
“Couros – Tem estado ativo o respetivo negócio e os preços são bons. Os couros das regiões de Bafatá e de Farim (Fulas e Mandingas) continuam a ser os de melhor preço. Os das regiões de Mansoa (Balantas) e de Canchungo (Manjacos) têm menor preço. Os de Canchungo são os piores. Couros ressequidos e mal tirados, regra-geral são os que vêm do território francês.

Borracha – Tem tido procura aos preços de 4$50 e 4$60 a dos Mandingas e 5$ a de primeira, ou seja a dos Beafadas (Quínara). O mercado de Lisboa deve começar a precisar de borracha das nossas colónias por ter talvez dificuldade de a importar das colónias estrangeiras, do Oriente. Interessou-se o mercado de Lisboa pela nossa borracha e para lá foi alguma boa. Mas a Casa Guedes colocou uma partida de má borracha mandinga e deve ter, por algum tempo, desacreditado a borracha da Guiné. É a eterna ganância de fazer fugir os escrúpulos.

Cera – Mercado parado. Pouca vai aparecendo, extemporânea, e é paga a uns 9$00 por quilo.

Coconote – Se bem que não se esteja em tempo de negócios ativos, têm-se feito alguns. Regra-geral, os detentores revendem à Gouveia que carrega a granel nos barcos da Sociedade Geral. Outras entidades não podem carregar por não haver sacaria e por haver dificuldades de compradores em Lisboa, que os do estrangeiro não aparecem. A Companhia Agrícola e Fabril da Guiné, que trabalha na ilha de Bubaque, Bijagós, de aspeto português mas alemã na essência, está tratando de vender o seu coconote e azeite para a América, fazendo-os seguir – via Lisboa – pelo “Guiné”. Assim pretende dar saída ao grupo contra dólares que tem que por à ordem do governo alemão.

Purgueira – A “ferocidade” que o governo da colónia que vem aplicando aos detentores de terreno vulgo os concessionários, querendo por força que eles façam agricultura nesses terrenos, coisa que o governo da colónia não é capaz de fazer pelos seus erviços agrícolas e nas granjas onde se tem enterrado milhares de contos, obriga aqueles a defenderem-se, plantando purgueira a torto e a direito, pois é a única coisa que nasce e se desenvolve sem mais despensas nem cuidados além de se espetar a estaca no chão e colher dali a dois ou três anos”.

O gerente Virgolino Teixeira pretende manter Lisboa informado ao máximo mesmo quando os assuntos envolvem crime e animismo. Vejamos o documento enviado em 23 de Setembro de 1940 em que o assunto é marcadamente sensacionalista:
“Acontecimentos anormais”. E segue a informação:
“Por se tratar de factos passados, em parte, com gentio da nossa propriedade de Bandim, damos conhecimento do que se segue.

Há uns 10 dias, por uma circunstância de acaso, soube-se que tinha sido assassinado perto de Bissau um indígena que andava a vender panos pelo mato. Das averiguações, resultou-se conhecer-se que um outro indígena, ex-soldado do Corpo de Polícia desta cidade era o assassino mas, ao mesmo tempo, veio a saber-se que além desta morte, já tinha praticado, pelo menos, umas oito mais.
Preso, declarou então que procedia aos assassinatos por razões de ordem ritual, a instigação do balobeiro, ou seja o feiticeiro, do régulo da nossa propriedade de Bandim.
Declarou que ele tinha que matar um cento de pessoas, pouco mais ou menos, de todas as raças, incluindo quatro europeus. Com o sangue das vítimas, faziam então os régulos e os seus súbitos, por intermédio do balobeiro, oferendas ao Irã, seu Deus, para que este acabasse com o poder dos brancos na ilha de Bissau e tornasse a dar o poderio antigo dos Papéis da referida ilha.
Implicados em tudo, segundo o senhor administrador de Bissau nos informa, o régulo de Bandim e outro do Biombo e um chefe de Safim. Os dois primeiros foram presos e levados para o posto de Safim. O de Safim cortou a garganta para não falar. Está à morte. O de Bandim, no dia imediato à prisão, morreu. As autoridades dizem que teve uma congestão. O filho e outros indígenas contam que foi manducado (morto à paulada) pelos Mandingas do nosso ex-servente Borah, tenente de segunda linha e auxiliar do senhor administrador na perseguição e prisão dos culpados ou suspeitos. Vamos pela segunda versão”.

De acordo com este documento, havia um conflito latente entre Papéis e Mandingas. Mas outras surpresas estavam para vir, apareceram à porta do banco muitos indígenas de Bandim a solicitar, visto ser o banco o proprietário das terras onde moram, que se pedisse ao senhor administrador a entrega do corpo do régulo para se fazer o ‘choro’. O gerente de Bissau ficou intrigado por alguns desses Papéis estarem vestidos de camisas castanhas. Segue-se um episódio de uma quase ópera bufa. Apareceu o administrador que trazia um pedido do governador, ao ver aquela gente de camisas castanhas pensou que se tratavam de uma fação política, excitou-se e quis prender todos, os Papéis fugiram. Ficou um preso que esclareceu, estupefacto, que não havia nenhuma intenção de provocar motim pelo facto de usarem camisas castanhas. Não deixa de surpreender as apreensões do senhor administrador, sugerindo qualquer associação entre as camisas castanhas dos Papéis e porventura a tropa de choque dos camisas castanhas nazis…




Três magníficas imagens de um evento Felupe, propriedade da investigadora Lúcia Bayan, que prepara o seu doutoramento na história desta etnia. Vemos jovens lutadores rezando junto do seu Irã, uma cena de luta e depois um desfile, é uma apoteose de cor desta etnia djola, ciosa pela sua cultura e pelos valores da sua identidade.

(Continua)
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Notas do editor:

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Último poste da série de 26 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18356: Notas de leitura (1044): “Paralelo 75 ou O segredo de um coração traído”, por Jorge Araújo e Pedro Sousa Pereira; Oficina do Livro, 2006 (Mário Beja Santos)

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