sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15073: Notas de leitura (753): “Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau”, por Carlos Lopes, Edições 70, 1982 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Setembro de 2014:

Queridos amigos,
Sendo absoluto, ou quase o silêncio das artes plásticas sobre as guerras que travámos em África, a partir de 1961, parece-me ter todo o sentido referir aqui os desenhos de Melício, artista que eu desconhecia, apresentados numa exposição que realizou em 1997.

O livro de Carlos Lopes, um dos mais significativos pensadores da Guiné-Bissau, produziu em 1980, na sua fase académica, este estudo que, a despeito de incompreensíveis dislates para um investigador universitário, é ainda hoje uma referência obrigatória para o estudo dos desmantelamentos do ideário do PAIGC, após a independência.

Um abraço do
Mário


A guerra colonial vista por Melício

Beja Santos

Foi uma exposição que se realizou no Museu República e Resistência, em 1997, intitulada “A Guerra Colonial”, desenhos de Melício. Melício (1957-) é escultor, designer e pintor, membro da Sociedade Nacional de Belas-Artes, professor de Artes Plásticas. Participou num número apreciável de exposições individuais, coletivas nacionais e internacionais.

Ninguém ignora que é escassíssimo o número de artistas plásticos que tenham ou se têm dedicado ao tema da guerra. Pela gama de desenhos que vêm publicados no catálogo desta exposição, e que tive acesso numa feira de promoções da Livraria Municipal, na Avenida da República em Lisboa, vê-se perfeitamente que Melício se documentou, viu inúmeras fotografias, observou posturas, quer dos combatentes portugueses quer dos guerrilheiros, as minas anticarro, os golpes-de-mão, os descarrilhamentos de comboio, as evacuações, são plausíveis. Melício, no final, e após revelar imagens de extrema crueldade, mostra a paz com imagem de um pássaro, é seguramente a resposta que o artista dá à guerra, à dor, ao silêncio e à morte. Como escreve Diva Morazzo na apresentação do catálogo: “A vitória do primeiro cavaleiro do Apocalipse conotada com imagem do pássaro-esperança-paz é preconizada pela capacidade potencial do traço crítico de Melício”. Vejamos agora uma amostra do seu desenho.




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Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau (1), por Carlos Lopes

Beja Santos

“Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau”, por Carlos Lopes, Edições 70, 1982, foi o primeiro trabalho de sociologia política, após a independência, assinado por um guineense. Foi inicialmente publicado pelo Instituto Universitário de Estudos do Desenvolvimento, em Genebra. Um professor desta instituição explica o que se pretende: uma explicação que permita compreender como é que uma luta de libertação nacional acabou por conduzir ao controlo do poder político económico pela burocracia do aparelho de Estado. Carlos Lopes afirma que o seu trabalho estava pronto muito antes do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, as suas conclusões não teriam sido influenciadas pelo golpe de Nino vitorioso. Ao virar da década de 1980 assistia-se a um refluxo dos movimentos de solidariedade na Europa, desencantados por não se reconhecerem ou reverem nos ideais dos dirigentes de muitos movimentos de libertação. Para a publicação das Edições 70, Carlos Lopes apresenta igualmente justificações: “O objetivo era mostrar que as contradições hoje existentes na Guiné-Bissau, ao nível do poder, eram a consequência lógica do afrontamento de duas conceções distintas: uma, ligada à experiência de conjugação e técnica originada na luta armada; a outra ligada à ideologia do aparelho de Estado nascido após a independência”. Carlos Lopes afirma que o seu exercício utiliza o aparelho conceptual marxista.

O seu primeiro olhar é sobre a história da Guiné, do passado remoto à independência. Na origem dos povos guineenses, revela-se um autor documentado, aliás a sua tese de doutoramento, anos mais tarde, andará à volta desta temática, e ainda hoje não foi ultrapassado. Tendo em conta este rigor, que é esperável de um trabalho universitário, não se compreende como é possível um autor deste gabarito de vez em quando asnear e deixar-se levar pela propaganda do PAIGC do tempo da luta, sem nenhum recurso ao contraditório. Vejamos um só exemplo: “Os portugueses sofrem a maior derrota militar na batalha da ilha de Como, no Sudoeste do país. Este ataque durou cerca de três meses e saldou-se pela morte de 650 homens”. Pouco aceitável é também o recurso à patranha de que Spínola mandara infiltrar o PAIGC de informadores, colaboradores diretos da PIDE, procurando explorar os incidentes, prometendo-lhe promessas de lugares de relevo num futuro Estado de cariz neocolonial. Afirmar isto na ausência absoluta de documentos, mesmo ainda sem haver acesso aos arquivos da PIDE/DGS, surpreende num investigador universitário. O PAIGC, aquando da independência, considerava que a principal vitória não fora a luta contra os portugueses mas antes a capacidade de construir uma nova sociedade, com novas relações, uma outra vida cultural, ao mesmo tempo que se lutava.

