Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
Guiné 63/74 - P7250: (In)citações (17): Recordando Fatemá e Sambel Baldé, tenente de 2ª linha, régulo de Contabane (José Brás)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Sambel (ex-Contabane) > 2005 > Da direita para a esquerda: o Paulo Santiago, a Fatemá e o João Santiago.
Foto: © Paulo Santiago (2005). Todos os direitos reservados
1. Comentário de José Brás (ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, foto à esquerda), ao poste P7249:
A minha memória sobre a FATEMÁ, não é tão objectivamente clara como a que aqui aparece do camarada Santiago.
Há coisas da Guiné que me escapam hoje e penso mesmo que me escaparam sempre para minha desgraça pessoal porque tenho isso como uma lástima que não me aumenta razões para a consideração de outros nem de mim por mim próprio.
Tentando entender porque terá sido isso, quero crer que se deve a uma certa rejeição pela guerra e pelas razões da guerra e, nesse tempo, mesmo pelos seus intérpretes no terreno, apesar de também eu a ter assumido.
Por isso Fatemá era apenas a mais prestigiada das mulheres de Sambel [Baldé], tenente de segunda linha, homem que permaneceu a nosso lado, creio que até ao fim da guerra.
Dele, lembro cartas que escrevi para um seu filho que estava em Lisboa e que ele queria em Contabane para casar com uma mulher "negociada" pelo pai, coisa que gerou conflito de posturas porque o filho, tendo escolhido mulher, outra, já não aceitava a decisão do pai.
Lembro também do posto rádio que montei em sua casa com AN-GRC 9 para apoiar uma incursão da minha companhia na estrada que ligava a Madina do Boé, operação que deu apenas uma vítima, cobra com mais de 4 metros apanhada pelos soldados e cozinhada em Aldeia Formosa.
E também me lembro do embaraço desse dia, obrigado a partilhar o arroz de chabéu com galinha na mesma malga de madeira onde comiam Sambel e as suas mulheres da forma tradicional da Guiné.
Sei que muito soldado português partilhou experiências destas sem quaisquer dificuldades, mas para mim não foi agradável, coisa que, como disse já, sinto hoje como postura verdadeiramente lamentável na medida em demonstra a pouca adaptação que terei tido nesta experiência.
Abraço
José Brás
____________
Nota de L.G.:
Último poste desta série, (In)citações > 27 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7179: (In)citações (21): Os irmãos Turpin, José e Eliseu, "verdadeiros filhos da Guiné" (Luís Graça)
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4 comentários:
Zé:
Não sintas "só", prisioneiro no dilema de sentimentos... Eu, que sempre lidei com fulas, e fiz amigos entre eles, também tive que gerir sentimentos contraditórios, em relação a este povo e aos seus filhos... Sempre fiz uma distinção entre os seus chefes (semi-feudais) e os seus "súbditos"...
Pessoalmente nunca me aproximei de (nem sentia simpatia por) homens como o tenente de 2ª linha, Mamadu Bonco Sanhá, o poderoso régulo de Badora, que tinha uma motorizada, de 50 cm3, de marca japonesa, em vez do cavalo branco... (Desgraçadamente foi fuzilado em Bambadinca depois da independência; diziam que tinha 50 mulheres, uma em cada tabanca; e alguns filhos na minha CCAÇ 12, o que nunca confirmei nem estava interessado em fazê-lo)...
O seu "crime" terá sido apenas (?) o de ter apostado no "cavalo errado"... As autoridades militares de Bambadinca transformaram-no num mito... Veja-se por exemplo o que se pode ler na história do BART 2917 (1970-72):
(...) "No Sector L1 podemos considerar duas raças (sic) distintas: para Leste da estrada Bambadinca-Xitole onde predomina a raça Fula, e para Oeste da mesma estrada onde predominam as raças Balanta e Beafada.
"A população Fula de um modo geral é nos favorável, sendo de destacar o regulado de Badora, que tem como Chefe / Régulo um homem de valor e considerado pela população como um Deus. Esse homem é o Tenente Mamadu, já conhecido do meio militar pelos seus feitos valorosos e dignos de exemplo. Da outra população, fortes dúvidas se tem, especialmente as dos Nhabijões, Xime e Mero" (...).
O seu currículo é apresentado nestes termos:
"Régulo do Badora; Vogal do conselho logístico da Província; Comandante da Companhia de Milícias do CUOR;
Intitulando-se Fula, é considerado pelos Mandingas e Beafadas como Beafada, em virtude da ascendência materna; Pelos seus actos de valentia é condecorado com a Cruz de Guerra;
Régulo justo e especialmente preocupado com a segurança das suas populações; O seu prestígio transvasa em muito para além dos limites do seu Regulado; É um excelente colaborador das NT, parece representar o movimento dos FULAS NATIVOS" (...).
O Sambel Baldé, talvez devido ao seu "low profile", ou à sua habilidade política, ou à menor pequenez do seu regulado, terá conseguido gerir melhor o terrível período de "transição" que foi a nossa saída e os primeiros tempos de independência... Mas sobre isto gostava muito de ouvir a versão do Paulo Santiago...
Caro Zé Brás
Afinal, és uma pessoa normal, como as outras.
Tiveste as tuas dificuldades de adaptação, ao meio, às culturas, às gentes...
E dizes isso sem 'engulhos', sem receio que possam dizer: "olha, então o Brás, sempre pronto a falar dos mais humildes, do povo, sentim embaraço no meio deles?".
Não, afinal não és como os outros, afinal revelas os teus sentimentos sem receios....
Um abraço
Hélder S.
Zé: Eu queria dizer:
Não TE sintas "só"...
Lidei, privei muito com os fulas, fiquei nas suas tabancas, mas também respeitei a sua privacidade... Com os balantas, infelizmente, não consegui criar qualquer "empatia"... A barreira da língua e da farda, além da pertença a uma companhia "fula", eram obstáculos intransponíveis... Havia tensão entre os fulas e os balantas de Badora... Julgo que "ajustaram contas" depois da nossa saída... Os malditos demónios étnicos ficaram na "caixinha de Pandora" que entregámos ao PAIGC... (E os guerrilheiros tinham uma caixinha destas, com outros ingredientes)...
Zé Brás, costuma-se ouvir dizer que o português adpta-se a tudo, mas há uns que se adptam melhor que outros.
A melhor adaptação é aprender o idioma, o que na Guiné não é fácil devido à proximidade das diversas etnias.
Mesmo o crioulo popular não é facil aprender em pouco tempo.
Dos portugueses que melhor se adaptava às diversas etnias eram os comerciantes que chegavam a ser os únicos estranhos às etnias que eram aceites por elas, embora a ideia de quem vinha da metrópole era a daqueles merceeiros das nossas aldeias que roubavam no rol.
Aqueles brancos que tinham sucesso naquela vida é porque eram estimados pelas etnias, aqueles que não se adaptassem tinham que desistir pois naturalmente havia uma selecção pela sentimento de segregação.
Zé Brás, houve português que viveu a vida inteira em África sem comer chabéu.
O que se passou contigo foi o que se passou com a maioria dos militares dos 13 anos de guerra.
Um abraço
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