Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 3 de junho de 2010
Guiné 63/74 - P6525: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (32): Diário da ida à Guiné - 14/03/2010 - Dia onze
1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 28 de Maio de 2010:
Caro Carlos:
Junto segue o relato do 11.º dia da minha viagem à Guiné.
Podes crer que, cada vez que escrevo um relato, me emociono, pensando sempre que as condições que lá usufruí provavelmente nunca mais se repetirão.
Faltam os relatos de três dias mas com coisas importantes ainda a referir.
Um abraço.
Fernando Gouveia
A GUERRA VISTA DE BAFATA - 32
Diário da Ida à Guiné – Dia Onze (14- 03-2010)
Nesse dia levantei-me às seis da Manhã, ainda noite, para ir à caça. Queria ver se surpreendia algum animal de médio porte no único charco das redondezas. Podia ser que ainda lá apanhasse algum retardatário a beber água.
Para não acordar os guardas que dormiam no “gembrém”, o meu pequeno almoço foi pão com queijo e água. Demorei trinta minutos a percorrer os cerca de três km até à lagoa que já conhecia bem. Embosquei-me nuns arbustos junto ao charco até que, já depois do Sol ter nascido, me convenci que mais nenhum bicho ia aparecer. Mas não perdi o meu tempo. Mais uma vez pude observar, a pequena distância, a passarada multicolorida que fazia da lagoa o seu local de sustento e de convivência animal. Foi delicioso observar o pica peixe, que empoleirado num galho, saía regularmente disparado para a água, trazendo sempre no bico um pequeno peixe.
Tendo ido mais além ainda vi um passarão castanho. Dei-lhe três tiros em árvores diferentes. Caíram folhas do ramo onde estava. Nada mais. No regresso fui ver a armadilha que tinha montado no dia anterior, e nada. Comecei a achar que o irã da floresta não queria que fizesse mal à bicharada.
Quando cheguei ao empreendimento encontrei o funcionário José a cozer coconote (chabéu) para o almoço em que tínhamos um convidado. Cá, o azeite quando acabado de fazer é de tal modo bom que até se utiliza para pôr no pão. Com o chabéu passa-se o mesmo. Há uma grande diferença entre um chabéu confeccionado com óleo de palma enfrascado ou com o óleo de palma obtido no momento de confeccionar o prato de chabéu.
Uma empregada a pilar o coconote (chabéu).
O coconote depois de cozido foi pilado e novamente fervido para separar o óleo da água, dos caroços e da polpa. Com esse óleo faz-se o chabéu propriamente dito à base de um refogado com cebola, tomate e um pouco de outros produtos locais, como quiabo, jakatu (parecido com o tomate verde mas só no aspecto), etc.
Ao centro pode ver-se o jakatu, parecido com o tomate verde.
O Chico já tinha ido a Bula comprar um cabrito, mas como não o conseguiu, trouxe quatro galinhas (15 euros). O chabéu iria ser de galinha. Também eu pensei que depois, à tarde, iria a Bula comprar duas calas (crioulo) ou sejam dois lenços grandes para as bajudas mais lindas do mundo: a de Bafata de há quarenta anos e a do Porto, a minha neta.
Cabe aqui lembrar (ver relato anterior) que eu tinha um convidado para o almoço, um empresário que, como referi no relato do 1º dia, me poderia dar possibilidades de trabalho (intelectual) o que talvez me proporcionasse umas idas à Guiné-Bissau. Entretanto o meu convidado telefonou a perguntar se podia levar também um amigo. Iriam portanto ser dois convidados.
Enquanto eles não vinham, andei às voltas com os mapas à procura da tabanca de Tabató, indicada pelo Luís Graça, como local de residência do grande músico Djabaté.
Entretanto verificámos que não tínhamos limões para o molho das ostras que tínhamos comprado para aperitivar. Fomos à pressa a Bula e lá, encontrámos os nossos convidados. Ficámos a saber, com surpresa, que o segundo convidado era um “governamental”, muito simpático, magro(!) e que durante o almoço e na longa conversa que se seguiu, demonstrou ser grande conhecedor da história de Portugal e da nossa literatura. A propósito de qualquer episódio da nossa história não se coibia de declamar, de cor, meia dúzia de estrofes dos Lusíadas. Como tenho vindo a referir ao longo destes relatos, além de muitos guineenses, incluindo antigos guerrilheiros, também este dirigente manifestou a ideia de que com Portugal estariam bem melhor do que na realidade estão. É triste que assim seja… Diga-se de passagem que filmei toda a conversa, que durante várias horas.
Um delicioso prato de chabéu.