Outro despautério que desequilibra a investigação, e convém dizer liminarmente de que se trata de um trabalho ousado e incontornável para os estudos sobre a Guiné-Bissau, é a apresentação de um mapa referente a 1969, dando conta da evolução da guerra. Como todos nós nos recordamos, a propaganda do PAIGC não era peca nos números quanto ao controlo do território: era afirmado na rádio, nos comunicados e nos areópagos internacionais que cerca de dois terços do território eram controlados pelo PAIGC. Veja-se o mapa. Todo o Sul, com exceção de Bolama e dos Bijagós era considerada região libertada, mas também o Corubal, e a região de Boé; a região do Gabu era dada como zona ainda sob o controlo português; a região de Bambadinca era zona contestada, tal como um povo do território do Norte, acima do Gabu; todo o território da região de Farim até Mansoa era zona libertada; Susana, S. Domingos, Cacheu, Canchungo e Bula eram regiões contestadas; a península de Bissau e as ilhas próximas eram dadas como zonas ainda sob controlo português. Basta este mapa para se perceber o dislate da propaganda dos dois terços controlados e os números depois apresentados, em perfeita colisão. No entanto, o investigador não se pronuncia sobre a enormidade que salta à vista.


Passando para a racionalidade étnica, o autor procede ao estudo dos Fulas, aproxima esta etnia dos Mandingas e dos Manjacos, trata-se de uma sociedade vertical ao contrário das sociedades horizontais (caso dos Papéis e dos Balantas), sonda a sua vida socioeconómica e cultural e releva que em meados do século XX coexistiam diversos modos de produção no mesmo território, uns dentro do modo capitalista outros baseados em práticas de subsistência e troca. E em apartado novo explica as novas relações sociais surgidas após a luta armada. Amílcar Cabral, o ideólogo do PAIGC apostava na participação cada vez mais alargada da população, num novo tipo de relações que se desenvolvessem em todos os escalões da atividade social; dessa nova realidade social faziam parte “os armazéns do povo” onde se podia permutar produtos; criaram-se infraestruturas de saúde, deu-se prioridade à justiça popular. Era, no fundo, a aplicação prática do conceito que Cabral tinha para a mobilização para a nova cultura: o desenvolvimento da luta armada e a consolidação de novas estruturas sociais onde a exploração do homem pelo homem já não tinha lugar, era assim que se estava a criar a nova consciência associada ao processo revolucionário.

O autor analisa seguidamente a racionalidade do Estado. Havia o Estado numa perspetiva étnica: os Fulas fundamentavam o poder na sua religião, tal como os Mandingas; o Estado colonial funcionava num quadro típico do modo de produção capitalista; e havia o Estado surgido da luta pela independência que retirava a sua substância e as suas caraterísticas dos dois precedentes. O Salazar insistia que não havia discriminação entre os portugueses e os indígenas. Um dos mais importantes vultos da historiografia colonial, Charles Boxer, admirado e detestado pelas autoridades do Estado Novo, dizia sem rebuço que o império português fora sempre uma talassocracia dependente do comércio com o Oriente (especiarias), a África Ocidental (escravatura) e o Brasil (tabaco, açúcar e ouro). O autor revela fundamentação sobre o tráfico de escravos, as estruturas do estado colonial e como veio a ser introduzido o modo de produção capitalista na Guiné. Em contraposição, documenta a organização do PAIGC e de imediato, passando para a independência mostra como esta orgânica se revelou inadequada e ao arrepio dos sonhos de Amílcar Cabral. E tece críticas sem qualquer tipo de macieza:  
“O primeiro Governo nacional foi criado ainda durante a luta. Compreendia, entre outros, dirigentes que foram integrar o Governo cabo-verdiano formado depois da independência assim como membros da direção política do partido. A hierarquia posta em prática no seio do PAIGC, na base da participação e da contribuição à luta armada e política vinha a assentar sobre a do aparelho de Estado. A estrutura governamental privilegiava as decisões de natureza coletiva (…) Desde a independência e da tomada de controlo da administração que apareceram graves lacunas. A falta de conhecimentos em matéria de administração faziam-se cruelmente sentir dentro de certos meios responsáveis. Alguns destes optaram pela solução de facilidade e recorreram ao apoio dos antigos funcionários coloniais. Estes iniciam uma rápida ascensão no aparelho administrativo e alguns atingem mesmo o lugar de diretores-gerais ou de secretários-gerais nos ministérios. A sua influência era tanto mais forte quanto é certo que alguns ministros se demitiam das suas responsabilidades, ocupados que estavam noutras tarefas. A médio prazo, esta política do deixa andar permitiu o regresso de relações administrativas caraterísticas do período colonial”. E dá mesmo exemplos da rápida desagregação: “O que nos parece mais grave ainda é que certos ministérios chegaram mesmo a destruir o funcionamento democrático interno que os militantes do PAIGC privilegiavam. Um dos exemplos mais conhecido em Bissau é o de Fernando Fortes, cofundador do PAIGC, ex-comissário dos Correios e Telecomunicações, cuja atitude se assemelhava à de um colono do antigamente”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15058: Notas de leitura (752): “O Guardião”, por Fernando Antunes, Edição de Setembro de 2011 (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Manuel Luís Lomba disse...

