Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 18 de setembro de 2008
Guiné 63/74 - P3216: História da CCAÇ 2679 (3): A primeira saída para o mato (José Manuel Dinis)
1. Mensagem do dia 16 de Setembro de 2008, do nosso camarada José Manuel Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, (Bajocunda, 1970/71), com mais uma das suas estórias.
Olá pessoal da tabanca!
Depois da descrição da viagem desde o Funchal até Nova Lamego, e daí para Piche, hoje envio o terceiro relato sobre a CCAÇ 2679: A primeira saída para o mato.
Lá vai.
2. A primeira saída para o mato
Por José Manuel Dinis
Em 22 de Fevereiro de 1970 a Companhia saíu para o mato numa primeira missão de reconhecimento da zona envolvente de Piche, identificação de alguns caminhos que, derivando da localidade, podem incluir trilhos de penetração do IN, sobretudo na direcção do Corubal. E servia para identificação e controle de comportamentos.
Os quatro pelotões, verdinhos, muito verdinhos, cautelosos na movimentação e manutenção das distâncias, de entre dois a três metros, silenciosos em geral, com os sentidos a quererem casar-se com o ambiente, mas descuidados, porque compactos em trilhos abertos, marginais a bolanhas, e condicionados pelo medo de enfrentar o mato, onde imaginávamos um turra em cada árvore, o perigo iminente.
Antes de sairmos, cada pelotão teve uma conversa breve, apelativa à calma, ao espírito de grupo e, se necessário, à resposta organizada a qualquer acção do IN.
Passei revista às armas e, relativamente a três ou quatro que desconfiei poderiam disparar sem nexo, por minha conta, retirei os percutores.
Com um pisteiro local a revelar-nos o percurso, iniciámos a marcha, particularmente atentos ao alinhamento dos que nos precediam, na intenção óbvia de evitar minas antipessoais ou outros engenhos. Lembro-me de ter visto uma granada defensiva, portuguesa, nova, a pouco mais de um metro da fila de pirilau, deixada cair por alguém que seguiria na frente, e pedi a quem ia na minha frente, em voz baixa, que passasse palavra a transmitir a ocorrência. Eu iria a meio da longa fila, pelo que, provavelmente, a mensagem não chegou ao capitão, e a granada lá ficou à espera de quem a levasse mais tarde. Pelo caminho matutei se seria uma situação fortuita, ou uma armadilha, e, nesse caso, eu era um dos habilitados à averiguação.
Ainda fui a pensar que deveríamos ter parado, mas, por outro lado, prosseguido, evitámos uma eventual situação de perigo. Embrenhado nestes pensamentos ocorreu-me a máxima transmitida pelo engenheiro, alferes-instrutor:
- Nunca se armem em parvos.
Este axioma adoptei-o como divisa pessoal no que concerne a minas e armadilhas. Mas eu tinha adquirido os conhecimentos, e a partir de então, mais tarde ou mais cedo, teria de os aplicar. Apesar disso, quanto mais tarde, melhor, e senti-me confortado.
A fila prosseguia como que indiferente.
O patrulhamento durou cerca de cinco horas, e aparentemente de pouco nos serviu, mas deu-nos uma ideia sobre o terreno, atenuou os primeiros medos, deixou indicações sobre o comportamento do pessoal.
O regresso a Piche foi a tempo de almoçar, pelo que, após as formalidades, dirigimo-nos à messe, um alpendre acanhado e desconfortável, onde não cabiam todos em simultâneo, nos antípodas das novas construções do aquartelamento.
Nós, os da 2679, fomos comer em segunda ou terceira leva, e o que nos foi servido, foi uma sopa leofilizada, com uns supostos e escassos pedacinhos de legumes a flutuar, e o caldo insalubre, praticamente ausentes o sal e o azeite. A seguir, foi servida uma pequena quantidade de bianda com estilhaços, em estado de pré-argamassa.
Nesta fotografia, evidencia-se o elevado moral das NT, superiormente autorizados a manifestarem-se contra a fome no mundo.
Para contrariar tão frugal refeição, funcionava ali à vista a casa Tufico, onde esportulei os primeiros pesos naquela terra, para pagamento da substantiva sandes e cervejola, a Superbock, que só conheci na Guiné. Depois seguram-se uns digestivos na Cantina, a acompanhar a cavaqueira das curiosidades.
O Serviço Postal Militar parecia ser a única infra-estrutura de apoio às frentes de combate que funcionava exemplarmente. O correio constituía o único elo de ligação com a Metrópole, por isso era tão importante, mesmo quando não adiantava nada, mesmo quando evidenciava o divórcio entre dos cenários de guerra com a indiferença na Pátria distante, mesmo quando transmitia noticias indesejáveis, como rompimentos amorosos.
Fomos informados, pela tarde, sobre a actividade operacional de cada grupo, a iniciar no dia seguinte, consubstanciada em montagem de embocadas, nocturnas e diurnas, patrulhamentos, operações, protecções a trabalhos nas picadas, escoltas em colunas auto, etc., acções que caracterizariam a nossa actividade naquele sector da Zona Leste, enquanto domiciliados em Piche.
Nesta fotografia pode apreciar-se uma parte do esquema defensivo de Piche, onde abundavam valas arejadas, a partir das quais, os façanhudos recepcionavam as maluqueiras inimigas, procedendo sem dó nem piedade à limpeza dos mais afoitos que, seguidamente, sugeitavam-se à aprendizagem dos bons ensinamentos do corão. Finalmente, a fraternidade celebrava-se com música.
Fotos e legendas: © José Manuel Dinis (2008). Direitos reservados
Pelas 21h00 chegou o bendito cabrito à suite três. Àquela hora, na Guiné, já a maioria do pessoal estava a descansar. Por outro lado, a situação inusitada não tinha a divulgação que gera os grandes quoruns, e, assim, eu, o Zé Tito, o Branco da Silva e, talvez mais um ou outro, tivémos que devassar o amplo tabuleiro, onde pontificava o preceituado cabrito, cheiroso e corado, acolitado pelas saborosas batatinhas, em cama de cebola e alho, com um piri-piri contido e adequado, tudo regado com um indiscutível vinho, que fez a nossa delícia. Claro, na suite nunca faltaram os géneros bebíveis, e alguém providenciou cerveja, vinho do Reno, wisky e Perrier, em dose generosa, que não se brinca com necessidades estomacais e dionísicas.
Adormeci satisfeito.
P.S. (Naqueles tempos felizes anda não havia P.S.) - Anexo outro mail com retratos alusivos.
Um abraço para o Pessoal.
José Manuel Dinis
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Nota de CV
(1) - Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3203: História da CCAÇ 2679 (2): A caminho de Piche (José Manuel Dinis)
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