Ao anoitecer ainda fomos, por indicação do Presidente da Ajuda Amiga Carlos Fortunato, à zona de Binar, falar com o chefe da tabanca de Encherte, nosso ex-soldado Branquinho, para saber todos os pormenores da possível construção duma escola. Já regressámos de noite. Jantou-se uma sopa de rabo de boi e pão com presunto (ao almoço tinha-se comido demais).
Como o aluguer do jeep não deu em nada, resolvemos ir no dia seguinte, eu e o Chico na carrinha, novamente à minha Bafata. Fomos portanto deitar-nos cedo.
Até amanhã camaradas.
Fernando Gouveia
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6473: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (31): Diário da ida à Guiné - 12 e 13/03/2010 - Dias nove e dez
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2 comentários:
P6525 FG
Já agora, transcrevo do poste anterior, as palavras do Fernando Gouveia, na Guiné, Março de 2010:
"Como tenho vindo a referir ao longo destes relatos, além de muitos guineenses, incluindo antigos guerrilheiros, também este dirigente manifestou a ideia de que com Portugal estariam bem melhor do que na realidade estão.”
" Sem qualquer nostalgia pelo colonialismo, que existiu e não se pode branquear, ai tenente coronel Benazol, ai Tangomau, aliás Mário Beja Santos! Abraço.
Graça Abreu
A propósito desta invocação/transcrição que o nosso camarada Graça Abreu faz de parte do Poste 6525 do nosso camarada Fernando Gouveia, sobre relatos que tem vindo a fazer aqui no blogue relativamente à sua viagem em Março que antecedeu uns dias da minha, tenho a dizer com todo o respeito que tenho por ambos meus amigos, que não ponho em causa a frase/afirmação do lamento que ele, Fernando Gouveia, ouviu do tal dirigente com quem conversou.
Lamentações dessas, ouço às milhares, quer na Guiné, ao longo das minhas visitas que faço aquele País irmão, quer aqui em Portugal da boca dos elementos que integram a diáspora guineense, bem como, tenho ouvido da boca de muitos outros, incluindo responsáveis …. Dizer que:
Portugal enquanto País ex-colonizador, deveria assumir a administração ou os destinos da Guiné.
Que a Guiné não se desenvolveu desde a independência e que regrediu 40 anos, o que significa um atraso de 80 anos no seu desenvolvimento, etc. etc. etc.
Enfim…. Muitas lamentações, que dariam para “escrevinhar muita coisa” mas que não cabe aqui desenvolver nem através de um Poste.
Apenas quero chamar à atenção, que temos de conhecer a realidade guineense, o que me parece, sem ofensa, que a maioria dos bloguistas não conhece.
Que a lamentação invocada/transcrita – lamentações ouvidas – resultam da situação difícil quer económica, social e política, situação real que infelizmente aquele País irmão se encontra e não há meio de sair daquele marasmo.
Mas a Guiné, como significa a expressão “Nô Pintcha” vai dar um salto em frente, vai para a frente, os guineenses têm essa esperança.
Com isto quero dizer e é a minha interpretação e análise da realidade, que a mencionada frase transcrita, não traduz uma vontade de ser português, de sentimento ou de nacionalismo português, pois os guineenses assumem-se como tal e querem ser independentes como Nação e País Soberano [Vejam a resposta que deram no conflito político-militar 98/99].
As razões ou fundamentos das lamentações que invocam, resultam apenas da situação sócio-económica em que se encontram, incluindo a maioria dos elementos que adquiriram a nacionalidade portuguesa por naturalização, pois mesmo esses, sentem-se guineenses e não portugueses, e não é/foi o estatuto formal que lhes é/foi concedido que lhes alterou tal sentimento.
Enfim, como acima referi ,haveria muito para dizer sobre esta matéria, mas não é esta a sede própria para se discutir esta situação.
Presentemente, se colocassem meios de transporte à disposição dos guinenseses que se encontram na Guiné, para virem para Portugal, ou para outro País desenvolvido, com certeza que a maioria sairia de lá, mas à procura de melhores condições de vida e não por querer abandonar a sua terra.
Com este comentário, também quero reiterar que é necessário conhecer a realidade, concreta deste povo irmão, isto também, para reforçar a ideia, que há dias deixei num Poste em resposta a outra observação relativa à “língua portuguesa estar em perigo na Guiné”
Com um abraço amigo
Carlos Silva Ex-Fur Mil CCaç 2548/Bat Caç 2879 - Farim
Obrigado Pai por parilhares mais estes relatos. É sempre diferente e divertido ler o que já nos disseste em conversa.
nuno
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