O Crioulo da Guiné-Bissau (III)
As singularidades do Kriol da Guiné-Bissau
Beja Santos (1)
O crioulo da Guiné-Bissau suscita o maior interesse nos meios linguísticos, em África e no mundo. É a língua veicular de um povo, a língua franca num território onde se falam 22 idiomas étnicos, território esse que não excede a superfície do nosso Alentejo. É uma língua independente, em crescimento e complexificação, assimilando a toda a hora os termos necessários da nossa contemporaneidade. O ideólogo máximo do PAIGC, Amílcar Cabral, não só falava um português primoroso como deixou toda a sua produção científica e política redigida num português de elevada cultura, o que veio marcar a formação da Guiné como país dividido entre uma liga de comunicação comum, o crioulo, e o português, entendido como a língua da identidade nacional face ao universo francófono envolvente.
Para entender as raízes dessa língua espantosa, aprofundar o seu saber original, é importante ler o que de melhor se escreveu sobre este crioulo, o mesmo é dizer é indispensável ler “O crioulo da Guiné-Bissau, Filosofia e Sabedoria”, por Benjamim Pinto Bull, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989. No primeiro texto que dedicámos ao estudo que Pinto Bull dedicou ao crioulo do seu país, deu-se uma panorâmica dos diferentes falares crioulos, da intersecção entre o português e as línguas nativas, primeiro na Senegâmbia e depois na actual Guiné-Bissau, aflorou-se a colonização da Guiné para se revelar como se organizou e difundiu o crioulo nas praças e presídios, no tráfego de escravos e no comércio dos tangomaus ou lançados, na cultura dos grumetes ou assimilados. A grande singularidade é que a Guiné-Bissau é o único país de expressão oficial portuguesa onde coexistem sem sobressaltos as línguas africanas, o crioulo e o português. O surpreendente é que o crioulo é uma língua antiga e sempre renovada, recebe interferências linguísticas do francês, das línguas senegalesas, é riquíssima em provérbios, contos e adivinhas, o colonizador julgou mesmo no século XX que iria ser desvanecida a sua importância com o português, tal não aconteceu, o crioulo está reabilitado, autónomo, de boa saúde. Pinto Bull procura justificar como tudo aconteceu.
Primeiro, é impressionante o número de palavras crioulas nas relações e descrições dos viajantes e religiosos do século XVI ao século XX, o seu livro inclui o seu estudo pormenorizado no glossário. Logo no século XVII se observava o exótico multicolor da língua do país, referindo-se expressamente a palavra crioula. As descrições da fauna ou da flora, expressão nomes em crioulo, certamente por quem perguntava era esclarecido por negros e mulatos que dominavam fluentemente o crioulo. Os poucos períodos de sucesso missionário ocorreram quando os religiosos perceberam que a sua comunicação não podia prescindir centralmente do crioulo. Dos diferentes testemunhos evocados por Pinto Bull registo um do rei de Bissau, Incinhate, que se dirige ao governador Gomes Mena assim em 16 de Janeiro de 1697: “Sr. Governador, faço a V. Ex.ª esta carta para lhe falar mantenha”.
Segundo, coube aos grumetes a resistência cultural do crioulo. Em 1842, surgiu, um conflito entre o governador de Bissau e os grumetes da cidade. Dois anos depois, dá-se nova revolta, e os grumetes tomam a iniciativa de negociar a paz. A cerimónia decorre debaixo dos poilões, onde se resolvem os litígios – palavra, em crioulo. Poderá ser excessivo querer encontrar nas manifestações de revolta dos grumetes qualquer sinal de independência. O que os relatos deixaram claro é que houve resistência dessa gente que se expressava em crioulo e que queria ver a sua língua respeitada, a sua língua e a sua identidade.
Uma das maiores figuras do século XIX da vida política da Guiné foi Honório Pereira Barreto, um natural da Guiné que procurou defender a integridade do território sobretudo dos franceses e dos ingleses. Cabe a este homem que foi governador de Bissau uma expressiva definição do crioulo: “A língua do país é um dialecto da portuguesa, mas tão desfigurada que os Reinícolas não a entendem; além disso é recheada de muitas palavras derivadas do gentio”.
O primeiro cientista a estudar o crioulo foi o padre Marcelino Marques de Barros, natural de Bissau. Veio para Portugal com 12 anos, depois de ordenado padre em Cernache do Bonjardim, foi nomeado pároco em Bissau, percorreu a Guiné durante onze anos, veio a Portugal por motivos de saúde e regressou à Guiné onde permaneceu por mais oito anos. Deixou a sua obra espalhada por diferentes publicações como por exemplo o “Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa”. Correspondeu-se com linguistas de renome e escreveu obras ainda hoje de leitura obrigatória, tais como “Literatura dos Negros: contos, cantigas, parábolas” ou “Guiné Portuguesa ou Breve Notícia Sobre os Usos, Costumes e Línguas da Guiné”. É, historicamente, o primeiro estudioso do crioulo guineense, tendo mesmo organizado um vocabulário português/guineense, repertoriando 5420 palavras, deixando claro à comunidade científica que havia duas línguas aparentadas mas distintas: labra (cultivar), kume (comer), rema (remar), verbos que dão substantivos (labur, kumida e remu). No início do século XX, a alta sociedade do Cacheu fala informalmente em crioulo, cantado em crioulo, escrevia histórias em crioulo.
Terceiro, o colonialismo não compreendeu o crioulo e procurou discriminá-lo. Pinto Bull refere a Carta Orgânica da Província da Guiné (1917), o Acto Colonial (1930), o Acordo Missionário (1940), o Diploma legislativo n.º 1356 (1946), que constituíram tentativas de banimento de uma língua tida como uma algaraviada de gente inferior que para chegar à civilização deviam obrigatoriamente fazer um uso exclusivo do português.
Em 1954, Avelino Teixeira da Mota dá o sinal de alarme: “A difusão actual do crioulo – ainda que pese aos puristas e racistas – é um triunfo do português. Porque o crioulo, aqui, está em evolução, e cada vez se enche de palavras portuguesas”. Durante a luta de libertação, o PAIGC usou o crioulo como arma ideológica: nas escolas, na propaganda e mesmo na música (Musika k’ no na kanta luta de libertasõ, a música que cantamos é a nossa luta de libertação; Tempu di labur, tempu di kalur, tempo de trabalho, tempo de suor). Com a independência, o crioulo ganhou reconhecimento em toda a sociedade, tornou-se num instrumento de trabalho, apareceram poemas, obras didácticas, storia, adivinhas, banda desenhada.
Quarto, a prova indesmentível da sabedoria crioula é comprovado pelos seus provérbios, transmitidos em história e fábulas, em canções para ninar, e Pinto Bull recolheu-as graças a alguns contadores que o ajudaram no levantamento. São provérbios que falam da religião, da casa, da família, das relações humanas, do desentendimento, da vingança, das proezas, das viagens, das injustiças e da solidariedade. Vale a pena no próximo texto passar em revista alguns desses provérbios, fórmulas evocativas e até adivinhas. Eles constituem a prova provada de uma cultura admirável de grandes bibliotecas da narrativa oral onde se espraia o génio africano.
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Nota do editor
(1) Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).
(2) artigos relacionados em
5 Setembro 2008 > Guiné 63/74 - P3175: Antropologia (10): O Crioulo da Guiné. Mário Beja Santos
29 Agosto 2008 > Guiné 63/74 - P3154: Antropologia (9): O Crioulo da Guiné. Mário Beja Santos
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