Olá, Mário. A tua perseverança em nos manter "actualizados" sobre as coisas da Guiné é notável.
O dr. Carlos Gaspar não terá testemunhado, não "sentiu" a guerra da Guiné - concedeu-lhe interpretações tendenciosas. Na investigação para o seu livro podia falar com quase todos os combatentes da "Operação Tridente" e com Nino Vieira, homem acessível, a ouvir a sua narrativa do contexto em que foi e deixou de ser "presidente da república democrática do Como". Felizmente, ainda ainda poderá ouvir alguns, estou a lembrar-me (os visados que me desculpem) do Armor Pires Mota, oficial da CCav 488, do Mario Dias, sargento dos Comandos, do coronel João Ares, que ficou com a sua Companhia a nomadizar nessa ilha (prémio dessa derrota?)
Quando cheguei à Guiné, em 1964, O PAIGC já apregoava a libertação dois terços da Guiné, o nosso "vate" Manuel Alegre difundia a asserção e confirmava que a autoridade do governador e comandante-chefe se limitava a Bissau e Safim... Quando da declaração da independência, o PAIGC continuava a controlar dois terços da Guiné. O que andou a fazer durante 12 anos? Guerra desnecessária?
A guerra da Guiné libertou-a de Portugal; mas não libertou o seu povo...
Manuel Luís Lomba

Hélder Valério disse...

A propaganda é legítima, é uma 'forma de luta'.
Deu resultado.
Põe-se a questão se foi um 'bom resultado' ou não, mas isso são 'contas de outro rosário'.
Tal como escreve o Manuel Lomba, 'não libertou o seu povo...'
É pena que não procurem analisar as razões porque o povo guineense não melhorou, porque não foi diluído o 'tribalismo', porque não progrediu como Nação e como se pode caminhar no sentido da melhoria e, em vez disso, se continua a dar a primazia à 'propaganda', sem contraditório, o que acaba por desvalorizar o trabalho que, em si mesmo e até pelo facto de se debruçar sobre a questão das etnias e as relações de poder, coisas que são muito importantes, parecia ser um bom contributo.

Hélder S.

Ant' Rosinha disse...

Carlos Lopes, familia, Fortes, Pires, Cabrais e muitos mais, quando escrevem, tentam explicar/se a eles proprios, e o que faziam ali.

Mas apesar de toda a sua capacidade e intelig|encia, nao conseguem enganar/se a eles proprios.



antonio graça de abreu disse...

Diz o Mário Beja Santos:

"Outro despautério que desequilibra a investigação, e convém dizer liminarmente de que se trata de um trabalho ousado e incontornável para os estudos sobre a Guiné-Bissau, é a apresentação de um mapa referente a 1969, dando conta da evolução da guerra. Como todos nós nos recordamos, a propaganda do PAIGC não era peca nos números quanto ao controlo do território: era afirmado na rádio, nos comunicados e nos areópagos internacionais que cerca de dois terços do território eram controlados pelo PAIGC. Veja-se o mapa. Todo o Sul, com exceção de Bolama e dos Bijagós era considerada região libertada, mas também o Corubal, e a região de Boé; a região do Gabu era dada como zona ainda sob o controlo português; a região de Bambadinca era zona contestada, tal como um povo do território do Norte, acima do Gabu; todo o território da região de Farim até Mansoa era zona libertada; Susana, S. Domingos, Cacheu, Canchungo e Bula eram regiões contestadas; a península de Bissau e as ilhas próximas eram dadas como zonas ainda sob controlo português. Basta este mapa para se perceber o dislate da propaganda dos dois terços controlados e os números depois apresentados, em perfeita colisão. No entanto, o investigador não se pronuncia sobre a enormidade que salta à vista."

Digo eu: Não é apenas despautério e enormidade, é a falsificação completa da realidade que se vivia então na Guiné Bissau, os portugueses "entricheirados" nos seus quartéis, os homens do PAIGC (tão poucos guerrilheiros,de verdade contavam apenas com cerca de 3 mil homens permanentemente dentro da Guiné,contra 40 mil portugueses e quase 9 mil africanos combatendo do nosso lado)os homens do PAIGC tudo controlando. Até quando nos continuarão a vender ao desbarato estas balelas? É que ainda há quem acredite.Até no nosso blogue.
Recordo estes mesmos mapas, ou parecidos, que o nosso coronel António Marques Lopes (um abraço, meu amigo!)trouxe à discussão e defendeu em 2008 quando da minha acesa discussão sobre a falácia da guerra militarmente perdida, com o Mário Beja Santos. O MBS, na altura estava muito próximos destas teses da completa superioridade militar do PAIGC. O que é mau para a nossa história comum, povos de Portugal e da Guiné-Bissau. A História faz-se com a verdade. Quando assim não acontece, enviesa-se tudo.

Abraço,

António Graça de Abreu